Lis Hachiya conta como tem sido a jornada de entendimento e transição do filho Léo, um garoto trans de 12 anos
Pedro Gabriel
Publicado pelo portal iG Queer, em 12/05/2024
“Eu peguei na mão dele no meio da rua e falei: ‘acredita em mim. Acredita na mamãe, dá um voto de confiança. Acredite que existe um mundo muito legal, bonito, colorido e com pessoas que vão te amado do jeito que você é, e eu vou atrás desse mundo para você'”. Foi assim que a sommeliere Lis Hachiya afirma ter conseguido salvar seu filho Léo, um garoto trans de apenas 12 anos.
Mãe de três filhos — Gabi, de 26 anos, Antony, de 20 anos, e Léo, de 12 anos —, Lis teve sua vida mudada drasticamente nos últimos anos. Enfermeira da formação, ela deixou tudo para trás para focar na saúde mental e física do seu filho mais novo, em um momento de grande importância para ele: o seu nascimento como um garoto trans.
Lis afirma ao iG Queer que sempre sentiu que o filho era diferente desde quando nasceu. O jeito mais “espevitado” começou do pequeno e a forma como se comportava quando colocava roupas tidas como femininas fugiam do comum para a mãe. “Com dois anos, foi a primeira vez que ele me pediu para cortar o cabelo como o do irmão e eu não deixei, mas eu cortei um chanelzinho bem curtinho. Ele ficou todo feliz”, diz Lis como a primeira vez que ela recorda como um sinal do processo que viria ocorrer no futuro.
A sommeliere afirma que criou seus filhos através do método Montessori — forma de educação que visa a autonomia e autoeducação da criança — o que resultou em uma formação de estilo montado totalmente por ele. Segundo ela, a mobília do quarto dava liberdade para Léo escolher as próprias roupas, o que sempre resultava na combinação de shorts e camiseta.
“Quando ele fez 6 anos, ele começou a ter a liberdade de doar coisas. Ele sempre foi apaixonado pelo Homem Aranha e me pedia camiseta, as roupinhas do personagem, e eu pensava: ‘Ah, é o super-herói preferido, né?’. Porém, cada coisa que ele ganhava, eu dizia para ele tirar algo para doar. O Léo ia no guarda-roupas e tirava um vestido de festa de R$ 500 para colocar a camiseta do Homem Aranha. E assim ele foi tirando as roupas rosas, as roupas mais femininas e foi construindo sozinho com o que ele tinha, com que ele podia”.
A descoberta de quem era Léo
Durante a pandemia da Covid-19, Léo encontrou-se confinado dentro das paredes de seu quarto. Nesse ambiente introspectivo, ele teve a oportunidade de se reconectar consigo mesmo e iniciar uma jornada de autoconhecimento.
Lis compartilha que o distanciamento social o trouxe uma sensação de contentamento, e isso os inspirou a embarcar juntos em um processo psicológico para entender melhor seus próprios caminhos. Ela descreve: “Fui percebendo e acompanhando, enquanto eu me submetia à terapia, ele também. Decidimos então respeitar o ritmo dele, caso fosse realmente necessário.”
Após o retorno das atividades escolares, Léo, que agora estava com o cabelo curto e tentando se entender, passou por alguns momentos sombrios. Segundo Lis, o retorno do filho à escola o deixou ainda mais introspectivo, com ele sozinho por cerca de um ano e meio. Entretanto, um grupo do ensino médio o acolheu, e foi quando Lis viu pela primeira vez alguém tratando o filho por um nome masculino.
“O adolescente falou, ‘tchau Fulano’. Eu olhei para ele e falei: ‘Ah, você mudou de nome e não me falou nada?’. E então ele desabou e começou a querer chorar. Eu falei: ‘Não, você não vai chorar, você vai conversar comigo!’. Ele começou a falar de todas as frustrações dele, se abriu e falou que ele tentou com todas as forças ser uma menina, mas que ele não conseguia.”
A partir dessa conversa, Lis entendeu que o filho estava passando por um momento “sombrio”. Segundo ela, Léo tinha frequentes crises de ansiedade, se escondia no quarto e não queria voltar para escola. Nesse período, ele estava passando por uma psicóloga especialista em identidade de gênero e lutava para uma autoaceitação.
Algumas coisas o preocupavam. Uma delas era a aceitação dos familiares e das pessoas que ele amava. Lis afirma que as duas pessoas que ele citou foram a avó materna e o pai, ambos evangélicos. O pai de Léo, após o processo de descoberta e transição, se afastou do filho e não conversa com ele desde dezembro: “Se perguntar hoje para quem é o pai, ele vai falar que sou eu sua a mãe e o pai dele!”
A mãe avisou à escola que eles, provavelmente, teriam um caso de um garoto trans, o que foi tranquilamente recebido pela instituição. Segundo ela, a experiência de Léo foi diferenciada uma vez que estava em uma escola particular e que teve um processo de acompanhamento de perto por parte da direção.
“A escola fez uma reunião de pais e eu conversei com todos, expliquei que ele voltaria das férias como Léo”, diz Lis. Além disso, os funcionários da instituição tiveram um treinamento para saber como lidar com uma criança trans. Na volta das aulas, em uma dinâmica de apresentação dos alunos, ele disse para todos: “Oi, eu sou o Léo, tenho 12 anos e gosto de andar de skate”.
“Em 2023, o Léo foi lá no fundo do poço e voltou. Ele tinha um plano, porque ele achava que não seria possível ele existir como Léo. Eu morava no décimo andar de um prédio e o plano era cortar a tela e se jogar de lá de cima”, conta Lis com os olhos marejados. “Dói falar. Eu fui lá, no fundo do poço, em 2023, buscar minha menininha triste e ela não tava mais. Quem estava lá era o Léo, um menino sorridente e bobo”, afirma a mãe, que viu o renascimento do filho.
O esporte como salvação
Atualmente, Léo faz acompanhamento no Hospital das Clínicas (HC) e no Espaço Transcender da USP. O HC tem um ambulatório especializado em atendimento para crianças e adolescentes trans, atendendo uma média de 300 pessoas. Entretanto, há uma fila extensa. Lá, realizam o bloqueio puberal, tanto para meninas quanto para meninos trans, porém, devido à espera, Léo já estava com os índices hormonais no auge quando começou o tratamento.
Já no Espaço Transcender, os tratamentos e acompanhamentos são semelhantes, mas não incluem o bloqueio puberal. Léo participa de terapias em grupo, treino de voz, e os pais têm seus próprios grupos de apoio.
Os grupos de pais são desafiadores, com alguns não aceitando a identidade de gênero de seus filhos. No entanto, tanto no HC quanto no Espaço Transcender, há suporte psicológico para as famílias. Além disso, a mãe de Léo é parte de um coletivo chamado Mães da Resistência, que oferece apoio mútuo, palestras e ações de conscientização.
Entretanto, uma das principais atividades de inclusão para Léo é o esporte. Segundo Lis, isso tem ajudado a tirá-lo do isolamento típico de muitos adolescentes trans e proporcionando-lhe uma vida mais ativa e inclusiva.
“Ele nunca se interessou por nenhuma atividade que tivesse contato com outras pessoas, então ele começou a se interessar por skate. Ele ia emburrado e obrigado, mas ele precisava fazer uma atividade física para sair das telas. Eu hoje, com 51 anos, aprendi também a andar de skate e até comprei um longboard agora para mim”, brinca.
Léo, porém, se apaixonou pelo futebol. “Ele conheceu o T Mosqueteiros em uma passeata na Avenida Paulista. O Léo se encantou por eles, não pelo esporte, porque eles são homens trans, e são homens que não foram crianças trans”. O jovem começou a frequentar os treinos, no entanto, não jogava por apenas ele ser criança. O objetivo então de Lis e de Bernardo, o líder do time, começou a ser conseguir montar um time de base formado por crianças trans. E o objetivo foi alcançado.
Há um ano, Lis não conhecia ninguém que enfrentasse os desafios vividos por Léo. As únicas pessoas trans que tinha conhecimento eram artistas famosos. Porém, ao longo desse período, ela com o filho começaram a conhecer muitas outras pessoas, formando laço e uma verdadeira família. O esporte se tornou uma missão importante para eles, uma tentativa de tirar as crianças trans das telas e do isolamento dos quartos, onde muitos adolescentes trans passam a maior parte do tempo. Esse foi mais um passo para conseguir trazer luz a vida do jovem.
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