Carlos Henrique Lucas Lima*
O título deste texto é uma referência a um livro de nome O desejo da nação – masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX, do pesquisador ligado aos estudos queer Richard Miskolci, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. Nessa publicação, Miskolci defende que o final do século XIX marcou a formulação de um projeto nacional amparado em um desejo de heteronormativizar e branquear a população, formada por cerca de 65% de não brancos que habitavam o Brasil por volta de 1871, quando da realização do primeiro censo brasileiro.
Esse projeto nacional formulado no final do século XIX, apesar de não ser uno, apresentava alguns pontos em comum, como a necessidade de interpretar o País a partir de uma teoria que nos encaminhasse rumo ao progresso, que rejeitasse o “atraso” representado pela imensa massa de negros, agora ex-escravos – mas não menos dependentes – e que nos outorgasse uma homogeneidade cultural, coisa que, como era corrente no discurso das elites à época, não possuíamos: éramos, segundo esses discursos, um País sem nação.
Assim, de maneira geral, portanto, o projeto nacional formulado no final do século XIX, e que de certa maneira até hoje nos caracteriza como nação, pautou-se em um desejo de embranquecimento, que pode ser verificado com a posta em prática de uma massiva política de imigração europeia, e pela formulação de uma teoria da mestiçagem, seja ela desde o ponto de vista do biológico seja desde o ponto de vista do cultural.
Dito tudo isso muito precariamente, quero, neste texto, convidar x leitorx a refletir sobre a ideia de projeto nacional na contemporaneidade. Parafraseando o título do livro de Miskolci, quero chamá-lx a questionar qual seria o atual desejo da nação brasileira na tentativa de formular propostas democráticas e de respeito à diversidade e à diferença.
Se você digitar “o desejo da nação” no sítio do Youtube, verá que a maioria das ocorrências se relacionam a canções e/ou igrejas evangélicas. Algumas dessas denominações recebem o curioso nome de “Igreja Nação de Deus”, o que parece senão declarar que a nação (brasileira) pertence a Deus, ao menos expressa o desejo de que, em um futuro próximo, isso de fato venha a ocorrer. Aparecem, também, algumas referências a grupos de “louvor e adoração” (espécie de grupos musicais evangélicos) cujos nomes guardam relação com as antigas tribos de Israel.
Não é novidade também que, ao se assistir a qualquer celebração evangélica na TV, meio mais acessível à linguagem desse segmento religioso, observemos a adoção de uma tônica discursiva de pinta “profética”, apenas para não dizer ameaçadora, que “declara” – ou profetiza, como que uma troca de propriedade da nação brasileira: das mãos do “diabo” para as mãos do “Senhor Jesus Cristo”.
Quero chamar a atenção para o fato de que o conceito de nação manejado pelas igrejas evangélicas é exatamente o mesmo que guiou a formulação do projeto nacional no final do século XIX: uma comunidade de indivíduos que partilham a mesma língua e mesmos hábitos culturais, enfim, um todo homogêneo, coeso. Silvio Romero, um dos principais pensadores desse projeto nacional oitocentista, ao propor que a única saída para o Brasil era a Europa, condenou, a um só tempo, tanto a negros quanto a indígenas – quase todos exterminados até aquele momento, às margens da inteligibilidade existencial e cultural em nosso país.
Os postulados de Romero, proferidos em tom de profecia, nosso destino é a Europa!, clamavam pelo apagamento – ou pelo clareamento – dos elementos não brancos da população e pela homogeneização da cultura brasileira, que, apenas assim, poderia ser “nacional”. O mesmo movimento pode ser observado no gesto “profético” operado pelas igrejas evangélicas no Brasil. Há o desejo de uma homogeneização cultural, via religião, até o ponto em que passemos de ser um país para sermos uma nação, “A Nação de Deus”.
Essas igrejas evangélicas não toleram a diversidade, não falam a língua da diferença. O mais recente exemplo disso foi a aprovação, no âmbito da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, presidida pelo pastor-empresário e deputado Marco Feliciano (PSC-SP), de um projeto que desobriga a pastores, padres e rabinos e outros líderes religiosos a aceitarem em seus templos e liturgias pessoas que estejam em desarmonia com suas crenças e valores (leia sobre isso aqui).
Tal iniciativa compromete a constituição de uma nação entendida a partir da diferença e da diversidade. Ao mobilizar o aparato legal do País para cercear a liberdade de pessoas em desacordo com as crenças e liturgias de algumas religiões, essa proposta termina não por assegurar o livre exercício da fé das confissões religiosas – suposto objetivo da proposta, mas sim por autorizar a discriminação em esferas que vão desde o cultural até aquelas que dizem respeito à orientação sexual e às expressões de gênero.
Ao contrário do projeto oitocentista de identidade nacional, reeditado agora por segmentos evangélicos no Brasil, o projeto nacional desejado desde uma perspectiva da diversidade e da diferença prima não pela homogeneidade mas sim pelo contraditório, pelo plural. Ser nação não significa ser igual; não significa insistir no estabelecimento de uma hegemonia. Nunca vi uma religião como o Candomblé – ou qualquer outra de matriz afro, por exemplo, pondo em prática um projeto de hegemonia como o fazem muitas denominações evangélicas, as quais investem pesado em estratégias de proselitismo, que chegam, por vezes, a se constituírem em terríveis formas de assédio moral.
Precisamos, seja como movimento social, como cidadãos e cidadãs pró-diversidade e diferença, seja como evangélicxs e cristãos em geral comprometidos com a manutenção das liberdades em nosso país, apostar na formulação de contra discursos que denunciem projetos de nação que visem a não apenas a apagar a diferença como ainda a estabelecer a hegemonia de alguns grupos sobre outros. Se o Brasil ainda não sabe o que é, a despeito dos esforços dos intelectuais racistas do século XIX e XX, sabemos o que não queremos ser.
* Professor substituto no IHAC-UFBA, doutorando no Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade e membro do CuS – Cultura e Sexualidade.
Fonte: Cultura e Sexualidade – iBahia, em 21 de outubro de 2013.