10 de dezembro de 2024
http://leticialanz.blogspot.com.br/2016/08/a-baboseira-fundamentalista-sobre.html

por Leticia Lanz
Publicado em 26 de agosto de 2016

http://leticialanz.blogspot.com.br/2016/08/a-baboseira-fundamentalista-sobre.htmlNa sua função histórica de legitimar e dar suporte às classes dominantes, a religião cristã contribuiu decisivamente para firmar o estigma que ainda paira sobre as pessoas transgêneras nos dias atuais, ajudando a transformar em duras provações e suplícios pessoais o que não passaria de expressão da identidade de gênero de cada pessoa.

A “proibição bíblica” do travestismo, uma das práticas mais comuns entre pessoas transgêneras, é frequentemente citada por fundamentalistas religiosos como prova da “ira divina” sobre essas pessoas: travestis, transexuais, crossdressers, dragqueens, etc., etc. Em pelo menos um dos livros da bíblia, o Deuteronômio, o travestismo, é especificamente citado como “abominação”:

  • “Não haverá traje de homem na mulher, e não vestirá o homem vestido de mulher, porque qualquer que faz isto é abominação ao Senhor teu Deus”. (Deuteronômio, 22:5)

O curioso é que quem tem a curiosidade de ler, na íntegra, todas as “proibições divinas” contidas nesse capítulo 22 do Deuteronômio, descobre que a maioria delas está tão fora de moda que até mesmo os pastores mais empedernidos e reacionários em suas crenças religiosas teriam muita reserva em utilizá-las em suas pregações da mesma maneira enfurecida com que se dirigem ao travestismo.

Além da ridícula e absurda proibição de usar trajes do gênero oposto, esse mesmo capítulo 22 está repleto de outras interdições igualmente “nonsense” para os dias atuais. Por exemplo:

  • Deuteronômio 22:8 – “Quando edificares uma casa nova, farás no terraço um parapeito, para que não tragas sangue sobre a tua casa, se alguém dali cair”. Quer dizer que casas sem parapeito estão proibidas por Deus e, quem as constrói é uma pessoa abominada?
  • Deuteronômio 22:9 – Não semearás a tua vinha de duas espécies de semente, para que não fique sagrado todo o produto, tanto da semente que semeares como do fruto da vinha. Uva moscatel não pode ser plantada junto com uva merlot, por exemplo. Se isso for valer, a Serra Gaúcha está inapelavelmente abominada por Deus há muito tempo!
  • Deuteronômio 22:10 – Não lavrarás com boi e jumento juntamente. Eu juro que eu queria ver era alguém dar conta de formar uma parelha com dois animais tão diferentes!
  • Deuteronômio 22:11 – Não te vestirás com roupas de tecido misturado, de lã e linho juntamente. Misturas de fibras na fabricação de tecidos também estão abominadas “aos olhos de Deus”. Estamos todas perdidas!
  • Deuteronômio 22:12 – Porás franjas nos quatro cantos da tua manta, com que te cobrires. Com prazer, amor. Aliás, adoro franjas! E não deixem de notar que, ao tempo dessa proibição, mantas com franjas eram para homens…

E, finalmente, para não cansar a galera com tanta baboseira bíblica, uma verdadeira pérola do ridículo dessas proibições, jamais citada por esses pentelhocostais a serviço do conservadorismo patriarcal-machista:

  • Deuteronômio 22:13 a 21 – Se um homem tomar uma mulher por esposa, e, tendo coabitado com ela, vier a desprezá-la, e lhe atribuir coisas escandalosas, e contra ela divulgar má fama, dizendo: Tomei esta mulher e, quando me cheguei a ela, não achei nela os sinais da virgindade; então o pai e a mãe da moça tomarão os sinais da virgindade da moça, e os levarão aos anciãos da cidade, à porta e o pai da moça dirá aos anciãos: Eu dei minha filha por mulher a este homem, e agora ele a despreza, e eis que lhe atribuiu coisas escandalosas, dizendo: Não achei na tua filha os sinais da virgindade; porém eis aqui os sinais da virgindade de minha filha. E eles estenderão a roupa diante dos anciãos da cidade. Então os anciãos daquela cidade, tomando o homem, o castigarão, multando-o em cem siclos de prata, os darão ao pai da moça, porquanto divulgou má fama sobre uma virgem de Israel. Ela ficará sendo sua mulher, e ele por todos os seus dias não poderá repudiá-la. Se, porém, esta acusação for confirmada, não se achando na moça os sinais da virgindade, levarão a moça à porta da casa de seu pai, e os homens da sua cidade a apedrejarão até que morra; porque fez loucura em Israel, prostituindo-se na casa de seu pai. Assim exterminarás o mal do meio de ti. Alguém por favor me diga o que são “sinais de virgindade”? E se essa interdição fosse levada a sério hoje em dia, com o mesmo grau de rigor que os pregadores levam a proibição sobre o travestismo, iria faltar pedra na cidade… Mas eu duvido muito que esses pastores boçais e suas gangues tenham coragem de enfrentar o pessoal da Delegacia da Mulher.

Está muito difícil, sim, aguentar esse “povo biblista” lançando sua ira sobre as pessoas transgêneras e fazendo-se completamente de bobos em relação às outras proibições, saídas da mesma lista do mesmo capítulo do mesmo livro: impossível não serem vistas nem mencionadas, não é mesmo? Por que vociferar contra pessoas trans e nada dizer contra os plantadores de uva da serra gaúcha (aff!)? Por que não apedrejar mulheres adúlteras, conforme determina a “vontade de Deus”?

Ou então toda essa raiva dirigida a pessoas transgêneras é má fé mesmo e perseguição gratuita a travestis, transexuais, crossdressers, dragqueens, transformistas, etc. etc.

Pelo menos para as mulheres, na segunda metade do século XX as interdições de vestuário começaram a cair, junto com outras tolices patriarcais-machistas como a autorização para porcos chauvinistas apedrejarem “mulheres impuras” nas ruas ou “maridos traídos” lavarem sua honra com bala de revólver.

Graças a uma bem sucedida ação política da mulher, foi levantada a antiga interdição, na sociedade Ocidental, das mulheres usarem roupa tradicionalmente associada com homens, como calças, ternos e gravatas. As calças foram definitivamente incorporadas ao guarda roupa feminino, e elas usarem roupa masculina nem é considerado como travestismo. Teriam ficado livres da abominação do Deuteronômio ou apenas conseguido silenciar, com a defesa intransigente dos seus direitos, a voz estúpida, aborrecida, prepotente e arrogante dos pastores moralistas de plantão? Antes disso, as mulheres já tinham ganho um salvo conduto para se travestirem, na Summa Theologiae II, de São Tomás de Aquino, quando vestissem roupas de homem por “absoluta necessidade” (pôxa, gente, mas as mulheres trans também só se montam por absoluta necessidade! Não merecem nadica de nada???) ou em caso “das travestis sagradas” (um monte de “santas” que se travestiram, no exercício da sua santidade, como Joana D’Arc, na França – santa mesmo, viu santa?).

Apenas para os babacas dos homens as restrições continuam pesadas e rígidas como sempre, sem nem mesmo um “atenuante de santidade”, minha santa.

O problema é que, em vez da coisa evoluir, está piorando. Até mesmo em culturas onde os homens sempre usaram tradicionalmente artigos de vestuário parecidos com itens da indumentária feminina, como a saia escocesa, quimono japonês ou sarong filipino, com a tal da globalização – leia-se expansão do domínio americano fundamentalista patriarcal cristão – o uso desses itens vem sendo paulatinamente desestimulado nas novas gerações pela praga universal dos missionários cristãos fundamentalistas. Assim, na África, na Ásia e na Oceania, lindos trajes masculinos étnicos foram trocados, por influência dos missionários, por horrendas calças e camisas de tergal.

Enfim, para o idiota do homem, continua sendo uma das piores pejas o ato de vestir-se com roupas de mulher. Tolera-se que o dominado imite o dominador, mas este detesta comparar-se em qualquer aspecto ao dominado. Até hoje, em pleno século XXI, não existe maior vergonha para um homem do que ser comparado e muito menos confundido com uma mulher.

Embora não seja mais considerado como crime na maioria das sociedades ocidentais (era, até recentemente, em muitas delas), o travestismo masculino continua sendo objeto de forte discriminação e preconceito, até da parte dos próprios praticantes que, por isso mesmo, volta e meia, vivem momentos de muita culpa e angústia em virtude da sua própria prática.

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