27 de abril de 2024

Reconhecimento das nossas existências pelas instâncias institucionais não é algo dado, mas, sim, uma disputa constante

Céu Cavalcanti
Publicado pelo portal Terra, em 17/10/2023

Foto: iStock/Eva HM

Esses dias, vimos uma discussão ser reacendida. Foi aprovado na Comissão de Previdência, Assistência Social , Infância, Adolescência e Família da Câmara de Deputados, em Brasília, um projeto de lei que veta a possibilidade de reconhecimento de casamento entre pessoas não heterossexuais. Esse evento chega em diferentes espaços de movimentos sociais como um lembrete de que Estado está em disputa constante com nossa comunidade. E de que nossas vidas são sempre negociáveis na grande e complexa mesa de acordos e concessões. 

Algumas coisas me chamaram atenção com essa movimentação e cabe uma breve reflexão sobre isso. Um primeiro ponto é que a possibilidade remota de um retrocesso nos processos de reconhecimento por parte do Estado gerou diferentes níveis de reação. Desde posições sensatas marcando a inconstitucionalidade de legislar para retirar um direito para alguns grupos e manter esse mesmo direito para outros, até posições um pouco mais desesperadas, que produziram até uma ótima declaração do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans) pedindo calma e explicando que foi só uma comissão, que o projeto de lei percorre um longo caminho legislativo e não era momento de desesperar sem estratégias. 

Pensando em paralelo, um espanto me tomou enquanto pergunta que ficou aqui comigo: o que significa ser reconhecide pelo Estado? Quem é reconhecide e quais estratégias são possíveis quando não somos? Sendo uma travesti, me peguei de sustos lembrando que, para além das gambiarras legais, faz somente pouco mais de um ano que “nasci” para esse estado enquanto Céu.

Faz só pouco mais de um ano que minha nova certidão de nascimento me foi entregue e, com isso, reivindiquei reconhecimento em todos os outros documentos. Mas e antes disso? Antes disso o Estado ignorava completamente minha existência no feminino e com meu nome. Ainda assim, pude compor alianças estratégicas e inventar vida e disputar instâncias desse mesmo Estado. Reconhecimento produz acessos que produzem dignidade. Mas quando esse reconhecimento não existe pelas vias oficiais, pessoas trans, faz gerações, cavam reconhecimento nas vias marginais, entre as nossas, nos espaços favoráveis e desde onde nossa vida é viabilizada.

Com ou sem reconhecimento do Estado, seguimos aqui ocupando, inventando e disputando, inclusive, esse mesmo Estado que nos ignorava. Hoje, vai ficando cada vez mais difícil fingir que não estamos aqui, ao mesmo tempo em que, acompanhando as repercussões da notícia do projeto de lei, fico certa de que, nas relações de invisibilidade ou reconhecimento, a cisgeneridade pode ainda aprender muito com as estratégias políticas e de sobrevivência cotidiana de pessoas trans. 

Reconhecimento é fundamental e, junto com políticas de acesso e redistribuição, nos inaugura como sujeitos de direitos, mas, para muitas de nós, reconhecimento das nossas existências pelas instâncias institucionais não é algo dado, mas, sim, uma disputa constante que nos convoca a entender os limites e potencialidades desse mesmo reconhecimento. 

Há aqui uma pista de aterramento de expectativas: com os pés no chão, quais as condições do reconhecimento  e quais os termos nos quais ele ocorre? Quais ganhos em termos de garantia de direitos que podem vir desse reconhecimento e quais alargamentos no imaginário social e na relação das pessoas com a diferença que podem vir daí? Para mim, hoje, essas são as perguntas que me ficam. 

Mas, enquanto isso, seguiremos aqui, sussurrando ou mesmo gritando se for preciso para lembrar essa cisgeneridade fundamentalista de que, queiram ou não, seguiremos ocupando e disputando o mesmo Estado que eles acreditam ser unicamente deles.

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