26 de abril de 2024

Trata-se de uma legalização do direito a propagar discursos de ódio a quem quer que seja, o que pode gerar consequências extremamente violentas para diversos segmentos da sociedade.

Por Murilo Araújo
Ilustração de Vic Matos
Originalmente publicado no site Vestiário, em 22 de outubro de 2013

vestiario

Fundamentalistas cristãos são pessoas que parecem não medir nenhum esforço na hora de nos surpreender, especialmente quando envolvidos na política. Quando a gente menos espera, quando a gente acha que eles já gastaram toda a cota de imbecilidade que podiam forjar nas suas bíblias, quando a gente acha que não há mais projetos de lei mirabolantes para a bancada evangélica criar, eles abusam da criatividade e aparecem com ideias que fariam a gente rir até ter vontade de curar a homossexualidade, não fosse o fato de as coisas serem muito sérias e muito preocupantes.

O mais recente absurdo saído da mente dessa turma foi o projeto aprovado na última semana na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados – sim, a comissão de Feliciano. Para resumir, a proposta quer que discursos discriminatórios deixem de ser punidos como crime quando forem decorrentes de crença religiosa. Além disso, pretende dar às igrejas o direito de impedir em seus templos a presença de “cidadãos que violem seus valores, doutrinas, crenças e liturgias”. Em palavras diretas, pedem o direito de falar o que quiserem, sem consequências, e a liberdade de “vetar os gays” dos seus templos, que apesar de não aparecerem no texto do projeto de lei, são explicitamente mencionados na justificativa apresentada ao Congresso pelo seu autor, o deputado federal Washington Reis, mais um membro da bancada evangélica.

Um primeiro problema que me vêm à cabeça quando analiso uma lei como essa é, basicamente, uma questão “burocrática”, mas que não deixa de ser uma questão de lógica. É o seguinte: por determinação legal, as igrejas brasileiras são isentas do pagamento de impostos ao Estado; e por mais que saibamos da alta e absurda carga tributária do país, é necessário ter consciência de que algumas taxas são cobradas porque realmente precisam ser pagas, geralmente para cobrir despesas relativas ao próprio funcionamento de um governo. Nesse caso, vale a pergunta: se as igrejas não pagam impostos (ao contrário de gays e lésbicas), quem cobre as despesas que ela gera? Ganhou um doce quem respondeu que são possivelmente muitas das pessoas que ela teria direito de expulsar, caso uma lei como essa fosse aprovada… Complicado, né? E não quero com isso dizer que o Estado e a população devem se sentir no direito de se meter deliberadamente no funcionamento e no espaço de culto das diversas religiões, porque entendo a razão da isenção: as igrejas não pagam impostos porque, através de seus trabalhos sociais, encontram outros mecanismos de contribuir com o desenvolvimento da sociedade.

Sabemos, porém, que o dinheiro das igrejas tem ido cada vez menos para intervenções sociais relevantes, se acumulando progressivamente em bolsos de pastores e em investimentos na compra de horários nos canais de televisão – que estes líderes usam para arrecadar ainda mais dinheiro. Quer dizer: as igrejas já não respondem aos interesses da sociedade, e ainda querem o direito de se livrar da resposta que deveriam dar à sociedade por causa dos seus discursos discriminatórios – e, portanto, criminosos. Tudo baseado no suposto princípio da liberdade religiosa.

Mas apesar de isso tudo já ser uma grande incoerência, ainda penso que talvez este não seja o problema mais grave. O que me incomoda de maneira mais significativa é ver um projeto de tamanha proporção sendo criado e aprovado exclusivamente por causa da implicância dos religiosos com os LGBTs. Para ficar evidente como a coisa é séria: para efetivar sua proposta, o projeto pretende alterar a redação do artigo do código penal que define a punição pelos crimes de discriminação. Ao mencionar que o crime não deve se aplicar a casos de “manifestação do pensamento decorrente de ato de fé”, sem especificar quais casos seriam esses, o projeto abre margem para questões muito mais amplas e graves do que a homossexualidade em si mesma – que por si só, já seria bastante problemática.

Em outras palavras, trata-se de uma legalização do direito a propagar discursos de ódio a quem quer que seja, o que pode gerar consequências extremamente violentas para diversos segmentos da sociedade. Na sua repulsa desmedida aos praticantes do sexo “não-procriativo”, a bancada evangélica do Congresso ameaça significativamente o avanço da sociedade como um todo – e, o que é pior, com aval do governo, que tem um fundamentalista no comando da comissão de minorias e uma presidente que apenas finge que nada está acontecendo.

É necessário e urgente que alguém dê freio nos desmandos dessa turma que não respeita a laicidade do estado – e essa iniciativa precisa partir tanto de outros políticos quanto de nós, sociedade. Ou isso, ou já podemos sentar e esperar a próxima ideia brilhante de mais um fundamentalista. Se as minhas previsões estiverem corretas, o próximo passo será exigir a instalação – com dinheiro do governo – de um detector de viadagem na entrada de cada igreja do Brasil. Tudo em nome da fé, da moral e dos bons costumes.

Fonte: http://vestiario.org/2013/10/22/a-luta-fundamentalista-pelo-direito-de-odiar/

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