28 de março de 2024
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Livro de Amanda foi lançado na Bienal (arquivo pessoal)

Amanda superou o preconceito e hoje faz sucesso no YouTube (arquivo pessoal)
Amanda superou o preconceito e hoje faz sucesso no YouTube (arquivo pessoal)

André Bernardo
Publicado pelo portal BBC Brasil, em 5 setembro 2016

Na adolescência, Amanda Guimarães desenvolveu algumas técnicas para faltar às aulas sem a mãe desconfiar. Uma delas era deixar a janela do quarto entreaberta e fingir que estava indo para o colégio. Então, ela se escondia atrás da casa, esperava a mãe ir para o trabalho e voltava para a cama. Outra era pegar o ônibus para o colégio, mas descer alguns quarteirões antes do previsto. Em seguida, entrava numa locadora de videogames e só saía de lá depois que terminava o horário escolar.

“Cheguei a ser reprovada duas vezes por falta. No colégio, me sentia como uma presa no meio de caçadores. A espingarda era a boca. E a munição eram as piadas e os apelidos maliciosos”, diz à BBC Brasil. Bastava que ela entrasse na sala de aula para ouvir: “Ih, olha a bichinha!” ou “Por que não anda como homem?” e ainda “Corta esse cabelo, poodle!”. “Até hoje tenho pesadelos horríveis. Sonho que voltei para o ensino médio e acordo tremendo da cabeça aos pés”, conta.

Mas o tempo em que estudava em Morungava, cidade de pouco mais de 6 mil habitantes a 23 quilômetros de Porto Alegre, ficou para trás. Hoje, aos 27 anos, a gaúcha de Gravataí divide um apartamento em Hong Kong, região administrativa da China, com um coelho, uma tartaruga e um porquinho-da-índia.

Do meio-dia às 17h, ela trabalha como garçonete no restaurante de um amigo e, nas horas livres, dá voz a Mandy Candy, uma das mais badaladas youtubers atuais, com mais de 300 mil seguidores. Nos vídeos, ela fala de temas como qual banheiro ela usa e como contou ao namorado asiático que era transexual.

A fama, porém, não livrou Amanda de ataques. Depois que postou um vídeo, em fevereiro de 2015, assumindo sua transexualidade, ela voltou a sofrer bullying. Comentários de fanáticos religiosos dizendo que “quando ela morresse iria queimar no inferno” eram comuns. Outros internautas, ainda mais raivosos, chegaram a ameaçá-la: se a vissem na rua, ela apanharia.

“Às vezes me sinto uma aberração da natureza. Outras, uma mutante como os X-Men (personagens de quadrinhos da Marvel). Mas, não importa se você é gorda, negra, asiática, gay ou trans. Se sofreu ataque virtual, tem que denunciar. Quem pratica cyberbullying precisa ser punido”, afirma.

História

Amanda resolveu contar sua história no livro Meu Nome é Amanda (Fábrica 231, da Ed. Rocco), um dos destaques da 24ª edição da Bienal Internacional do Livro, que terminou no último domingo em São Paulo. Caçula de quatro irmãos, ela narra sua vida desde a infância quando, por volta dos 4 ou 5 anos, colocava uma calça jeans na cabeça e desfilava pela casa, fingindo que tinha cabelo comprido como a mãe e a irmã.

“Se não fosse pela minha família, talvez eu tivesse caído na prostituição ou algo pior. Não passei nem 1% do perrengue que os outros transexuais passam. Minha mãe nunca me virou as costas ou me expulsou de casa”, reconhece ela, emocionada.

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Livro de Amanda foi lançado na Bienal
(arquivo pessoal)

Já mais velha, Amanda passou a ter ojeriza de espelhos. “Não gostava do que via refletido neles. Era outra pessoa; não eu”, diz. Nessa época, a mais dolorosa de sua vida, passou a ter pensamentos sombrios. De automutilação ao suicídio, pensou em tudo. “A repulsa era tanta que, volta e meia, cogitava pegar uma faca e cortar minha genitália fora.”

Um dia, uma amiga de Porto Alegre tocou no assunto da mudança de sexo pela primeira vez. “Foi como se um elefante saísse das minhas costas”, relembra. Apesar de o SUS realizar cirurgias de redesignação sexual desde 2008, Amanda decidiu que queria fazer a sua na Tailândia. Mais exatamente na clínica do médico Kamol Pansritum, o mesmo que operou a ex-BBB Ariadna e a modelo Lea T. Mas, para fazer as pazes com seu corpo, Amanda teria que desembolsar R$ 35 mil, entre despesas de viagem, internação hospitalar e terapia hormonal.

Para as transexuais femininas, ou seja, pessoas que nasceram com corpo de homem, mas se identificam como mulheres, o procedimento inclui reconstrução dos genitais, feminilização do rosto e aumento dos seios. Para os transexuais masculinos, que são fisicamente do sexo feminino e se identificam como homens, os procedimentos são reconstrução dos genitais, remoção dos seios e lipoaspiração. Amanda trabalhou três anos em um call center para pagar a viagem e conseguiu realizar seu sonho em 2004.

Fila de espera no Brasil

No Brasil, cinco hospitais estão habilitados a fazer cirurgias de transgenitalização: Hospital das Clínicas de Porto Alegre, Hospital Universitário Pedro Ernesto (RJ), Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás e Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco.

Em alguns deles, o tempo de espera pode chegar a 15 anos. “A procura é alta e o número de profissionais que sabem ou querem cuidar de pacientes trans, reduzido”, explica a psicóloga Suzana Livadias, do Espaço de Cuidado e Acolhimento Trans, do Hospital das Clínicas da UFPE.

Por ser um procedimento irreversível, o candidato à cirurgia precisa se enquadrar em todos os requisitos: idade mínima de 18 anos para procedimentos ambulatoriais e 21 para procedimentos cirúrgicos, acompanhamento multidisciplinar por um período mínimo de dois anos, laudo psiquiátrico favorável e diagnóstico de transexualidade.

Amanda vive em Hong Kong, de onde faz os vídeos que a tornaram famosa no YouTube (arquivo pessoal)
Amanda vive em Hong Kong, de onde faz os vídeos que a tornaram famosa no YouTube (arquivo pessoal)

Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), o indivíduo é considerado transexual quando há um desacordo entre seu sexo biológico e seu gênero. “Para se submeter a uma cirurgia dessas, não basta ser transexual ou querer muito. É preciso ter o diagnóstico correto e muito preparo emocional. Como qualquer intervenção cirúrgica, pode trazer sequelas”, ressalva o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, que realiza uma média de 25 cirurgias por ano.

De passagem pelo Brasil para divulgar seu livro, Amanda não se arrepende do que fez. “A sensação é de que nasci de novo. Até me olhar no espelho, algo que sempre evitei fazer por raiva e tristeza, já se tornou prazeroso. Finalmente, saí de dentro do casulo”, diz.

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