Por Viviane V.
Publicado no site Transfeminismo, em 29 de janeiro de 2014.
Já vi muito ódio, já vi piadas e nojos, tiros, sangue. Desempregos, subempregos, pistas. Já vi pessoas cis interpretando pessoas trans*, e roteiros de estereótipos, e erros de pronomes, e risos. Risos. Há risos até quando morremos. Não leiam os comentários. Não leiam. Não sejam. Não vivam.
Colonizam nossas mentes a ponto de nos negar autoidentificação enquanto pessoas humanas. Até minha morte, sei que terei o espectro do transtorno de identidade de gênero às costas. Mesmo que cuspa na cara de psiquiatras que fazem graça de nossas existências (cito nomes com fundamentação testemunhal e epistemológica disto, se necessário), sei que para algumas pessoas acadêmicas minha produção intelectual – ele olha com nojinho e ajeita sua gravata borboleta – possa ser caracterizada como uma “reprodução de estereótipos patologizantes” (idem). E os psiquiatras estarão rindo. E outras pessoas acadêmicas (algumas até bem próximas) silenciarão.
Nos colonizam e nos transtornam sem que haja nenhuma fundamentação decente para isso. É esse o ponto, e é bastante simples: pouco me importam os meandros e os nomes detrás destas peças colonialistas. Elas precisam ser derrubadas, implodidas. Ficar discutindo se ‘transtorno’ ou se ‘problema’ ou se ‘ilegalidade’ é se perguntar sobre diferentes contextos de colonização, e não sobre uma nova possibilidade descolonial [1].
Minha retórica se esquenta. O cistema é quente. Tira essa bermuda que eu quero você sério. Sério? Não. A intenção, a partir deste breve texto, é de problematizar determinadas normatividades relativas a identidades de gênero, a partir de inspirações anticoloniais intersecionais. Pega essa: autoetnografia travesti balançando seu cistema.
Enfim, eu vejo barbárie neste mundo que nem se sustenta mais. O pau-brasil derrubado lá atrás entra no saldo do aquecimento global? Entra pras dívidas anticoloniais? E a travesti e a pessoa indígena que morrem degoladas, entram onde? Com que nome? Com que hipóteses para o crime? Morremos por todas partes, a cada momento. A cada medicamento usado por nós que não tem informações sobre sua interação específica com nossos corpos. A cada vez que “erram” nossos pronomes e nomes autodeterminados. Morremos em solidões de existências negadas, em porões marginais de gênero, nos desempregos da vida. Morremos? Não sei nem que nome estará nas memórias de quem amo.
Vi, vejo e verei muitas dores nas realidades trans*, estou infelizmente segura disto.
Mas, é preciso dizer. É preciso dizer com toda a tranquilidade inssureta que, se vi, vejo e verei tragédias colonialistas de gênero, minha visão não se deprime com isto. Ela se entristece, não há dúvidas, porém se excita na percepção de que há resistências por todas as partes. Em todas as partes. E, se os inimigos também estão em todas partes, é nas forças de cada sorriso de resistência trans* que eu vejo nossas potências descoloniais.
Não, eles não haverão de evitar que as pessoas possam autodeterminar seus gêneros.
Amanhã vai ser outro dia, e só vai ser outro dia porque há resistências acontecendo. Elas nem sempre são gloriosas, e frequentemente é o oposto disto: resistências precárias, fracassadas, difíceis. Ela desatinou, e vê toda a gente sofrendo normalmente. Toda a gente. E é preciso se mexer, bater cabelo. Estamos nos organizando, estamos reagindo, mesmo quando tudo que possamos fazer seja gritar aos ventos por cidadania. Por humanidade. Os recursos são muitos para brutalizar, e escassos para dignificar. Apesar de todas minhas dificuldades e limitações, venho tentando trazer meus precários recursos para fortalecer estas lutas trans*, onde quer que elas estejam. Porque acredito nelas, porque acredito nas suas potências para a construção de um mundo mais justo para tudo que existe nele. Mas tem horas… que é difícil.
Ser trans* não é fácil, afinal: ouço variantes desta frase-conselho de cada sobrevivente trans* que conheço. Sobrevivente, colonizada, pero submissa jamás. Nas pistas, com silicones, nas clínicas em que nos violentam, hormonizadas, colocadas e bonitas, resistimos apesar de vocês.
Sim, estamos todas pessoas implicadas nos cissexismos do mundo.
É menino ou menina?
[1] E não é que tais discussões sejam desnecessárias: elas o são, desde que orientadas por um horizonte anticolonial. É certo que, a partir deste horizonte, ainda é importante saber de meandros e históricos em detalhe. Mas estes são estudos que devem partir deste propósito descolonial, de forma a não fazerem parte de um jogo colonial de discussões infrutíferas que não gerem estratégias de resistência e luta anticolonial melhores – afinal, os recursos investidos nestes estudos poderiam estar sendo empregados em outras propostas descoloniais trans*.