10 de dezembro de 2024
natal

Yannik D´Elboux, do UOL

Publicado em 20 de dezembro de 2013

O sentimento de solidão, típico no final do ano
para quem não se relaciona bem com a família,
diminui quando há amigos por perto

Enquanto a maioria das pessoas tem o direito de levar seus namorados às festas de final de ano e demais reuniões familiares, homossexuais ainda precisam mentir (ou se omitir) para não serem rejeitados. Com a proximidade do Natal, a sensação de solidão parece mais intensa quando não se tem uma boa relação com parentes. Mas há quem encontre nos amigos o acolhimento que faltou em casa, até para a tradicional ceia.

Conviver com amigos evita ter de fingir ser o que não é ou situações desconfortáveis no núcleo familiar. Claro que isso não é regra, pois existem famílias que conseguem superar o preconceito e continuam a viver bem depois que um membro “sai do armário”. Entretanto, a não aceitação em muitas outras leva homossexuais a buscarem afeto e apoio nos amigos mais próximos, com quem acabam formando novos lares.

“Hoje em dia, minha família são meus amigos, as pessoas com quem moro, que me ligam para saber como estou”, afirma Enrique Cavalini, 21 anos de idade, que saiu de casa aos 19 e atualmente mora com duas amigas em Curitiba (PR). Apesar da boa relação que diz manter com a mãe, Enrique não tem mais contato com praticamente nenhum integrante da família.

O jovem nunca contou oficialmente sobre sua orientação sexual para os parentes, mas não a escondeu. “Foi sempre um assunto deixado na gaveta, e acho que isso é péssimo, pois gera distanciamento”, constata Enrique. Sem ânimo de encarar uma aproximação e eventuais julgamentos, ele prefere deixar a vida como está. “Não me encaixo porque tenho um pensamento totalmente diferente do deles, levo uma vida diferente, tenho prioridades diferentes”, diz.

Rejeição e preconceito

Para Edith Modesto, terapeuta, especialista em diversidade sexual e questões de gênero, fundadora e coordenadora do GPH (Grupo de Apoio a Pais de Homossexuais), os amigos são um bálsamo na vida dos gays, já que, no início, todos sofrem algum nível de preconceito e rejeição na família. “Os pais não foram preparados para ter filhos gays. E o preconceito é internalizado em todos nós”.

As amizades ajudam os homossexuais a não se sentirem sozinhos no mundo. E Modesto também acredita que a internet foi uma revolução na vida dos gays, pois os ajudou a formar grupos, a encontrar pessoas com quem se identificam, não os deixando isolados, como acontecia há algumas décadas.

“Ainda bem que existem os amigos. Gays não têm com quem falar sobre o assunto, sofrem sozinhos. Sofrem preconceito na escola e não têm para quem levar. A criança negra, no caso do racismo, tem a mãe pra consolar. O jovem LGBT não tem colo para chorar”, compara.

Também foi nos amigos que a cabeleireira Caroline Anjos de Castilho, 22 anos, de São Paulo (SP), encontrou suporte para tocar a vida, com menos problemas e mentiras. “Minha mãe sempre foi a minha melhor amiga”, lembra. Isso mudou depois que ela, aos 15 anos, revelou ser lésbica, após um processo doloroso de histórias inventadas para esconder sua verdadeira orientação sexual. “Eu não estava preparada para contar”, recorda.

Caroline Anjos de Castilho (esq.) mora com a namorada Laís Silva Aoki
e encontrou nos amigos o apoio e a compreensão que não teve em casa

Apesar de a mãe sempre ter lidado bem com os amigos gays de Caroline, quando a situação envolveu a filha, a reação não foi tão natural. “Minha mãe dava conselhos para eles. Mas, quando é em casa, a situação é diferente. Você aceita o outro, mas não seu filho”.

Edith Modesto conta que esse tipo de comportamento é muito comum entre os pais. “Quando o filho sai do armário, a mãe entra. É uma situação paradoxal. A mãe ama o filho, mas não consegue aceitá-lo como ele é. Ela fica fragilizada, os sonhos dela caem por terra. A mãe tem que reconstruir seus sonhos e elaborar aquele preconceito, que foi internalizado pela sociedade, pela cultura. Ela não tem culpa”, explica.

A coordenadora do GPH acrescenta que essa fase é tão difícil para os pais quanto para os filhos, que esperavam o amor incondicional.

Pacto do silêncio

Aos 18 anos, mais independente, Caroline decidiu morar com uma namorada e os amigos dela, que passaram a ser sua família. Depois que saiu de casa, o relacionamento com a mãe começou a melhorar. Ela já conheceu a nova companheira de Caroline, com quem a cabeleireira reside, e estão se reaproximando cada vez mais.

Entretanto, com os outros parentes, o contato ainda é distante. “Quase ninguém sabe, só os primos da geração mais nova. Fica uma relação muito superficial. Acabo preferindo os almoços de fim de semana na casa dos amigos”, diz Caroline.

Geralmente, pressupõe-se que é mais complicado para os mais velhos tolerarem a homossexualidade na família, contudo, não é o que Edith Modesto tem visto na prática, em seu trabalho no GPH. “Com a vivência, as pessoas tendem a dar valor ao que realmente importa: o sentimento, o amor. Os avós aceitam mais facilmente do que os pais”, segundo a terapeuta, também autora do livro “Mãe Sempre Sabe? Mitos e Verdades Sobre Pais e Seus Filhos Homossexuais” (Editora Record).

Embora os homossexuais enfrentem a rejeição, é cada vez mais raro o rompimento completo com a família. “Dificilmente, eles serão rejeitados por todos os parentes. O que a família prefere, às vezes, é dizer: ‘não traga seu namorado aqui’, ‘não quero saber’, mas a rejeição total não é tão comum”, afirma Miriam Pillar Grossi, pesquisadora, professora do Departamento de Antropologia e coordenadora do NIGS (Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades) da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Edith concorda que a rejeição definitiva é praticamente inexistente, como era comum há mais de 20 anos, quando ela iniciou o GPH. Entretanto, ela chama atenção para os diferentes graus de afastamento. “A rejeição se mostra de várias maneiras:  com a fisionomia triste, com o silêncio, não voltando a conversar sobre o assunto”, exemplifica. 

Hoje em dia, segundo a coordenadora, o trabalho de reaproximação na família desenvolvido pelo GPH e pelo Projeto Purpurina, voltado aos jovens, ficou mais curto. O que antes demorava de quatro a cinco anos para dar resultado agora costuma levar de um a dois anos.

Apesar de achar que o primeiro passo nessa aproximação deveria ser dos pais, Edith diz que isso nem sempre é possível. “É uma injustiça o filho ter de dar o primeiro passo, mas, às vezes, tem de ser assim, porque o preconceito é mais forte nos pais”.

Família que se escolhe

A importância dos amigos no dia a dia dos gays remete ao conceito de família que se escolhe. A pesquisadora Miriam Grossi conta que esse modelo surgiu, principalmente, a partir do trabalho da antropóloga norte-americana Kath Weston, que publicou um livro a respeito, com base no fenômeno vivido por muitos homossexuais nos 1980 nos Estados Unidos, infectados pelo vírus da AIDS e abandonados por suas famílias. “Eram os amigos que acabavam cuidando deles”, analisa.

A família que se escolhe pode suprir a falta ou até substituir a família biológica? Essa não é uma pergunta de simples resposta. Para Miriam, outros fatores sociológicos estão envolvidos na questão, como faixa etária e fase da vida em que a pessoa se encontra.

A pesquisadora da UFSC fala que, para os jovens e adolescentes, os amigos são mais importantes no cotidiano do que a família. “Torna-se mais problemático quando as pessoas saem da faculdade. Porque socialmente se espera que, depois dos 25 anos, o indivíduo se case ou apresente o namorado ou a namorada à família. É quando começa uma pressão”.

Miriam diz que esse costuma ser o momento mais decisivo na vida dos gays, quando têm de revelar sua orientação sexual ou inventar desculpas para acalmar as expectativas familiares. E por mais que as amizades ajudem, Edith Modesto acredita que ficar longe da família consanguínea atrapalha a felicidade.

Todos sonham com uma família compreensiva, que apoie suas escolhas e respeite sua identidade. Porém, a professora da UFSC explica que as relações familiares são, por si só, um campo de tensão e conflito, longe de ser uma exclusividade dos gays. 

“Conflitos em famílias completamente heterossexuais são frequentes. As pessoas não são modelos de felicidade. É importante relativizar que não são só os gays sofrem na família”.

O sonho da cabeleireira Caroline Castilho não é ter uma família perfeita, mas pelo menos ser aceita com sua namorada nos encontros e conviver com a mãe e os parentes como acontecia antes. “Sinto falta de poder levar minha namorada aos almoços de família. Todos os meus primos podem, mas eu, não”.

Já para Enrique Cavalini a reaproximação com os parentes não é preocupante no momento. Nem a proximidade do Natal, data tão típica das reuniões familiares, parece inquietá-lo. Ele está satisfeito com a programação: “Vou passar em casa com os amigos”. 

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