Gilmaro Nogueira
Publicado pela coluna Cultura e Sexualidade do portal iBahia, em 8 de agosto de 2016
Milhares de povos originários das Américas, tribos e línguas foram dizimados/as pelos colonizadores, que souberam utilizar, além de estratégias militares e violentas, as desavenças entre as diversas identidades do que, hoje, chamamos de indígenas. Mas qual a relação desses fatos com a questão LGBT?
É que a política conservadora avança, a passos largos, nas diversas instâncias dentro e fora de governos. Se os conservadores não incentivam ou utilizam nossos estranhamentos cotidianos como estratégia, tais querelas favorecem o retrocesso da garantia de direitos de diversos sujeitxs e grupos.
Os indígenas utilizaram a nomeação imposta a eles – índixs, para criar uma relação de parentesco, que promovesse uma união e estratégia de coletividade, mas que também conservasse suas diferenças culturais. Nós LGBTs, ao contrário, não temos um termo que possa promover tal relação de conjunção política, como o conceito de sororidade, por exemplo, par indicar uma aliança ou pacto entre as mulheres. Também não temos uma estratégia política que nos agrupe, respeitando as nossas diferenças.
Nesse sentido, não há uma comunidade LGBT, pois cada um de nós têm uma estratégia diferente (o que não é um problema), mas, por vezes, parecemos ter também objetivos diferentes. É um caminho tão perigoso, o qual trilhamos, que conceitos e críticas que nos libertam e promovem potências também destroem nossas possibilidades de luta conjunta.
O exemplo dos indígenas nos mostra que não precisamos ser iguais, nem ter as mesmas identidades, para produzirmos um parentesco do subalterno. A divisão de diversos grupos em subgrupos e a pluralização das identidades não são empecilhos para uma luta conjunta ou, no mínimo, parcerias estratégicas, mas nem isso está acontecendo. Bom lembrar que mesmo a relação de parentesco artificialmente produzida pelxs índixs não impediu/impede que seus direitos sejam desrespeitados e que sejam violetadxs rotineiramente, mas seria catastrófico não ter um pacto/aliança entre eles.
Obviamente nossas opressões não são iguais, nem mesmo dentro de um grupo identitário as pessoas sofrem do mesmo jeito. Não quero deslegitimar que temos privilégios. Eu, homem, negro, tenho privilégios que viso reconhecer cotidianamente, principalmente quando analiso a vida das pessoas trans – cotidianamente violentadas. Reconhecer os privilégios é uma forma de reconhecer a opressão dos outros e lutar contra essas opressões, ou contra nossa cumplicidade.
Certa vez, uma pesquisadora disse que sua branquitude não chegava ao Estados Unidos. A minha branquitude não se sustenta nem no “meu” bairro. Meus privilégios, embora sejam privilégios, se comparados a outras existências, são precários, e não os problematizo para buscar um lugar de vítima, mas de parentesco.
Como privilegiado precário, eu transito entro o status de vítima e agressor facilmente. Nos hierarquizamos facilmente ou, como disse uma autora que não lembro o nome: “Numa sociedade dividida, as consciências são divididas!” Nós, sujeitos subalternizadxs, nos violentamos constantemente porque nossas consciências, sem exceção, são divididas.
Reconhecer meus privilégios não significa que eu, sujeito precário, possa me dar ao luxo de não encampar lutas, comprar brigas para que não somente eu, mas xs outrxs possam ter mais legitimidade. Não é porque eu sou caridoso, mas porque considero impossível ser um cidadão de primeira classe, ou de classe intermediária, sozinho ou apenas no grupo que me designam. Minha luta depende da luta de outrxs oprimidxs. Outrxs sujeitxs, mais ou menos privilegiados, não podem se eximir das lutas ou serem cúmplices.
Mas a luta do lado de cá dxs oprimidxs é complexa. Se eu me proponho a gritar com algum grupo com o qual me designam, sou acusado de excluir os outros. Se quero gritar junto, sou acusado de invisibilizar xs outrxs. Se eu não grito, eu sou cúmplice. Enquanto privilegiado precário eu sei que meu grito só ecoa junto com outros grupos. Juntos, não é meu grito, nem nosso grito, mas um outro grito, uma nova sonoridade.
O meu sentimento, e não apenas meu, mas de muitas pessoas, é que o grito de quem luta contra nós, embora não possa ser justo, é mais solidário, pois atravessa suas diferenças com o objetivo de manter as hierarquias e as tradições que há décadas subalternizaram todxs que não participam do status de branquitude heterossexual burguesa.
Meu parceiro de blog, Leandro Colling, certa vez, discordou de uma análise feita por Contardo Calligaris, de que uma luta pós-identitária é necessária, mas não estamos prontos para essa estratégia, ainda. Tendo a concordar com Calligaris, estamos demasiadamente presos às identidades, afundados nela, com um essencialismo ressurgente entre nós, solapando alianças, desfacelando qualquer projeto de parentesco.
Não se trata de um mimimi, como dizem os que não reconhecem nossas dores, e zombam de nossas opressões, mas de um mememe, isto é, “só eu existo, quero lutar só e ninguém me entende”.
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