Vinícius Lisboa
Publicado pela Agência Brasil, em 29 de agosto de 2015
Além dos quatro clientes que Giowana Cambrone, de 35 anos, defendeu nas ações de requalificação civil, outro processo levou a advogada ao tribunal para a troca de nome e gênero nos documentos de identificação: o dela própria.
Sem uma lei que defina os procedimentos da alteração dos documentos para pessoas transexuais, essa parcela da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros) é obrigada a procurar na Justiça o reconhecimento de sua identidade em processos que podem ser longos e que dependem do entendimento dos juízes.
Hoje com o nome correto e o gênero feminino respeitado em todos os documentos, Giowana conta que enfrentou vários obstáculos até conquistar esse direito.
“Não aceitam que você se autodeclare mulher. Você não pode dar o seu nome. Exigem um profissional de saúde que diga quem você é”, destaca. “Sua declaração é o que menos conta. A pessoa trans precisa que alguém ateste, confirme e comprove que ela pode ser reconhecida por aquele nome.”
Para a advogada, a exclusão sofrida pela população transexual tem muito a ver com a dificuldade para a mudança de nome e gênero nos documentos. Segundo ela, o constrangimento de ter de expor sua condição e reivindicar o tratamento pelo nome escolhido a cada consulta ou entrevista para vaga de emprego afasta as pessoas trans de processos seletivos e de locais de atendimento médico.
“Já teve dia em que cheguei ao local do processo seletivo e desisti. Preferi ir embora do que passar mais uma vez [por constrangimentos]. Tem dia que a gente está mais frágil, e a pessoa trans tem que enfrentar uma batalha todo dia.”
Bianca Figueira Santos, de 43 anos, deu entrada no processo de alteração de nome e gênero em 2010 e, em 2012, obteve a decisão do juiz que alterou sua certidão de nascimento. A partir daí, ela procurou os diversos órgãos públicos para corrigir sua identificação em documentos, incluindo a Marinha, da qual é oficial. A maior parte deles foi rápida, mas a identidade demorou oito meses para ficar pronta.
“Já fui muito constrangida antes de trocar os documentos. Invariavelmente enfrentava com situações, como em laboratórios médicos, em que mesmo falando para a pessoa qual era o meu nome, ela não respeitava.”
Hoje, a oficial da Marinha cursa direito e tem seu nome respeitado em sala de aula. Para ela, a mudança de documentos foi o principal passo para conquistar a liberdade.
“O ato de alterar os seus documentos é mais importante que a cirurgia de trangenitalização. Ele dá para você uma liberdade muito grande de afirmar quem você é e quem você deixa de ser”, diz ela, que defende a aprovação de uma lei para que não seja mais necessário recorrer à Justiça. “Seria mais adequado e razoável. O Judiciário necessita de ser desafogado. Se tirássemos essa responsabilidade das mãos dos juízes teríamos uma Justiça melhor.”
Atualmente, tramita na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei João Nery (5002/2013), dos deputados Jean Willys (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF), que determina que o reconhecimento da identidade de gênero é um direito do cidadão. O projeto recebeu o nome do primeiro transhomem operado no Brasil.
Enquanto uma lei não garante esse direito, a Agência Brasil procurou advogados especialistas no tema para dar orientações sobre os documentos necessários para tentar agilizar o processo de alteração de documentos na Justiça. Veja, abaixo, os principais pontos citados por esses profissionais:
1) É necessário advogado ou defensor público
A presidenta da Comissão de Direito Homoafetivo da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Raquel de Castro, lembra que, por se tratar de um processo judicial, é preciso buscar um advogado. “O tempo dos processos varia, mas não são processos muito rápidos, como tudo na Justiça”. Caso não tenha dinheiro para pagar pelo auxílio profissional, a pessoa pode recorrer à defensoria pública.
2) Laudos médicos
A advogada Giowana Cambrone critica a necessidade de laudos psiquiátricos ou psicológicos nas ações judiciais de requalificação civil, uma vez que isso reduz a importância da autodeclaração. Mas como essa, em geral, é uma exigência do juiz, a advogada recomenda se prevenir. “Aquelas pessoas que têm um acompanhamento psicológico e psiquiátrico ou que já fazem parte do tratamento de redesignação do Sistema Único de Saúde [terapia hormonal e acompanhamento psicológico para cirurgia] podem colocar essas informações no processo”, explica Giowana. Ainda segundo ela, o magistrado pode pedir um outro laudo de profissionais da própria Justiça.
3) Não precisa de cirurgia
A advogada Patrícia Sanches, especialista em processos de requalificação civil, considera prioritário que as pessoas saibam que não é preciso fazer qualquer tipo de cirurgia para pedir a correção dos documentos. “Diferentemente do que as pessoas normalmente pensam, não há uma determinação de que a pessoa já tenha realizado algum tipo de cirurgia. O posicionamento do Tribunal do Rio e as decisões do Supremo têm demonstrado que essa análise deve ser feita pela identidade de gênero.”
Patrícia vai conduzir uma oficina no 1º Congresso Internacional de Direito Homoafetivo da OAB-RJ, no mês que vem, em que vai discutir pontos relevantes para defender casos como esse. “O interessante é começar pela certidão de nascimento. Quando você altera a certidão, você altera todos os outros documentos depois, juntando a nova certidão com a sentença do juiz”, explica. “A sentença é uma decisão judicial. Tem que ser obedecida. Caso a pessoa encontre algum tipo de dificuldade, pode-se pedir que o próprio juízo oficie o órgão.”
Caso seja casado ou divorciado, o interessado na mudança de documentos também pode pedir a alteração da certidão de casamento já no início do processo, ou corre o risco de ter que entrar com uma segunda ação.
Foi o que aconteceu com a oficial da Marinha Bianca Figueira que, durante a tramitação do processo de requalificação civil, obteve a averbação de divórcio no nome que, na época, tentava trocar. Apesar de ter tentado estender os efeitos da sentença que garantiu o uso do nome Bianca, a Justiça decidiu em duas instâncias que o processo já estava finalizado e que seria necessário dar início a outro.
“Imagina se eu tiver que passar pelos mesmos constrangimentos da primeira ação. Ela não foi nada fácil”, conta. “É um processo demorado, horrível, constrangedor e que te humilha. Parece que você está pedindo um favor.”
3) Provas do uso do nome social
Na hora de convencer o juiz de que o nome social representa a identidade de seu cliente, os advogados podem usar vários tipos de registros como evidências. “Quando pedir recibo, peça tudo no nome social. Táxi, padaria, farmácia. O máximo possível. Faça a carteirinha do SUS no nome social. Além disso, já existem bancos que permitem o cartão no nome social”, diz a advogada Adriana do Valle.
Fotos também podem ser usadas, complementa Patrícia Sanches, e quanto mais antigas elas forem, melhor. “Se o cliente está dizendo que a identidade vem desde cedo, vamos tentar demonstrar desde cedo. Fotografias da infância e da juventude servem. Normalmente, a identidade de gênero aflora muito na adolescência.”
O uso do nome social em redes sociais também pode valer como prova. “Faça logo um Instagram, um Facebook, o máximo de redes sociais possível no nome social para que possa usar como prova. Tudo isso mostra que você é reconhecido e se relaciona com o nome social”.E-mails antigos e documentos do local de trabalho também contam nessa hora”, diz Adriana do Valle.
4) Documentos escolares
Desde o dia 12 de janeiro deste ano, uma resolução sem força de lei do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais recomenda que instituições de ensino usem o nome social em documentos como lista de frequência, boletins e matrículas. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) também já permite o uso do nome social. Algumas instituições de ensino superior também garantem o direito ao uso do nome social.
Edição: Lílian Beraldo
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