Para participantes de “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, trunfo do filme é tratar de forma honesta um tema ignorado nas escolas: a orientação sexual dos jovens
Por Carol Almeida
Publicado na revista Carta Capital, em 10 de abril de 2014
Não há chamada no intervalo da novela, ator famoso no elenco ou combo promocional em alguma franquia de fast food. Ainda assim, não será exagero dizer que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é uma das estreias mais aguardadas do semestre entre os adolescentes brasileiros. Produção independente nacional, o primeiro longa-metragem do jovem diretor Daniel Ribeiro teve 13 de suas 15 sessões de pré-estreias pelo país esgotadas. O filme chega aos cinemas esta quinta, em 33 salas de 17 cidades brasileiras.
Trata-se de um lançamento bastante robusto para os padrões das produtoras que trabalham fora do esquema de distribuição das chamadas “majors” (como Warner, Fox, Disney e, no campo dos nacionais, a Globo Filmes). Para se ter uma ideia, uma das maiores marcas de público desses últimos anos entre os títulos brasileiros independentes pertence a O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, com quase 100 mil espectadores. Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) fez 120 mil e Cheiro do Ralo (2006) fez 200 mil.
Distribuído pela mesma Vitrine Filmes que banca agora o trabalho de Daniel Ribeiro, o filme de Kleber estreou em 13 salas em janeiro de 2013 (com o boca a boca e a crítica positiva do longa, esse número foi ampliado ao longo das semanas). A previsão agora é de que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho chegue próximo ou mesmo ultrapasse em braçadas esse volume de público.
Por trás de todo esse entusiasmo, existem diversos fatores: a qualidade inerente ao filme, uma linguagem bastante simpática ao grande público (incluindo pais), elenco super afinado e a premiada estreia no Festival de Berlim são alguns deles. Mas a força motora que transformou esse projeto em algo muito maior que um longa-metragem atende por um nome: fãs. E uma pequena parte deles está representada no próprio filme que chega agora aos cinemas. Pois todos os 70 figurantes que participam das cenas já eram admiradores desse roteiro há alguns anos.
Responsável por esse elenco de figuração, Zoe Guglielmoni lembra o processo de seleção: “Recebi cerca de 500 emails com fotos e mensagens de todo o tipo. Alguns desesperados queriam vir do outro canto do país. Recebi emails em espanhol. Teve gente que escreveu para dizer que não tinha a idade que buscávamos (entre 16 e 19 anos) mas que estava feliz em saber que haveria um longa baseado no curta”.
O curta que ela menciona é o começo de tudo. Lançado em 2010, é um filme que tem mais de 3 milhões de visualizações no YouTube. Se chama Eu Não Quero Voltar Sozinho e fala sobre esse adolescente cego (Guilherme Lobo) cuja rotina ao lado de sua melhor amiga (Tess Coelho) muda quando surge na escola um novo aluno (Fábio Audi), que termina despertando a sexualidade do protagonista e os ciúmes da menina. Com os mesmos atores, o longa amplia essa história e dá especial atenção a esse núcleo de socialização que é o caminho entre a sala de aula e o pátio do colégio.
“Uma coisa parecida aconteceu comigo recentemente. Minha melhor amiga estava gostando de mim e eu estava gostando do meu melhor amigo, que, claro, gostava dela”. O depoimento é de Matheus Arantes em um dos intervalos de filmagem do longa, em março de 2013. Ele e vários outros figurantes tentavam me explicar por que participar daquele filme era tão importante pra eles.
Em poucos minutos, me contam sobre seus respectivos processos de lidar com a questão da sexualidade em casa e fora dela: “Meus pais me mandaram pra psicóloga, fiz até regressão. Mas hoje entendo que ser gay é uma vírgula no livro de coisas que eu sou”, falava Giovanni Parizi, então com 17 anos. “Escrevi uma carta enorme pra minha avó contando tudo, mas ela terminou aceitando super bem”, lembrava Jonas Carvalho, 16 anos na época. “Tou pouco me fudendo para o que as pessoas vão falar de mim na rua”, afirmava Isabella Pilli, 18 anos.
Faltando aulas, trabalhando durante a madrugada, pegando dois, três ônibus para chegar aos sets de filmagem, eles falavam sem respirar sobre como é ser gay ou mesmo ser heterossexual em ambientes em completo descompasso com seu crescente processo de autoafirmação. Estamos diante de uma geração cada vez mais informada, via redes sociais, sobre seus direitos, e com muito mais acesso a obras e produtos de entretenimento, quase todos eles vindos de fora do Brasil, que os representem afetivamente de alguma forma.
Um ano depois, reencontro alguns deles poucas horas antes da sessão que foi aberta à equipe e convidados. Recém saídos de seus respectivos colégios, eles falam da importância de se ter um filme no Brasil que lide com a sexualidade no sempre confuso ambiente escolar. O discurso é sóbrio e politizado: “Na escola, você não pode obrigar a pessoa a pensar nada, o que eu acho é que não custa nada indicar a forma ética de se pensar. Por exemplo, na aula de sociologia que e gente tinha na escola, o professor falava da mulher e toda a luta delas fizeram por seus direitos. Acho que caberia também começar a falar das pequenas conquistas dos grupos gays na sociedade. Até porque crimes homofóbicos são hoje um dos maiores crimes de ódio no país”, opina Jonas.
Matheus é ainda mais assertivo: “Devia haver sim matérias, ou tópicos dentro de matérias, abordando o assunto de diversas formas. Exemplo: pega uma aula e explica o que significa gênero. Que as coisas não são tão simples como menino e menina. Mas no Brasil, a gente não tem sequer aula pra saber como trabalham os políticos, e vivemos reclamando deles sem saber nem qual é a função de um deputado. Imagina então uma aula sobre gênero!”
Isabella, que graças ao filme está estudando para passar no curso de cinema da FAAP, em São Paulo, lembra que todos os seus professores de escola sempre souberam de sua orientação sexual. “Nunca tive grandes problemas com isso. O único momento em que me senti mal foi quando teve uma peça na escola e, numa cena, uma das mulheres tentaria beijar a outra. E esse meu professor comentou que era um absurdo passar uma cena lésbica numa escola. Fiquei muito ofendida.”
No filme de Daniel Ribeiro, a questão do bullying entre colegas de sala pontua a história em vários momentos. Há um grupo de meninos que, com frequência, faz piadas com a proximidade entre os personagens de Leo, o menino cego, e Gabriel. Matheus, que pertence ao núcleo dos figurantes que estão nesse grupo, sentiu na pele como funciona a dinâmica do ambiente escolar quando nem mesmo os professores são preparados para lidar com a questão.
“Quando eu era representante de classe, ouvi de uma professora que ninguém ali precisava tratar do tema homofobia, porque eles sabiam que naquela escola não tinha nenhum ‘viadinho’. Esses colégios funcionam mais ou menos assim: ‘gays, a gente sabe que eles existem, mas quando aparecerem por aqui a gente vê como faz’. Todo o discurso para não tratar do assunto é sempre igual, justificam com frase como: ‘e se um pai vier bater na minha porta pedindo explicação?’”, diz Matheus.
A maior parte dos meninos e meninas que fazem o importante boca a boca do filme, tanto do longa quanto do curta, são adolescentes que entenderam nesse roteiro um farol emocional para problemas que eles não viam ser espelhados em programas de TV como Malhação, série da Globo que em suas 21 temporadas nunca mostrou um casal adolescente gay.
“O curta me ajudou muito em um momento muito triste pra mim, chorei demais assistindo. Nessa época, eu precisava de coisas que me dissessem que não havia problema nenhum em ser gay. Antes disso, cheguei a passar um ano frequentando a Igreja para tentar ser outra pessoa”, diz Anderson Perez, 19 anos, na fila para assistir a uma das pré-estreias do longa em São Paulo. Para ele, o êxito de Daniel Ribeiro é tratar o tema sem colocar o problema dos personagens em suas orientações sexuais, sem com isso deixar de mostrar nada. “Fui ver aquela versão nova de Confissões de Adolescente no cinema. E uma das meninas tem uma namorada que nunca aparece no filme. Não pode ser assim. A diferença pro filme do Daniel é essa”, completa.