16 de outubro de 2024

Kéren Morais
Publicado pela Agência de notícias da Aids, em 20/11/2023

O provérbio africano “A ruína de uma nação começa nas casas de seu povo” ressalta a importância de focar nas bases da sociedade para entender e superar seus desafios. Segundo especialistas, ao observarmos a realidade da população negra, muitas vezes confrontada com desigualdades sistêmicas, constatamos que a vulnerabilidade começa nos níveis mais fundamentais da estrutura social. A Agência Aids abre sua série especial em alusão ao Dia da Consciência Negra, trazendo um panorama da saúde da população negra brasileira vivendo e convivendo com HIV/aids.

O Mês da Consciência Negra, celebrado em novembro no Brasil, têm o objetivo de promover a reflexão sobre a importância da cultura afro-brasileira, ressaltar a contribuição dos negros para a sociedade e combater o racismo. O dia 20 de novembro é particularmente significativo, pois marca a morte de Zumbi dos Palmares em 1695. Zumbi foi um líder quilombola que desafiou o sistema escravocrata brasileiro, tornando-se um símbolo da resistência negra. Os eventos relacionados a essa data buscam sensibilizar a população para a necessidade de reconhecer e valorizar a ancestralidade negra e diversidade étnica do país, além de reforçar a luta contínua contra a discriminação racial.

Historicamente privada de direitos básicos de sobrevivência como cultura, lazer, educação, moradia, alimentação de qualidade, saneamento básico e acesso à saúde, a população negra tem sofrido com os agravos gerados por problemas estruturais e institucionais. Os reflexos da desigualdade racial podem ser percebidos inclusive na epidemia de HIV/aids que, ao longo das suas quatro décadas, já fez milhares de vítimas em todo o mundo, muitas delas, pessoas de pele preta.

Falando de Brasil, oficiais de saúde alertam para os desafios específicos que fazem com que falte instrução e estímulo nas questões de conhecimento e prevenção ao HIV, gerando o crescimento da infecção. Essa realidade está retratada no mais novo Boletim Epidemiológico de Saúde da População Negra, lançado pelo Ministério da Saúde (MS) no último mês, sistematizando de forma inédita dados sobre saúde da população negra.

O levantamento do Ministério mostra que entre todos os novos diagnósticos de HIV registrados durante 2021, 62,3% deles são de pessoas negras. O número de notificações aumentou em 12% no intervalo de tempo entre 2011 e 2022.

Crianças negras menores de 14 anos correspondem a 6,3% dos diagnósticos e a população jovem [de 15 a 29 anos], a 13,2% dos casos.

A médica infectologista Luísa Andrade contextualiza alguns dos fatores que têm tornado pessoas pretas e pardas, sobretudo aquelas de baixa renda, mais vulneráveis à infecção pelo HIV e seus agravos. Segundo a especialista, a condição socioeconômica está intimamente relacionada à garantia ou não de acesso a bens, conhecimento, serviços e outros cuidados em saúde.

“Essas pessoas muitas vezes nem chegam sequer a descobrir o HIV, a acessar tratamento correto e [consequentemente] a sofrer mais”, destaca ao denunciar o impacto do racismo sob o bem-estar integral de corpos negros. “E quando descobrem, às vezes, já é tarde”, afirma a infectologista ao alertar sobre os riscos da evolução do vírus para o estágio de aids. Além disso, ressalta que a falta de representatividade e acessibilidade a serviços condizentes à saúde atrapalha ainda mais a adesão e continuidade à terapia antirretroviral.

Para a médica, existem ainda outras barreiras que impedem uma pessoa negra de conseguir ir em busca de auxílio médico quando há um sinal de alerta em sua saúde. Dentre eles, sobressaem problemas de infraestrutura e mobilidade urbana. “Muitas vezes o local para a realização da consulta é longe, a pessoa precisa se locomover da sua moradia gastando um dinheiro que já é escasso, para então receber um diagnóstico que necessitaria de um cuidado especial, mais tempo e dinheiro”.

Ao reiterar que a principal razão do adoecimento de pessoas negras vivendo com HIV/aids é o racismo sistêmico e seus mecanismos que retroalimentam contextos de vulnerabilidade, dra. Luísa Andrade teve sua fala reforçada pela socióloga Vera da Silva, mestre em História, Cultura Indígena e Afro-Brasileira.

A intelectual defende que, no contexto histórico brasileiro, desde a abolição legal da escravatura, negros e negras sofrem de desumanização, residem em regiões vulneráveis e sofrem com a insegurança em saúde e bem-estar. “Não é de hoje que a população negra tem uma escassez no âmbito da saúde. Com o fim da escravidão, os negros foram deixados de lado pela sociedade e esquecidos pelas políticas públicas. Hoje, com mais oportunidades sociais, essa população consegue ter acesso a tratamento, mas os mais pobres não têm a oportunidade nem de chegar a um posto de saúde”.

O Boletim Epidemiológico de Saúde da População Negra ainda informa que até ano passado, os óbitos de pessoas negras em decorrência da aids giravam em torno de 60,5%, número bastante expressivo e condizente com a dura realidade pontuada pelas entrevistadas.

Vera da Silva adverte que estas estatísticas não têm nenhuma previsibilidade de estabilização se políticas eficazes não forem articuladas de modo que alcancem os mais necessitados. “Precisamos dessas políticas públicas para que haja uma movimentação a favor dessa população, para que haja redução de infecção, redução de morte, e para que estas pessoas sejam, de fato, lembradas pela saúde pública, que [constitucionalmente] é para todos”.

Segundo a teórica, o estigma associado ao HIV pode resultar em isolamento e medo de revelar o status sorológico. Quando combinado com o racismo estrutural, que já impõe desafios adicionais, a carga se torna ainda mais pesada. Vera argumenta que o enfrentamento da sorofobia e do racismo é vital não apenas para promover a igualdade e justiça social, mas também para garantir que todos os indivíduos, independentemente de raça ou soropositividade, tenham acesso equitativo a oportunidades, apoio e cuidados de saúde. “Muitas vezes, a população negra não entende o que é o HIV, mas existe um preconceito [enraizado] e uma exclusão contra o indivíduo HIV+, que tal qual a pessoa que está praticando os atos discriminatórios, não sabe da sua infecção […] é preciso acolher toda a população, trazer a saúde para onde não tem, ensinar, medicar, transformar [de fato] a vida destas pessoas”.

“Estamos em 2023, onde a tecnologia está avançada, as pessoas estão mais letradas e é preciso ajudar a população negra vulnerável a ter compreensão sobre o HIV/aids, sem medo, sem estigma e sem barreiras. Precisamos levar saúde onde, sozinha, ela não consegue agir”, finaliza a socióloga.

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