Para integrante da diretoria da Rede Trans Brasil, o perfil racial da maioria das vítimas de assassinato evidencia as similaridades entre a transfobia e a conjuntura histórica de racismo e desigualdade social na sociedade brasileira.
Por Fernando Assunção
Publicado pela agência de notícias Alma Preta, em 31 de outubro de 2023
O Brasil registrou 77 mortes de pessoas trans até setembro de 2023, um caso a mais em comparação ao mesmo período do ano passado. Desse total, 65% das vítimas são pretas ou pardas. Os números fazem parte do Relatório Trimestral de Assassinatos de Pessoas Trans, realizado pela Rede Nacional de Pessoas Trans – Brasil (Rede Trans).
Na análise da integrante da Diretoria Executiva da Rede Trans, Isabella Santorinne, o perfil racial da maioria das vítimas de assassinato evidencia as similaridades entre a transfobia e a conjuntura histórica de racismo e desigualdade social na sociedade brasileira.
“A estrutura de exclusão racial também distancia as pessoas trans do acesso aos direitos fundamentais. Existem questões comuns, como a dificuldade de inserção nas instituições de ensino, no mercado de trabalho e de representações midiáticas positivas. Devido a isso, a maioria das mulheres trans em vulnerabilidade social são negras”, afirma Isabella, que também atua como coordenadora da Rede Paraense de Pessoas Trans.
O relatório também traz informações referentes ao gênero, ocupação, idade e local das mortes. De acordo com o documento, 95% das vítimas eram mulheres, mais de 50% eram profissionais do sexo e foram mortas em vias públicas. A média de idade das vitimadas era de 35 anos de idade.
Outro fator que contribui para que mulheres trans negras sejam os maiores alvos da violência é a invisibilidade social em decorrência da falta de políticas públicas. Segundo a ativista, isso ocorre por causa da inexistência de índices que evidenciam as condições adversas em que vive o segmento.
“A ausência de dados, de modo geral, reforça a invisibilidade em que se encontram as mulheres trans, em específico as negras no Brasil”, pontua Isabella. Ela acrescenta que o objetivo da pesquisa é chamar atenção das autoridades para a criação de políticas públicas voltadas à garantia de direitos das pessoas trans.
“Não queremos apresentar dados de mortes, mas criar uma ferramenta de denúncia, publicizando toda esta violência, demonstrando a necessidade de políticas públicas específicas para as pessoas travestis e transexuais no país e uma maior atuação do Executivo, Judiciário e Legislativo”, completa.
São Paulo lidera casos
O estado de São Paulo lidera os índices de assassinatos de pessoas trans no Brasil em 2023. O dado demonstra uma crescente na violência no estado que, em todo o ano passado, ficou em terceiro lugar no número desse tipo de ocorrência, com sete notificações. Até setembro, Ceará e Bahia, respectivamente, completam o pódio de registros de mortes violentas de pessoas trans.
Para a codeputada estadual Carolina Iara, da Bancada Feminista do PSOL, dois fatores contribuem para a violência no estado: o conservadorismo sobretudo no interior paulista e a migração de pessoas transexuais para São Paulo em busca de oportunidades. “Há uma concentração maior dessa população em São Paulo do que em outras regiões, o que faz com que o estado tenha que fomentar políticas públicas tanto para as pessoas trans paulistas, como para as migrantes e imigrantes”, destaca Carolina.
Única representante transexual na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), Carolina Iara é autora de projetos de lei que visam assegurar os direitos dessa população. É o caso do PL que instituiu cotas trans nas universidades estaduais e o projeto Armário Nunca Mais, que prevê uma Política Estadual de Proteção às LGBTQIAPN+ do estado.
“Eu acredito que é de uma potência enorme ter uma travesti negra nesse espaço de poder, até para fortalecer a luta de pessoas trans no estado. Além disso, tenho comprometimento ético e histórico com os movimentos sociais e suas agendas políticas de emancipação. Por isso, faço proposições e enfrentamentos que não seriam feitos sem a presença de uma travesti e outras LGBTQIAPN+ dentro daquele parlamento”, diz a deputada.
Violência contra pessoas trans também se manifesta nos espaços institucionais
Ainda segundo Carolina Iara, ofensivas contra os direitos LGBTIAPN+ continuam a ocorrer nos espaços políticos, o que fundamenta a violência. “A Alesp tem sido palco de uma grande ofensiva LGBTfóbica, com uma CPI que investiga arbitrariamente o ambulatório trans do Hospital das Clínicas, querendo retirar o direito de adolescentes e crianças trans de terem acompanhamento médico, além de vários projetos de lei abertamente transfóbicos, querendo proibir as pessoas trans de frequentar banheiros públicos, praticar esportes, ou proibição de publicidade com pessoas LGBTQIA+”, reitera.
No Pará, a extrema-direita, capitaneada pelo deputado federal Éder Mauro (PL), organizou, no último Dia das Crianças, 12 de outubro, a “Marcha da Família”, que tinha como um dos motes: “Criança trans não existe”. O Ministério Público Federal (MPF) instaurou um inquérito civil para apurar a responsabilidade pela veiculação do conteúdo considerado transfóbico.
“É importante reconhecer que toda criança merece ser tratada com respeito e dignidade, independentemente de sua identidade de gênero. A violência contra crianças trans é uma violação dos direitos humanos básicos e deve ser combatida de maneira eficaz”, finaliza Isabella, da Rede Trans Brasil.