Cleyton Feitosa
Publicado no portal Observatório das Eleições, em 31 de agosto de 2018
Com o término do prazo para registro de candidaturas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no último 15 de agosto, já temos acesso integral aos Planos de Governo dos presidenciáveis no pleito eleitoral de 2018 [2].
Embora pouco acessados, os Planos de Governo são documentos interessantes em termos de posicionamento das candidaturas sobre os mais variados temas, podendo auxiliar na escolha do voto a partir das afinidades entre as preferências dos eleitores e as propostas dos candidatos. Do ponto de vista da pesquisa, também se constituem como ricas fontes de dados já que, além das propostas para um provável governo, as candidaturas expressam diagnósticos da realidade, concepções e visões de mundo sobre diferentes problemas de ordem coletiva.
Um desses problemas coletivos é a violência dirigida contra a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) no Brasil. Trata-se de uma maioria minorizada pelas normas hegemônicas de gênero e sexualidade que regulam corpos, afetos e performances.
Do surgimento do Movimento Homossexual Brasileiro (como era chamado antigamente) em meados da década de 70 até os dias de hoje, essa população vem dando passos largos no que diz respeito à visibilidade da agenda política na opinião pública, à conquista de direitos e à incorporação de suas demandas na política institucional. Não foram à toa as decisões favoráveis do Supremo Tribunal Federal em 2011 e 2018 [3] e a implementação de políticas públicas a partir do saudoso Brasil Sem Homofobia [4] no ano de 2004 (FERNANDES, 2011).
Esses avanços têm gerado também muitas reações contrárias, principalmente no Legislativo brasileiro, através da famosa bancada da bíblia. A despeito dessas reações, o Movimento LGBT tem conseguido ocupar parte da política institucional (com a criação de Setoriais LGBT nos partidos políticos, por exemplo), lançar candidaturas próprias e pautar candidaturas mais amplas, como as dos presidenciáveis. Este artigo visa analisar se e como aparece a temática da diversidade sexual e de gênero nos Planos de Governo das candidaturas à Presidência da República nas eleições de 2018 apresentadas ao TSE.
Foram registradas 13 candidaturas ao órgão que regula as eleições no país. Até a escrita deste artigo, a maioria delas estava aguardando julgamento pelo Tribunal, com exceção de Cabo Daciolo, Guilherme Boulos, João Amoêdo, Marina Silva e Vera Lúcia, que tiveram seus pedidos deferidos. Passemos ao levantamento dos Planos de Governo que abordaram a temática da diversidade sexual e de gênero, independente do teor.
A leitura dos Planos de Governo demonstrou que 9 das 13 candidaturas (ou seja, quase 70%) abordam a temática LGBT. O dado revela a grande penetração da pauta na sociedade política, possivelmente um reflexo das interações da militância com o Estado, para além de outros fatores como a inserção do tema nas mídias sociais, nas representações artísticas, culturais e midiáticas. Do total de candidaturas registradas, apenas Álvaro Dias (PODE), Eymael (DC), Henrique Meirelles (MDB) e João Amoêdo (NOVO) ignoraram a questão. Veremos a seguir a abordagem nos documentos (se negativo ou positivo).
De acordo com o Gráfico 2, a maior parte das candidaturas aborda positivamente a temática LGBT, ou seja, apresenta diagnósticos sobre a realidade dessa população no país, seguidos de propostas para superar os desafios. Das 9 candidaturas que abordam a questão LGBT apenas 2 (22,3%) o fazem de maneira negativa, isto é, atacam a pauta do Movimento LGBT e se utilizam dela para formar a sua plataforma política reacionária. Como esperado, trata-se das candidaturas de Jair Bolsonaro (PSL) e Cabo Daciolo (PATRI).
O programa de Jair Bolsonaro, na seção “Educação”, afirma que o “conteúdo e método de ensino precisam ser mudados. Mais matemática, ciências e português, SEM DOUTRINAÇÃO E SEXUALIZAÇÃO PRECOCE”, assim mesmo em caixa alta (Plano de Governo – Jair Bolsonaro, p. 41). Trata-se das principais bandeiras empunhadas pelo movimento Escola Sem Partido e pela retórica da chamada Ideologia de Gênero.
Já o risível Cabo Daciolo, em seu “Plano de Nação para a Colônia Brasileira”, como é intitulado o seu Plano de Governo, diz que “Não é possível conceber que a família em seus moldes naturais seja destruída, que a ideologia de gênero e a tese de legalização do aborto sejam disseminadas em nossa sociedade como algo normal; que até mesmo a pedofilia seja estimulada de forma sorrateira por aqueles que querem destruir o que há de mais sagrado na sociedade, simplesmente para dominar e oprimir. Isso não é laicidade. É a desmoralização da Pátria” (Plano de Governo – Cabo Daciolo, p. 41).
Embora ambos não façam menção explícita à população LGBT, trata-se claramente de uma ofensiva moral contra as agendas políticas da militância, principalmente aquelas que reivindicam ações de inclusão e respeito à diversidade sexual e de gênero nas escolas transmutadas na famosa “ideologia de gênero”: um plano malévolo de feministas e LGBT para converter crianças em homo e transexuais e destruir a sagrada família nuclear heterossexual. Outro estigma historicamente imposto à população LGBT, a pedofilia, também é mobilizado por um dos candidatos, o que indica que, ainda que de modo implícito, trata-se de clara menção ao segmento. Esses dados revelam que, para o bem ou para o mal, a luta pelo reconhecimento da diversidade sexual e de gênero estará presente no pleito eleitoral.
Felizmente, quase 80% dos Planos de Governo que abordam a temática LGBT o fazem de maneira positiva, apresentando diagnósticos, reconhecimentos e propostas para combater a LGBTfobia. Ciro Gomes (PDT), Geraldo Alckmin (PSDB), Guilherme Boulos (PSOL), João Goulart Filho (PPL), Lula (PT), Marina Silva (REDE) e Vera Lúcia (PSTU), de modo mais ou menos detalhado, sinalizam incluir a população LGBT em um provável governo. Vamos à análise individual de cada Plano.
Ciro Gomes (PDT)
O cearense, conhecido pelo seu interesse e inserção nos debates sobre a economia nacional, apresenta 14 propostas para a população LGBT, sendo 13 delas na seção “respeito à população LGBTI” e 1 na seção “respeito à juventude”. Dentre elas, destacam-se a promessa de criação de uma Secretaria Nacional de Políticas Públicas LGBT, algo até então inédito na implementação de políticas para essa população no país, implementação efetiva do Plano Nacional LGBT (documento lançado em 2009 no Governo Lula), criação de meios para coibir crimes LGBTIfóbicos, fortalecimento do Disque 100 (canal de denúncias de violações de direitos humanos gerido pelo Ministério de Direitos Humanos), inclusão da temática no Plano Nacional de Educação, articulação para criar um Estatuto das Famílias (no plural) e da Diversidade, ações na saúde e apoio à legislações específicas.
Geraldo Alckmin (PSDB)
De maneira muito parcimoniosa, o Plano de Governo do tucano promete apenas “estabelecer um pacto nacional para a redução de violência contra idosos, mulheres e LGBTI e incentivar a criação de redes não-governamentais de apoio ao atendimento de vítimas de violência racial e contra tráfico sexual e de crianças” (p. 11). Interessante notar que o PSDB propõe responsabilizar a sociedade civil, por meio de organizações não-governamentais (e não o Estado), pelo atendimento das vítimas de violações de direitos humanos.
Guilherme Boulos (PSOL)
Com 238 páginas, um número bem acima dos demais, o Plano de Governo do ativista do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e candidato pelo PSOL, Guilherme Boulos, apresenta um rol vasto de propostas para a população LGBT. Uma simples busca pela palavra-chave ‘LGBT’ resultou em um total de 73 resultados no arquivo. O texto revela que a temática da diversidade sexual e de gênero, mais do que um tópico ou uma linha de ação, assume centralidade em todas as políticas sociais previstas em um eventual governo PSOLista. Assim, as propostas aparecem em uma seção específica chamada “Diversidade importa! Um programa para a cidadania LGBTI” que se desdobram em subseções como “família”, “pessoas trans”, “escolas”, “emprego, renda e moradia”, “segurança” e “saúde integral”. Além disso, em outras seções também são apontadas ações para o segmento LGBT (educação, saúde, segurança, assistência social, cultura, comunicação e juventude). Com efeito, é o Plano que mais se aproxima do conjunto de reivindicações e demandas do Movimento LGBT. Dentre as inúmeras propostas, destaco o seguinte trecho que, na minha avaliação, sintetiza o projeto político da candidatura: “Garantir a cidadania da população LGBTI como política de Estado, que jamais será relegada a um segundo plano ou negociada em troca de acordos políticos, eleitorais ou de governabilidade” (p. 63).
João Goulart Filho (PPL)
O Plano de Governo de João Goulart Filho não apresenta nenhum diagnóstico sobre a realidade da população LGBT, mas promete, no ponto 18 do documento, que sua política será intolerante com qualquer tipo de discriminação. Suas propostas para a população LGBT são detalhadas na página 13 e concentram-se mais na qualificação do atendimento no serviço público. De fato, o combate à LGBTfobia institucional é uma ação importante e necessária, mas só ela não é suficiente para assegurar direitos e prover mudanças culturais de maneira mais enfática.
Lula (PT)
Apesar de aparecerem propostas nos eixos de educação, saúde, segurança e políticas para mulheres, é na seção “afirmação de direitos” que aparece a maioria das ações voltadas para o segmento LGBT no caso do plano petista. Assim, o documento se compromete a promover o direito à vida, ao emprego e à cidadania LGBTI+ [5] com prioridade para as pessoas em situação de pobreza. Fala em superação da violência e fortalecimento do Sistema Nacional LGBTI+ por meio da instituição de uma Rede de Enfrentamento à Violência contra LGBTI+, fala também em fortalecimento da Política de Saúde Integral, ações na educação e no combate à mortalidade de pessoas trans. O Plano de Governo do PT promete ainda nacionalizar o Transcidadania, experiência que ficou famosa na Prefeitura de São Paulo na gestão Haddad por incluir pessoas trans nos serviços municipais junto com uma bolsa visando à qualificação educacional e profissional de travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade.
Marina Silva (REDE)
Nas eleições presidenciais de 2014, a candidata Marina Silva recuou nas propostas para a população LGBT, após cobrança de setores vinculados às Igrejas Evangélicas. Agora, em 2018, seu Plano de Governo é mais assertivo. Fala em combate à discriminação nas escolas, em garantia e ampliação do acesso à serviços de saúde integral, em políticas de prevenção da violência e em garantir acesso no mercado de trabalho. Informa ainda que o Plano Nacional LGBT (aquele lançado em 2009) será considerado na elaboração de políticas públicas, promete acatar a demanda por uma legislação que regulamente o casamento civil igualitário e defender tratamento igual para casais adotantes.
Vera Lúcia (PSTU)
Intitulado “16 pontos de um programa socialista para o Brasil contra a crise capitalista”, o Plano de Governo do PSTU apresenta propostas para a população LGBT no 15º ponto. O documento defende a criminalização da LGBTfobia, o reconhecimento das identidades trans, a despatologização da transexualidade, a regulamentação do nome social (uma pauta já datada desde março de 2018 quando o STF autorizou a mudança de nome civil e gênero sem a necessidade de laudos médicos ou da entrada em processos judiciais), a garantia de atendimento médico pelo SUS e uma educação que ensine o respeito à diversidade. As propostas são concluídas com um “não ao Escola Sem Partido” (p. 4).
* Doutorando em Ciência Política – UnB. RESOCIE – Repensando as Relações entre Sociedade e Estado
[1] Agradeço a colaboração de Marisa von Bülow e Maria Alice Silveira Ferreira que revisaram uma versão preliminar do artigo e contribuíram significativamente para a versão final do texto.
[2] Os Planos podem ser acessados aqui: http://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/municipios/2018/2022802018/BR/candidatos. Acesso em: 24.08.2018
[3] Casamento igualitário e reconhecimento de demandas das pessoas trans, respectivamente.
[4] Lançado em maio de 2004 no Governo Lula, o “Brasil Sem Homofobia: Programa de Conbate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual” se tornou um marco na implementação de políticas públicas LGBT no Brasil. O programa previa ações articuladas em diferentes Ministérios (Educação, Saúde, Segurança, Cultura, etc.) do Executivo Federal.
[5] Sigla adotada no programa de governo do PT. O + simboliza outros/as sujeitos/as não identificados ou representados na sigla tradicional.
Referências
FERNANDES, Felipe Bruno Martins. 2011. 422 p. A agenda anti-homofobia na educação brasileira (2003-2010). Tese (Doutorado em Ciências Humanas), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.