19 de março de 2024

Desde 2016, o Grupo Gay da Bahia (GGB) inclui o suicídio em seu levantamento de mortes violentas contra LGBTs. Naquele ano, foram 26 registros, contra 100 casos em 2018, um aumento de 284% no período

Neste mundo, não houve respostas concretas para as questões de Carlos (nome fictício) que, aos 24 anos, decidiu procurá-las em outro: suicidou-se, deixando os motivos e as desculpas como testamento. Com a alegria de um fã da cantora Beyoncé e a bravura de quem cedo aprende a ser forte, por simplesmente amar seus iguais, optou por interromper a própria presença e virar lembrança. “Respira. Vai agora não, que ainda tem jeito”, teriam lhe dito, se pudessem os que, agora, sentem sua falta.

Assim como Carlos, 100 lésbicas, gays, bissexuais e transexuais tiraram a própria vida durante o ano de 2018, conforme o relatório “Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil”, realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Em comparação com a primeira vez em que a prática apareceu nos registros do GGB, em 2016, os casos saltaram mais de 284%, quase quadruplicando (foram 26 suicídios no primeiro relatório). O levantamento não traz dados específicos sobre suicídios por região ou Estado, mas Téo Cândido, coordenador do Centro de Referência LGBT da Prefeitura de Fortaleza Janaína Dutra, destaca que cerca de 20% dos atendidos na unidade relataram ter sofrido adoecimento mental.

Causa

O suicídio é a quarta principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde. O público LGBT tem seis vezes mais chance de cometer o ato, de acordo com a revista científica americana “Pediatrics”. Ainda para a publicação, o risco de suicídio é 21,5% maior quando LGBTs convivem em ambientes hostis à sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Para o jornalista e ex-namorado de Carlos, Iury Figueiredo, a culpa não é somente do conservadorismo social, mas também do universo particular de cada um. “Uma vez só ele me falou que sua vida não teria muito futuro, mas era difícil de acreditar, de dar vazão”, rememora.

Grande parte dos 100 casos de LGBT aos quais o levantamento do GGB se refere foi pesquisada em “páginas de obituários que relatam mortes e perfis das vítimas nas redes sociais”. Iury, por exemplo, descobriu o suicídio de Carlos por meio de uma carta deixada na rede social Facebook. “Ele era muito forte para os outros, se metia em briga, o que fosse, para defender os amigos. Era de pegar na mão e pedir pra ficar tranquilo”, refaz Iury.

“Os dados disponibilizados pelo GGB dialogam com um contexto de pouca notificação. É uma organização civil que pauta a problemática, justamente pelas pouquíssimas informações. O suicídio entre LGBTs é extremamente subnotificado, o que perpetua a alarmante invisibilidade desse público”, aponta Téo Cândido, do Centro Janaína Dutra.

A unidade recebe vítimas de discriminação ou violência em decorrência da identidade de gênero ou orientação sexual. “É recorrente identificarmos depressão, dependência de álcool e outras drogas, transtornos de humor, dentre outros fatores de bastante risco atrelados ao suicídio”, desenvolve Téo.

Em 2018, foram 178 pessoas atendidas no Centro, cerca de 3% delas informaram pelo menos uma tentativa de suicídio ao longo da vida. O equipamento conta com uma psicóloga, que trabalha com uma escuta de psicoterapia breve. Se o atendimento contínuo for confirmado, o LGBT é encaminhado a algum serviço de saúde do Município de Fortaleza.

Índices

O Ceará cravou a quinta posição no índice de mortes violentas de LGBTs, com 23 casos em 2018. No Nordeste, o Ceará ficou atrás apenas da Bahia, que terminou o ano com 35 registros. Em todo o País, a LGBTfobia deixou 420 vítimas. Em caso de suicídio, as lésbicas representaram o maior aumento de casos de 2017 para 2018: foram 52% a mais. Gays tiveram um aumento de 45%, trans uma diminuição de 14%. Bissexuais permaneceram com 3%. “Tudo isso se deve à LGBTfobia, que repete ‘prefiro ver um filho morto a ter um filho gay’. Essa intolerância em casa, na escola, na internet provoca perdas emocionais nessas pessoas”, analisa o antropólogo e fundador do GGB, Luiz Mott.

O presidente da Associação Transmasculina do Ceará (Atrans-CE), Kaio Lemos, entende o problema como uma soma de fatores ambientais e sociais. “O ato é, inicialmente, coletivo, quando o indivíduo não se enxerga dentro dos processos de conexão social. É um estado de falta de pertencimento que leva à prática”, crê. Por duas vezes, Kaio também tentou interromper o viver. Hoje, o suicídio, para ele, virou tema para o doutorado.

Se do lado de lá, Carlos pudesse ouvir, Iury pediria para que ele valorizasse sua vida: “O que tudo isso me mostrou é que as pessoas são importantes, e que precisamos pedir e dar ajuda”. De agora em diante Iury verá Carlos apenas se acessar as memórias mais carinhosas. “Todo mundo lembra do quanto ele é feliz? aliás, era. Desculpa, eu continuo falando no presente”, admite.

Compreensão

Para a coordenadora geral do Centro de Valorização da Vida (CVV) em Fortaleza, Rejane Felipe, suicídio é a idealização de que não há mais como solucionar os problemas. “LGBTs têm ainda mais propensão, passam por muita rejeição da própria sociedade em aceitá-los. Outra preocupação é com o fato de falar de suicídio ainda ser tabu”, defende. Ela alerta para os sinais, que envolvem mudança de comportamento, frases como “não sirvo para nada”, e “não aguento mais esta carga”.

Iury ressalta a falta de políticas públicas em educação sobre o tema. “Precisamos começar cedo a entender nossa sexualidade e nosso sentimento de amor, desejo e afetos. Pesa muito termos de desvendar tudo com as próprias mãos”, salienta Iury Figueredo.

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