29 de abril de 2024

O comprometimento excessivo do orçamento do SUS para a compra de medicamentos patenteados tem impedido investimentos em outros esforços importantes como o estímulo à pesquisa, produção local e o investimento em políticas de prevenção e educação

Susana van der Ploeg e Alan Rossi Silva
Publicado pela revista Le Monde Diplomatique Brasil, em 24 de agosto de 2023

Protesto de portadores do vírus HIV (Ehimetalor Akhere Unuabona/Unsplash)

Entramos na 5ª década da pandemia de HIV/AIDS e, apesar dos caminhos para o fim traçados pela Unaids, é essencial reconhecer que ainda enfrentamos um sério problema de saúde pública. Para alcançar um cenário melhor, devemos enfrentar as desigualdades, o estigma e a discriminação, garantindo que ninguém seja abandonado. Há um caminho, mas, infelizmente, dados recentes mostram que o problema continua persistindo.  

No Brasil, entre 2011 e 2021, mais de 52 mil jovens de 15 a 24 anos foram diagnosticados com HIV e evoluíram para a síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids). Além disso, estima-se que em 2022 foram registrados cerca de 51 mil novos casos de HIV e 13 mil mortes. Atualmente, cerca de 88% dos 990 mil brasileiros que vivem com HIV1 conhecem seu diagnóstico, sendo que dentre esses, 83% estão em tratamento, e 95% apresentam carga viral suprimida. No entanto, é importante destacar que a meta estabelecida pela Unaids é atingir 95% para cada uma dessas situações até 2025. Esse objetivo já foi alcançado por países como Botsuana, Essuatíni, Ruanda, República Unida da Tanzânia e Zimbábue, mas ainda está pendente no Brasil. 

Diante desse cenário, é necessário criar estratégias para reter e garantir o tratamento dos 19% dos brasileiros vivendo com HIV que estão cientes do diagnóstico, mas não estão em tratamento. É fundamental fortalecer os mecanismos de diagnóstico oportuno e incentivar a imediata adesão ao tratamento antirretroviral e acompanhamento de saúde. Além das questões relacionadas à saúde pública, é imperativo enfrentar o racismo estrutural que contribui para a desigualdade de impacto da epidemia, afetando desproporcionalmente a população negra, como demonstrado pelo aumento de 12,9% nos casos de Aids nesse grupo em dez anos, enquanto a população branca registrou uma diminuição de 9,8%. Outro aspecto preocupante é a vulnerabilidade das travestis e mulheres trans, que, além das violências sofridas pela transfobia, estigma e discriminação, apresentam um risco 40 vezes maior de infecção por HIV em comparação à média da população. 

Para superar essas adversidades, é essencial que sejam implementadas respostas firmes para combater as desigualdades que dificultam ou impedem o acesso a serviços de prevenção, testagem e tratamento do HIV pelas populações mais vulneráveis. Para tanto, é fundamental fortalecer e ampliar as estratégias de prevenção, incluindo a disseminação da profilaxia pré-exposição para todas as pessoas que desejem e necessitem dessa alternativa de proteção. 

Embora o Brasil tenha demonstrado uma excelente resposta ao combate à Aids, especialmente após a implantação do programa de distribuição gratuita de medicamentos pela Lei 9313/1996, nos últimos anos, observou-se um retrocesso em relação a políticas públicas em saúde para combater a epidemia.  

Orçamento reduzido 

A redução de investimentos, o fim de campanhas educativas de prevenção e tratamento, bem como a interrupção na distribuição de camisinhas e gel lubrificante e a disseminação de notícias falsas relacionadas a vacinas contra a Covid-19 são alguns exemplos que comprometeram os avanços conquistados

Ademais, um desafio relevante – que prejudica a sustentabilidade – é a alocação majoritária do orçamento do programa nacional de HIV/AIDS para a compra de medicamentos. Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e sistematizados pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) revelam que, nos últimos cinco anos (entre 2018 e 2022), 71% de todo o orçamento do programa nacional de HIV/AIDS foi gasto apenas com a compra de medicamentos, desse total 69% são medicamentos sob patentes, imerecidas, como ocorre no caso do dolutegravir.  

Além de uma revisão na distribuição de recursos, é necessária a tomada de decisões políticas firmes para viabilizar a implementação de ações preventivas e de acompanhamento adequado para os pacientes, bem como o não comprometimento do recurso apenas com compras de medicamentos. Há caminhos para garantir a sustentabilidade do programa de HIV/AIDS, que podem ser expandidos para todo o Sistema Único de Saúde (SUS).  

A licença compulsória é um mecanismo legal para garantir o acesso a tratamentos vitais e evitar que monopólios de patentes restrinjam esse acesso em detrimento da saúde pública. O Acordo Trips (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), estabelecido pela Organização Mundial do Comércio (OMC), reconhece o direito dos países de emitirem licenças compulsórias para proteger a saúde pública. Entretanto, apesar de ser um mecanismo legítimo, a licença compulsória tem sido desconsiderada, o que dificulta a negociação de preços, a sustentabilidade do programa nacional de distribuição de medicamentos e a opção pela produção local. 

A indústria farmacêutica transnacional costuma defender as licenças voluntárias como uma forma de ampliar o acesso a medicamentos essenciais, mas, infelizmente, o Brasil tem sido sistematicamente excluído deste tipo de acordo, inclusive daqueles em que o Brasil participou dos ensaios clínicos e que visam facilitar o acesso a medicamentos relacionados à pandemia de HIV/AIDS. Essa exclusão tem resultado em uma situação preocupante, pois o país fica de fora de programas que poderiam garantir preços acessíveis e a ampliação do acesso a tratamentos vitais.

O recente relatório da Unaids destaca o caso do cabotegravir, uma PrEP de longa duração administrada por injeção, como um exemplo gritante das desigualdades de preços existentes. Estudos clínicos demonstraram que a PrEP injetável é mais eficaz na prevenção do HIV do que a PrEP oral diária. Contudo, o preço inicial de US$ 22.000,00 (vinte e dois mil dólares) por tratamento torna a opção inacessível para muitas pessoas.   

Embora um acordo de licenciamento tenha sido estabelecido para permitir que cerca de 90 países adquirissem versões genéricas mais baratas do medicamento, países como Argentina, Brasil, México e Tailândia foram injustamente deixados de fora desse acordo. Como resultado, esses países enfrentam um preço proibitivo e têm dificuldade em fornecer a seus cidadãos, uma opção adicional para se protegerem contra o HIV. É preocupante que os países excluídos do acordo representem aproximadamente 8% das novas infecções por HIV anualmente, o que evidencia a gravidade das consequências dessa exclusão e a falta de parâmetros epidemiológicos desses acordos. O cabotegravir recentemente teve o registro aprovado pela Anvisa, como parte de estratégia de prevenção, mas o seu preço proibitivo dificilmente permitirá a sua incorporação no SUS. 

Há um caminho anterior à decisão política de conceder licenças compulsórias ou da participação em acordos de licenças voluntárias: garantir um rigoroso padrão de qualidade na análise das patentes farmacêuticas para evitar a concessão de patentes indevidas. As patentes farmacêuticas têm um impacto significativo na política industrial e, principalmente, nas políticas de saúde pública. Governos devem estar atentos ao fato de que a concessão indevida de uma patente pode levar a consequências extremamente negativas, como limitar o acesso da população a medicamentos, vacinas, testes diagnósticos e outros produtos essenciais. 

Patentes matam 

Uma patente concede temporariamente o monopólio de comercialização de um produto e essa exceção ao princípio de livre iniciativa pode restringir o acesso ao produto, muitas vezes resultando em preços elevados e dificuldades de acesso para o governo e os consumidores. Para evitar distorções na concorrência e preservar o acesso a medicamentos já existentes, a proteção patentária, na perspectiva da saúde pública, deve seguir um padrão mais estrito para prevenir a proteção injustificada de matérias que apenas contribuem para limitar a concorrência e o acesso a medicamentos, prejudicando a saúde e a vida das pessoas. Patentes matam

O sistema de patentes é caracterizado como uma política territorial, uma vez que se fundamenta na atribuição de direitos exclusivos de propriedade intelectual a inventores e detentores de patentes dentro de uma região ou país específico. Essa abordagem permite que cada nação estabeleça suas próprias prioridades e adapte a política de patentes de acordo com suas necessidades, considerando cuidadosamente o impacto que ela tem na garantia do direito humano fundamental à saúde e ao acesso a medicamentos. Para assegurar um equilíbrio adequado, é fundamental que um exame mais rigoroso das patentes seja implementado, especialmente em relação a produtos e processos farmacêuticos, e que práticas abusivas – como o evergreening – sejam repelidas.  

Garantir o equilíbrio do sistema de propriedade industrial, impedir a concessão de patentes imerecidas e de práticas abusivas são medidas cruciais para facilitar o compartilhamento de tecnologia, o desenvolvimento da produção local e o acesso a medicamentos. Há que se destacar que o atual sistema de patentes é um veículo para a promoção de lucros e não de inovação. O caso recém-divulgado na mídia sobre a Gilead e o tenofovir evidencia como funciona o sistema de patentes, que incentiva a extração do máximo de lucro durante o período de exclusividade e não a “inovação”.  

O Brasil, até pouco tempo, adotava uma política de análise dupla de pedidos de patentes sobre produtos ou processos farmacêuticos. A anuência prévia pela Anvisa era uma estratégia preventiva com potencial de evitar os altos custos causados pelas patentes imerecidas e pelas tentativas de anular esses privilégios.  

Entre 2001 e 2021, a Lei de Propriedade Industrial previa, no artigo 229-C, que “A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”. Consistia em uma avaliação em colaboração com a análise feita pela Instituto Nacional da Propriedade Industrial, dificultando a concessão de uma patente imerecida. Entretanto, em 2021, por meio de uma emenda à MPV 1040/2021, a anuência prévia pela Anvisa foi revogada. Hoje, temos servidores de carreira fora de suas funções e a ausência do Estado brasileiro analisando os requisitos de patenteabilidade sob a perspectiva da saúde pública.  

Investir em uma resposta que promova o acesso equitativo a novas tecnologias é essencial para estabelecer as bases de uma resposta sustentável à Aids. O acesso a medicamentos e cuidados médicos tem sido fundamental para aumentar a expectativa de vida e melhorar a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV/AIDS. No entanto, o comprometimento excessivo do orçamento do SUS para a compra de medicamentos patenteados tem impedido investimentos em outros esforços importantes como o estímulo à pesquisa, produção local e o investimento em políticas de prevenção e educação.  

Alan Rossi Silva é coordenador de Assuntos Internacionais do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), advogado da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e doutorando em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). 

Susana van der Ploeg é coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), advogada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e doutoranda em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). 

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