Por Diogo Bacha e Silva* e Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia**
Publicado pelo site Consultor Jurídico, em 5 de janeiro de 2015
A proposição dos projetos de lei 4.242/04, 3.770/00, PL. 05/03 e 5.003/01, reunidos no PLC 122/2006, deu início ao debate sobre a criminalização da homofobia e transfobia.
Resultante de uma clara opção pela incriminação de condutas homofóbicas e transfóbicas, o projeto de lei apresentado na Câmara em 2001 pela deputada Iara Bernardi (PT/SP) (e lá aprovado em 2006, quando então seguiu para o Senado) buscou definir como crime a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero alterando a norma incriminadora dos arts. 1º, 3º, 4º, 8º e 20, da Lei 7.716/89, bem como §3º do art. 140 do Código Penal, conforme sua redação atualizada pelas emendas já apresentadas no Senado. No entanto, tal projeto de lei aguarda desde o ano de 2006 a sua votação no Senado para aprovação ou rejeição.
O silêncio do Senado Federal tem sentido. A interrupção da deliberação legislativa, assim como a interrupção de qualquer discurso, tem o propósito específico de causar a exclusão. A interdição do discurso não é um ato de omissão não intencional. Revela a relação profunda que mantém com o poder. O discurso não demonstra apenas as relações de dominação ou de luta, mas sim pelo que se luta [1]. No caso, a estagnação do referido projeto de lei por tanto tempo demonstra o propósito deliberado de apagar, de obscurecer socialmente e politicamente as minorias que o projeto de lei pretende defender.
Durante esse período o PLC foi objeto de intensa oposição de bancadas conservadoras, particularmente a religiosa, que reivindicam o pretenso direito de discriminar os LGBT; parte-se de uma equivocada compreensão da liberdade de expressão religiosa para se pretender que o Direito proteja o abuso, isto é, o “discurso de ódio”. Não se admite no Brasil que a um negro possam ser atribuídas “características” negativas, mas aqueles acham válido fazer esse exercício a respeito de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros.
No entanto, ainda que se possa defender o direito de um certo segmento queira ter a prerrogativa de dizer que o seu “livro sagrado” condene a homossexualidade religioso (não são todos os que usam o mesmo livro que assim pensam, mas tudo bem), há que se pontuar, quanto ao discurso, que: a) não faz parte da proteção de liberdade religiosa tachar os LGBT de promíscuos, pedófilos, etc. – isso transborda, e muito, noções como pecado e “abominação”; b) qualquer “discurso” que considere o outro como menos portador dos mesmos direitos que o falante (igual naquilo em que o “outro” se reconhece como pessoa/membro de um grupo) não é liberdade de expressão, mas discurso de ódio.
Tudo isso porque não mencionamos os dados sobre violência homofóbica no Brasil e que são eclipsados pelas falas discriminatórias daquelas bancadas. O Brasil é o país em que há o maior número de violências desse tipo no mundo. Perceba-se que a violência homofóbica tem um “motor” e um “modus operandi” específicos; é dizer, ninguém é objeto de violência no Brasil por ser heterossexual, mas o é por ser gay, por exemplo.
Os vários projetos de lei (e de Emenda à Constituição) sobre qualquer tema ligado, ainda que indiretamente, a questões de orientação sexual ou identidade de gênero são colocados de lado. Mas a questão não é que as proposições tenham sido “rejeitadas” em votação, como mencionado acima, na maior parte dos casos (senão em todos), os membros do Congresso Nacional sequer se posicionaram formalmente (isto é, em sede de votação definitiva), seja a favor, seja contra.
Como se sabe, há uma forte oposição a projetos que tratem de promoção de direitos das minorias que tenham orientação sexual e de gênero distinta da maioria em função dos membros da bancada evangélica fundamentalista. Sorrateiramente, no entanto, o projeto em questão é esquecido no Senado e interdita-se o discurso, o debate sobre o tema no Poder Legislativo que deve assumir a função de protagonismo em uma democracia constitucional, aprofundando nas discussões de temas fraturantes na sociedade.
Em vista da paralisação intencional do debate, o Partido Popular Socialista (PPS) e a ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais ajuizaram, respectivamente, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão 26 e o Mandado de Injunção 4733 perante o STF. A questão que envolve as referidas ações é o reconhecimento da omissão inconstitucional que se encontra o Poder público em relação às minorias de orientação sexual e de gênero distintas da maioria.
Com a criação do “Disque 100” para denúncia de violação de Direitos Humanos, o que era antes apenas uma especulação transformou-se em estatística oficial. Há dados alarmantes que mostram o crescimento desmedido da violência homofóbica e transfóbica.
Em 2012, pela primeira vez, o Poder público apresentou um relatório sobre homofobia, com dados referentes a 2011: foram registradas 6.809 denúncias de violações aos direitos humanos da população LGBT, dentre as quais 278 foram homicídios, merecendo destaque o fato de que a maioria dos casos de violência contra LGBTs é praticada por pessoas conhecidas da vítima (61,9%), o que mostra o sentimento de impunidade do ofensor [2]. Em 2013, com os dados referentes ao ano de 2012, a violência homofóbica cresceu 166% em relação a 2011, tendo sido registradas 9.982 violações relacionadas à população LGBT, das quais 310 foram homicídios [3].
Tais dados ainda representam uma fração muito pequena da violência sofrida pela minoria – padece-se de uma pesquisa profunda que compense a enorme subnotificação. Refletem apenas a violência contabilizada, sem contar aqueles atos praticados contra as minorias que ou não entram na estatística oficial ou, ainda, são contabilizadas como atos praticados por outras motivações.
No fundo, tais dados apenas desvelam a dificuldade que o Estado tem de reconhecer e proteger minorias, isto é, aquela parte da população que não comunga do pano de fundo cultural da maioria. Veja-se que nossa Constituição de 1988, ao instituir o Estado Democrático, se comprometeu com o reconhecimento e a proteção das minorias. O art. 5º, XLI e XLII da CF/88 que criminaliza o racismo, bem como todo e qualquer ato atentatório às liberdades fundamentais, além dos arts. 1º, III e 3º, IV, refletem nosso compromisso e a necessidade de proteção e afirmação das minorias que, desde sempre, foram perseguidas e subjugadas pelas maiorias.
Novos direitos
A construção e consolidação de um Estado efetivamente Democrático de Direito passa pela incorporação e acomodação de novos direitos e de novos sujeitos no projeto constituinte que permanecerá sempre aberto [4]. Dessa forma, é que, historicamente, pode-se vislumbrar que incorporamos, primeiramente, as minorias afrodescendentes com a criminalização do racismo, depois com as ações afirmativas voltadas para o acerto com o passado. Logo depois, incorporamos as mulheres com a promulgação da Lei Maria da Penha e suas medidas protetivas contra uma sociedade eminentemente machista.
E quando iremos incorporar as minorias LGBT em nosso projeto constituinte? Passados mais de 25 anos da promulgação da Constituição Federal, já não seria hora de jogarmos luz nessas minorias e fazê-las sair da escuridão, das sombras políticas em que se encontram?
Se, pois, o conceito constitucional de racismo é uma construção sócio-política, donde a configuração de racismo se dá com toda situação de inferioridade de um grupo social sobre outro, conforme definido pelo STF no julgamento do HC 82.424/RS, como não incluir os atos de violência praticados contra a minoria LBGT como atos de racismo?
Assim, deve-se reconhecer que há um mandamento constitucional de criminalização expresso também para atos de violência que tenham motivação de manifestação de desprezo para as minorias que tenham orientação sexual e de gênero distinta da maioria. Não apenas um mandamento constitucional, mas também convencional, dados os Documentos Internacionais de Direitos Humanos instando textualmente os Estados a adotarem leis de proteção dessa minoria e punição das violências correlatas.[5]
Mesmo que o Supremo Tribunal Federal tenha relutância em reconhecer atos homofóbicos e transfóbicos como atos de racismo, a Constituição também determina a criminalização de todo e qualquer ato atentatório às liberdades fundamentais (art. 5º, XLI). Nessa medida, o ato de violência que contenha motivação homofóbica ou transfóbica configura verdadeiro atentado à liberdade e igualdade do ser humano, significa desrespeitar o próximo como detentor dos mesmos direitos, significa a corrosão do projeto democrático como sujeitos livres e iguais.
Devemos compreender o contexto inteiro do ajuizamento da demanda, antes de emitirmos uma opinião apressada sobre o mérito da mesma. Não se trata evidentemente de pedido que coloque um grupo sobre vantagem político-jurídica sobre outro. Apenas do reconhecimento de um estado omissivo do Poder Legislativo que já dura vários anos, de promulgar leis incriminalizadoras de atos que a própria Constituição considera como merecedores de reprimenda penal.
Também devemos compreender que as ações não manifestam pedido de criminalização principal e direta pelo STF, como alguns pensaram. Os pedidos feitos são: a) que sejam a homofobia e a transfobia enquadradas no conceito de racismo (art. 5º, XLII da CF/88) ou, ainda, subsidiariamente, que se reconheçam como atos atentatórios a direitos e liberdade fundamentais (art. 5º, XLI da CF/88). Quaisquer das duas normas constitucionais plasmam um dever de criminalização e proteção por parte do Estado; b) então, que se reconheça o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional em aprovar legislação que criminalize de forma específica a homofobia e a transfobia, já que decorridos mais de 25 da promulgação da Constituição Federal e considerando que o PLC 122/2006 encontra-se há mais de 13 anos em discussão sem ser aprovado (ou rejeitado); c) que seja fixado prazo razoável para que o Congresso Nacional edite a norma criminalizadora específica; d) não ocorrendo a promulgação da norma no prazo fixado pelo Supremo Tribunal Federal ou, caso este entenda tal prazo desnecessário, se requer que o mesmo realize a troca de sujeito e exerça atividade legislativa atípica para considerar como crime todas as formas de homofobia e transfobia; e) a fixação da responsabilidade civil do Estado ante a responsabilidade objetiva do art. 37, §6º da CF/88, para todos aqueles que forem vítimas de agressões e violência homofobia e transfóbica, inclusive quanto a fatos pretéritos, ou, subsidiariamente, a partir da constatação da omissão inconstitucional; f) subsidiariamente, a ação pede que, caso não se entenda cabível a equiparação ao racismo ou a previsão precária do crime pelo STF, que, pelo menos, a corte reconheça o estado de mora objetiva inconstitucional do Congresso e que o mesmo seja comunicado.
Veja-se que a questão veiculada na demanda é sobre o reconhecimento da mora inconstitucional do Congresso em editar norma criminalizadora das condutas que especifica, através da interpretação que conduza a tal entendimento, seja da norma de criminalização do art. 5º, XLII ou XLI da CF/88, as duas levam a tal reconhecimento.
O pedido para que o Supremo considere crime todas as formas de homofobia ou transfobia é veiculado apenas se, e somente se, o Congresso Nacional não purgar sua mora legislativa em prazo razoável fixado pelo próprio guardião da Constituição.
Em verdade, as ações são medidas extremas tomadas pelas minorias para que possamos reconhecer o outro. Reconhecer o outro como portador dos mesmos direitos que nós mesmos. Mais do que a omissão, o legado do Senado Federal em não enfrentar o tema é de uma violência ímpar para com as minorias.
A não-resposta, como nos ensinou Emmanuel Lévinas, é a morte. A não-resposta é o desaparecimento do outro como ser vivente que, como movimento, é sempre uma resposta [6]. Para incluirmos as minorias LGBT em nosso projeto constituinte é necessária uma resposta, uma resposta como reconhecimento do outro, uma resposta como movimento de inclusão.
[1] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 21ª ed. São Paulo: Loyola, 2011. p. 9-10.
[2] BRASIL. SEDH. Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: o ano de 2011. Brasília, 2012, disponível em: <http://www.sedh.gov.br/brasilsem/relatorio-sobre-violencia-homofobica-no-brasil-o-ano-de 2011/Relatorio%20LGBT%20COMPLETO.pdf>. Acesso em 13/07/2014.
[3] BRASIL. SEDH. Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: o ano de 2012. Brasília, 2013, disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012>. Acesso em 13/07/2014.
[4] HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
[5] Cf.: BAHIA, Alexandre. Homofobia no Brasil, resoluções internacionais e a Constituição de 1988. Jus Navigandi, Teresina, a. 17, n. 3269, 13/06/2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21999>. Acesso em: 15/12/2014; BAHIA, Alexandre; MORAES, Daniel. O Longo Caminho contra a Discriminação por Orientação Sexual no Brasil no constitucionalismo pós-88: igualdade e liberdade religiosa. Revista Mandrágora, v. 18, p. 5-25, 2012.
[6] DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 20.
* Diogo Bacha e Silva é advogado, mestre em Direito pela FDSM e professor e coordenador do curso de Direito da Faculdade de São Lourenço.
** Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia é advogado, doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).