Laerte diz que a homofobia no Brasil é semelhante ao racismo e que o governo deveria parar de ceder tanto a forças políticas fundamentalistas comprometidas com a discriminação
Entrevista publicada no jornal El País – Brasil, em 21 de janeiro de 2014
Laerte Coutinho, uma das mais importantes cartunistas do país, assumiu publicamente sua identidade feminina em setembro de 2010. Nascida em 1951, considera que ainda não completou seu processo de transformação de gênero que iniciou em 2004. “Acho que completar, mesmo, nunca vai acontecer”, disse.
Desde então virou uma referência tanto do coletivo gay, quanto dos travestis e transexuais. Em entrevista ao EL PAÍS, Laerte diz que a homofobia no Brasil é semelhante ao racismo e que o governo deveria parar de ceder tanto a forças políticas comprometidas ou coniventes com a discriminação e a violência, como as do fundamentalismo religioso.
Pergunta. Por que em um país onde cada um parece ter a liberdade de mostrar para todo o mundo sua orientação sexual, existe tanto ódio ao diferente? O Brasil é diferente de outros lugares?
Resposta. Essa liberdade é, em muitos casos, ilusão. O Brasil parece o paraíso dos costumes liberados – e acho que isso faz parte da nossa autoconsciência otimista. A verdade está mais nos números escandalosos de agressões e ataques de natureza homo e transfóbica.
Não tenho experiência de outros lugares, apenas acompanho relatos e reportagens. Claro que na Rússia – especialmente hoje – ou em Uganda, as coisas são mais pesadas, institucionais até. A homofobia, entre nós, se assemelha ao racismo – ninguém admite que existe (principalmente sobre si mesmo), mas é impossível negar sua presença.
P. Houve algum avanço nos últimos anos na luta contra os crimes e a discriminação homo/transfóbica?
R. Houve avanço – exatamente na visibilidade e mobilização das pessoas, com criação de entidades e utilização de meios como a internet. Aos poucos se está criando uma representação nas instâncias parlamentares, com a apresentação de projetos de lei, como o recém derrotado PL 122 (que torna crime a homofobia) e o ainda em discussão PL 5002, o chamado PL João W Nery, que trata da livre identidade de gênero. Isso representa avanço, a meu modo de ver.
O debate tem crescido e tenho motivos para acreditar que, socialmente, começa a mudar o modo de enxergar a população LGBT, por parte dela própria – falo da passagem da situação de marginalidade para a integração social.
Acho que é um processo que não começou agora nem está perto de se concluir. Ainda estamos longe de situações como as que vive a Argentina e o Uruguai.
É preciso dizer que, mesmo nesses países, vigora muita tensão homofóbica. A aprovação de uma legislação mais justa não “corrige” automaticamente a opressão e o ódio vividos na sociedade.
P. O que o Governo deveria fazer para contribuir na luta contra a discriminação e violência do coletivo LGBT? E o próprio coletivo?
R. Uma das boas coisas que o Governo poderia fazer seria parar de ceder tanto a forças políticas comprometidas ou coniventes com a discriminação e a violência – como as do fundamentalismo religioso. Acho que o movimento vem fazendo o necessário para crescer em mobilização e em capacidade de mobilizar a sociedade – de ser percebido como parte integrante da sociedade, portadores de direitos que devem ser universais.
P. Como se explica que o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara seja abertamente homofóbico?
R. Isso foi possível devido a mecanismos de funcionamento do Congresso Nacional. Acho que se deveu, em resumo bem resumido, à falta de sintonia entre a população e seus representantes, resultando num momento equívoco que permitiu esse tipo de golpe. Foi um golpe.
P. Quais foram as maiores barreiras que você teve que superar quando resolveu se aceitar como mulher? Você sofre preconceito?
R. No meu caso, a principal barreira foi a que eu mesma colocava. Quando entendi e aceitei o significado de algo que até ali eu julgava fantasia, o principal foi superado.
Minha família e amigos também me ajudaram muito, mantendo os laços de afeto durante todo o processo de questionamentos, estranhamentos e dúvidas, que são inevitáveis. Tenho sido socialmente muito bem recebida – talvez minha condição de artista e pessoa conhecida publicamente ajude, não sei.
Não é o que acontece com a maior parte das pessoas trans no Brasil.