24 de abril de 2024

Por João Marinho*

joaodonati2Infelizmente, a operação não é tão simples. O fato de ter havido relação sexual não afasta a hipótese homofóbica, e fiz questão de esclarecer em comentário a um artigo de qualidade bastante questionável escrito por Rodrigo Constantino para “Veja”. Segue abaixo, e sintam-se à vontade para dar uma “aulinha” sobre sexualidade para seus “colegas” que seguem o mesmo mantra.

As estatísticas sobre os crimes por homofobia estão corretas.

Antes de mais nada, respondendo a um comentarista abaixo, em “homofobia”, o -fobia se relaciona à aversão ao homossexual e/ou à homossexualidade, registro que lhes dão os dicionários. Não tem nada a ver com “medo”, que é o outro sentido que -fobia pode admitir.

É importante, inclusive, destacar que -fobia já tem esse primeiro uso consagrado na língua portuguesa: se você for a uma óptica e encomendar lentes de óculos hidrofóbicas, são lentes que não se mancham em contato com a água, e não lentes que dela fogem, assustadas.

Feito esse esclarecimento, o que se considera crime por homofobia?

É o crime que acontece motivado pelo ódio/aversão DO CRIMINOSO em relação à homossexualidade da vítima e/ou sua condição de gay/lésbica… Ou que, por essa condição, motiva-se uma maior brutalidade ou crueldade por parte do criminoso. Com um detalhe: a homossexualidade da vítima pode ser real ou suposta, ou seja, não é preciso ser gay para ser vítima de crime homofóbico. Um hétero “confundido” também pode ser.

Esse foco na atitude do criminoso em relação à orientação sexual da vítima retira a “responsabilidade” que artigos como este por vezes parecem atribuir à vítima. A rigor, pouco faz diferença se a vítima é gay ou não, se manteve relações sexuais ou não com o assassino, onde aconteceu o crime ou quais artifícios ou atitudes foram incluídos no processo que causou a agressão.

A homofobia transparece quando o CRIMINOSO, por acreditar que a vítima era gay, ou lhe agride especificamente por isso; ou sua condição de gay motiva uma maior hediondez do crime. Dessa forma, também não é relevante se o assassino é gay ou não.

É, em outros termos, a mesma relação que se estabelece no crime de estupro: neste, basta que a ação sexual não seja consentida. Não importa se, por exemplo, a vítima é esposa do agressor e com ele manteve relações consentidas por anos a fio anteriormente.

Um caso como este, de João Donati, é bastante ilustrativo disso.

A vítima pode ter tido relações sexuais com o assassino, o assassino pode até ser gay. Esse assassino agiu motivado pelo ódio ou aversão à homossexualidade de João ou sua condição de homossexual? É crime de homofobia. O fato específico de João ser gay foi índice que estimulou uma maior hediondez do crime, ainda que não seja seu motivo principal? É crime de homofobia.

Com efeito, essa questão tampouco é privativa dos gays. Estende-se também a outras minorias. Considere, por exemplo, um assassino neonazista que mata um judeu num contexto de roubo.

O motivo principal do crime foi o roubo (latrocínio), mas, se durante o decurso da ação, o fato de a vítima ser judia foi suposto pelo assassino e, POR CAUSA DISSO, este empregou uma série de métodos cruéis, hediondos, torturadores e despersonificadores na morte da vítima, afasta-se seu antissemitismo porque o primeiro motivador do crime foi o roubo? Creio que ninguém dirá que a resposta é sim. Com os crimes de ódio motivados por homofobia, é a mesma coisa.

Se o assassino, em vez de neonazista, fosse judeu e tivesse questões mal-resolvidas sobre isso? Afasta-se o fato de que, ainda assim, a vítima sofreu mais violência e tortura POR SER ELA judia no processo de morte e, portanto, houve antissemitismo? Creio que ninguém dirá que sim. Com os crimes de ódio motivados por homofobia, é a mesma coisa.

Se a vítima não era judia e usava a estrela de Davi apenas por uma questão de moda e estilo? Afasta-se o fato de que a maneira cruel com que foi morta tem relação com a suposição, por parte do assassino, de que era judia? Creio que ninguém dirá que sim – e o antissemitismo aparece novamente.

Discursos como o de Rodrigo Constantino acabam naturalizando uma violência que não pode ser naturalizada, como se o Brasil não fosse um país em que a violência homofóbica, em diferentes níveis (não precisa ser uma morte) grassa. Não há de ser assim, e o movimento LGBT não é “histérico” por pontuar isso. O fato de que milhares sobrevivem às investidas homofóbicas todos os dias não significa, per se, que estas não existam e, portanto, que não exista homofobia.

Evidentemente, como comentei em uma reportagem para a Revista Fórum, apenas a investigação finalizada poderá esclarecer todos os fatos para declararmos, definitivamente, se o crime teve ou não homofobia.

No entanto, até o momento, todos os indícios mostram que sim, e a homofobia deve ser considerada, minimamente, como bastante provável: se não como motivadora principal, como índice que aumentou a brutalidade do crime. O fato de ter havido relação sexual, como pontuei acima, não afasta essa hipótese: ao contrário, pode inclusive reforçá-la.

É importante, aliás, que isso faça as pessoas refletirem sobre a sexualidade média do homem brasileiro. Ao contrário do que prega o senso comum, que vejo esbanjado em textos assim, ocorre muito sexo entre homens em países de tradição machista como o Brasil e realmente, não, nem todos ocorrem entre gays. A sexualidade masculina é muito mais flexível do que crê a vã filosofia de tantos.

Gay, assim como hétero, lésbica, bi… É uma questão de orientação sexual. Pressupõe um desejo erótico e uma investida afetiva continuada em relação ao gênero da categoria de pessoas ao qual seu desejo se orienta (daí, orientação sexual). Isso, por fim, se reflete em sua própria identidade.

Não é, portanto, gay o homem que faz sexo com outro em troca de “uns trocados”, gosta mesmo é de mulher e, por nojo de se submeter a esse tipo de prostituição, mata a vítima. Também não é gay o homem que estupra outro especificamente para humilhá-lo, como em um contexto de prisão ou guerra, por exemplo, como acontece com estupradores em cadeias.

Gays se relacionam sexualmente com outros homens porque são gays – não são gays porque se relacionam com outros homens. Aliás, o gay não precisa se relacionar com qualquer pessoa – e pode ser perfeitamente celibatário.

O inverso também se sustenta. Não é porque um homem se relacionou com outro sexualmente que automaticamente ele é gay.

Falta um pouco de entendimento de sexualidade e psicologia antes de escrever e comentar artigos dessa forma.

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* João Marinho é ativista, jornalista diplomado pela PUC-SP e hoje atua como editor-chefe em veículos de conteúdo adulto, revisor e designer free-lancer.

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