Para especialistas, regime militar deixou na sociedade brasileira uma cultura de tolerância à violência contra os homossexuais que permanece viva até os dias atuais
Por Iran Giustim, do iG São Paulo
Publicado no portal iGay, em 5 de abril de 2014
“Apesar de sempre ter existido no Brasil, foi na ditadura que a homofobia se consagrou como política de Estado”. Com esta observação, o jurista Renan Quinalha, da Comissão da Verdade de São Paulo, resume o peso que o regime militar teve para a vida dos homossexuais brasileiros. Não só nos seus anos de existência, de 1964 a 1985, mas também depois do reestabelecimento do período democrático.
“Não foi só a política, mas também a cultura da sociedade que passou a ver com mais naturalidade a violência. Um momento em que o preconceito foi veiculado, instituído e legalizado pelo Estado e que interfere até hoje na vida dos LGBT”, prossegue Quinalha, que tem levantado relatos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros que viveram durante a ditadura. Os depoimentos darão origem a um livro sobre o tema.
No último fim de semana, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) tratou desta dolorosa herança da ditadura na vida dos LGBTs numa sessão realizada no Memorial da Resistência, em São Paulo.
“Durante a ditadura militar, a homofobia, traço incrustado desde sempre no funcionamento dos aparelhos estatais e nas atitudes da sociedade brasileira, acirrou-se. Havia repressão sistemática de homossexuais por parte do aparelho repressivo. Militantes gays humilhados nos interrogatórios e tortura. Espetáculos de travestis e transformistas censurados e proibidos. Publicações eram censuradas. A sociabilidade LGTB obrigada a se esconder e se reprimir”, opinou o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, na sessão da comissão.
Membro da CNV, Pinheiro deu seguimento ao seu discurso apontando que a homofobia persiste como um traço importante da sociedade brasileira. “Elas e eles (LGBTs) eram e são discriminados no mercado de trabalho, nas escolas e hospitais, maltratados por suas próprias famílias, identificados para serem espancados, agredidos sexualmente, torturados e assassinados.”
“Já é mais do que tempo, 25 anos depois do retorno ao constitucionalismo democrático, que o PLC122/2006, que criminaliza a homofobia, seja aprovado pelo Congresso Nacional” , concluiu Pinheiro, apontando a necessidade de imediata de se criminalizar as agressões contra a comunidade LGBT, que se acentuaram nos últimos anos no País.
HIGIENIZAÇÃO NO CENTRO DE SP
Coautor do já citado livro sobre a vida da população LGBT na ditadura, ao lado de Renan Quinalha, o americano brasilianista da Universidade de Brown James N. Green diz que os militantes gays tentaram resistir, mas foram fortemente reprimidos pelos militares. Ele pretende abordar esse aspecto na obra.
“Nossa ideia é documentar a repressão e resistência de homossexuais durante a ditadura, período onde ouve um impedimento nas organizações políticas e de vários ativistas gays e lésbicas que estavam dispostos, mas impossibilitados pela repressão”, explica Green, que também é autor da obra “Além do Carnaval – A Homossexualidade Masculina no Brasil do Século XX” (Editora UNESP).
Green esteve no Brasil durante a ditadura, aportando por aqui em 1976. O brasilianista atuou na época para aproximar a militância LGBT do movimento operário, liderado pelos metalúrgicos. Outro luta foi contra as tentativas de “higienização” do delegado seccional do centro de São Paulo José Wilson Richetti, que perseguia homossexuais que viviam ou frequentavam a região.
Segundo Quinalha e Green, cerca de 1500 pessoas foram presas na ocasião por conta desta política. “Existem reportagens do jornal Folha de S. Paulo que relatam de 300 a 500 prisões de travestis, prostitutas e gays na região do Arouche”, relata o jurista. “Foram diversos os tipos de violação de direitos humanos, muitas rondas, perseguições e acusações de crime de vadiagem”, completa o assessor da Comissão da Verdade paulista.
O escritor e ativista João Silvério Trevisan se lembra bem da atuação do delegado Richetti. Trevisan inclusive falou sobre ela no livro “Devassos no Paraiso” (Record). “Ele chegava num camburão no Arouche e gritava ‘quem for viado pode ir entrando’. Ele agredia quem estivesse nos bares”, relembra.
Nome histórico e fundamental do movimento LGBT brasileiro, Trevisan fundou em 1978 o grupo Somos, que atuava na afirmação da homossexualidade. No mesmo ano, ele também foi um dos criadores do jornal O Lampião, o primeiro veículo gay da imprensa brasileira, que teve sua publicação encerrada em 1981.
Para Trevisan, a relação de dependência com a esquerda é outra herança negativa do período não democrático. O escritor acredita que o movimento gay não avança por conta desta ligação. “Continua a mesma coisa, o PT nos apoia até o momento que interessa, isso ficou claro com a Marta Suplicy, que foi a primeira falar em união civil entre gays em 1995, mas quando chegou a prefeitura de São Paulo, em 2000, quis se desassociar para ser reeleita. O mesmo acontece com a presidente Dilma e o dito kit gay”, critica o escritor, lembrando da polêmica entorno do material educativo LGBT do Governo Federal, que foi barrado pela Presidência depois de pressão de grupos conservadores, em 2011.
Green vê outros resquícios danosos do regime militar, como a violência, uma polícia opressora e a falta de investigação e elucidação dos crimes.
“A militância gay não tem voz, poder. Ainda somos, infelizmente, vÍtimas desta herança e temos um governo que não valoriza os direitos plenos dos gays, lésbicas e travestis. Não houve um debate sobre o que é o direito do cidadão, e permanecem os atos controladores que são um produto da ditadura”, conclui o brasilianista.