Na semana do Dia Internacional contra a Homofobia, questionamos a ausência dos LGBT e o imaginário construído sobre o grupo nos meios de comunicação
Por Gyssele Mendes*
Publicado pelo Observatório do Direito à Comunicação, em 18 de maio de 2017
As noções de representação e representatividade são complexas e caras aos movimentos e minorias sociais. No regime da visibilidade em que vivemos, “ser visto” é também uma forma de pressionar instâncias governamentais por mais direitos e políticas de igualdade, a fim de garantir a dignidade humana de grupos sociais cotidianamente vilipendiados. Daí um dos papéis fundamentais da mídia na contemporaneidade: é o espaço da visibilidade por excelência.
Além disso, a aglomeração de identidades e sexualidades distintas sob o mesmo guarda-chuva, como é o caso da sigla LGBT, é um indicativo de disputas. O movimento de lésbicas possui pautas que nem sempre serão observadas pelo movimento gay, assim como as travestis e pessoas trans possuem reivindicações específicas relativas às identidades de gênero. Já temos aí a ponta do iceberg da representação: o seu limite em retratar e (re)criar o outro.
Há 43 anos, o primeiro personagem gay surgia na televisão brasileira, na novela “O Rebu”, da TV Globo. A trama girava em torno de um misterioso assassinato. O pesquisador Luiz Eduardo Peret destaca que “até o fim da primeira metade da novela, o público não sabia quem havia morrido, nem se era homem ou mulher. Só no último capítulo se revelava que o rico Conrad Mahler matara a jovem Sílvia por ciúmes dela com seu ‘protegido’ Cauê. A homossexualidade estreou na telenovela através do crime ‘passional’ e da dependência financeira de um jovem por um homem mais velho”.
Nesse mesmo período, tivemos a primeira “onda” de movimentos LGBTs no Brasil, formados majoritariamente por gays e travestis, como resposta ao silenciamento imposto pela “moral e bons costumes” da época.
Desde então, muita coisa mudou, outras nem tanto. É fato que, nos últimos anos, a população LGBT tem conquistado cada vez mais espaço na mídia brasileira, seja nas telenovelas, em reportagens pedagógicas da mídia impressa e online ou programas humorísticos e de variedades. Mas quando pensamos nisso, quais personagens LGBTs vêm à mente?
Em um breve esforço, lembramos de Rafaela e Leila, o casal de lésbicas mortas na explosão de um shopping, em Torre de Babel (1997); Clara e Rafaela, de Mulheres Apaixonadas (2003), cujo final contava com uma apresentação teatral do trágico “Romeu e Julieta”; um personagem ou outro interpretando o “gay afeminado” e “afetado” em programas de humor; a travesti Sarita, integrante do núcleo cômico de Explode Coração (1995); Júnior e Zeca, de América (2005), que tiveram o beijo censurado no último capítulo; o casal Niko e Félix, de Amor à Vida (2013), cujo beijo no final da novela rendeu inúmeras discussões, e por aí vai.
Outra questão vem à tona, além de como são representados os personagens LGBTs: entre eles, quantos são interpretados por pessoas LGBTs? Quantas travestis estão no elenco da Globo, do SBT, da Band ou da Record? Quantos homens trans ocupam espaços de poder na mídia? Quantas lésbicas participaram da produção do roteiro das telenovelas em que são representadas? Provavelmente, a resposta não se distanciará muito do zero.
Recentemente, a nova produção de Glória Perez para a TV Globo ocupou os noticiários com uma polêmica que tocava exatamente nesse ponto. “A Força do Querer”, que estreou no mês passado, buscará representar o processo de transição de um homem trans, interpretado por uma atriz cisgênero (pessoas cujo gênero é o mesmo que o designado em seu nascimento).
Ao anunciar isso, a autora e a emissora foram bombardeadas com críticas do movimento LGBT, que alertava para a importância de um homem trans ocupar esse espaço. Apesar de não conseguirem reverter a situação, a militância LGBT deixou um recado: “queremos falar, ocupar, e não ficaremos calados diante do uso das nossas vivências como álibi para responsabilidade social da emissora”.
Democratizar a mídia não implica somente em ampliar o acesso e buscar a pluralidade nas representações. Em outras palavras, não se trata apenas de democratizar o produto, mas também o processo de construção dessas representações, que servem como um mapa social de leituras e condutas sociais, indicando quem deve ter sua existência respeitada e quem simboliza uma ameaça ao status quo.
De acordo com o relatório anual do Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2016 foram mortas 347 pessoas vítimas de LGBTfobia, quase uma por dia. Para chegar a esse número, o GGB realizou um levantamento a partir da mídia e de informações que recebeu de familiares e amigos das vítimas. Nota-se, portanto, que esse dado reflete apenas uma parcela dos atos de violência motivados por homofobia, lesbofobia, bifobia ou transfobia.
Maria Clara Araújo, figura importante do movimento recente de mulheres trans no Brasil, ressalta que “quando se fala em representar, é sobre existir, de fato, em uma sociedade em que 90% das mulheres trans e travestis estão na prostituição como um lugar condicionado”. A representação nas telas pode ser parte de uma ficção, mas as consequências nas vidas dos grupos representados irresponsavelmente são reais.
Carlo Ginzburg, no ensaio “Representação: a palavra, a ideia, a coisa”, sublinha a dupla função de representar uma ausência e continuar uma existência, destacando uma ruptura e uma continuidade. Ginzburg nota que “a substituição precede a intenção de fazer um retrato, e a criação, a de comunicar”, mostrando que as representações não são apenas constituídas da “imitação” de algo ou alguém, mas do duplo processo de substituição e (re)criação daquilo ou daquele que se representa, de figuração e produção de sentidos, de simbolização e significação. Logo, representar é o processo de criar e substituir.
Imaginem quantas vidas seriam poupadas ou quantas pessoas não poderiam ter suas visões de mundo ampliadas se a mídia optasse por representações mais humanizadas, inclusivas, focadas na construção de empatia entre os diferentes e não em publicidade ou lucro? Essa pode não ser a solução, mas certamente é um caminho que a grande mídia brasileira poderia tomar, caso estivesse interessada em erguer uma sociedade que saiba reconhecer e conviver com as diferenças.
*Gyssele Mendes é jornalista, mestra em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e militante LGBT