3 de maio de 2024

Especialistas apontam como ampliação de programa da Saúde pode interromper ciclo de abuso infantil e contra a mulher

Por Mayara Souto
Publicado pelo Correio Braziliense, em 06/08/2023

Cerca de 99% dos municípios aderiram e mais de 25 milhões de estudantes devem ser assistidos
(Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil)

O Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério da Educação, anunciou em 25 de julho a retomada do Programa Saúde na Escola (PSE). O projeto prevê na grade escolar assuntos como violências e acidentes, promoção da cultura de paz e direitos humanos, saúde sexual e reprodutiva, além de prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTS). Especialistas ouvidos pelo Correio explicam como essa base de conhecimento pode formar adultos mais conscientes e refletir nas taxas futuras de violência contra a mulher.

Cerca de R$ 90 milhões serão destinados aos municípios que implementarem ações do PSE na educação básica. No ciclo de 2023 a 2024, o número de adesão ao programa bateu recorde, com 99% das cidades aptas inscritas para receber a verba. A previsão é de que 25 milhões de estudantes sejam beneficiados, segundo o Ministério da Saúde.

“É importante essa retomada da educação sexual nas escolas, inclusive porque as crianças e os adolescentes começam a ter condições de identificar as violências, de se protegerem e se defenderem”, declara a secretária de Enfrentamento à Violência Contra Mulheres, Denise Motta, do Ministério das Mulheres. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública deste ano mostram que o país registrou o maior número de estupros na história e que 61,4% das vítimas eram crianças de 0 a 13 anos. Boa parte desta faixa etária está em idade escolar e a maioria (68%) dos casos registrados ocorreram dentro de casa.

“A escola é um espaço potente que pode, dentro da rotina familiar, descobrir adversidades”, explica a psicóloga Cynthia Ciarallo, consultora da Diversando — Consultoria e Educação em Equidade. De acordo com ela, se as crianças não aprendem a respeitar o próprio corpo e quais são os limites, passam a achar que “assim como a obediência, o corpo tem que estar à disposição do adulto”.

Carmela Zigoni, doutora em Antropologia Social e assessora política no Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), corrobora que “as crianças precisam entender, dentro de uma linguagem apropriada para cada idade, como se defenderem, onde pedir ajuda, como conversar com os pais, com os professores”.

“Ideologia de gênero”

O Programa Saúde na Escola existe desde 2007 no Brasil, quando o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estava no segundo mandato. No texto de apresentação do projeto está escrito que o seu objetivo é “contribuir para a formação integral dos estudantes por meio de ações de promoção, prevenção e atenção à saúde, com vistas ao enfrentamento das vulnerabilidades que comprometem o pleno desenvolvimento de crianças e jovens da rede pública de ensino”. Dentro de todo esse escopo, está a educação sexual para prevenir justamente os índices citados acima.

No entanto, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), o assunto foi considerado “ideologia de gênero”. “Tivemos um bloqueio muito grande, com esse avanço de conservadorismo, em discutir a educação sexual na perspectiva da diversidade”, lamenta a psicóloga. À época, o PSE se resumiu a falar de alimentação saudável, prevenção de obesidade e promoção da atividade física. O ex-presidente chegou a incentivar a criação de uma lei para o “Escola Sem Partido”, que repreendia qualquer assunto relacionado à “doutrinação política, religiosa ou ideológica” no Ensino Fundamental. Vários projetos de lei estaduais com essas características foram julgados pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) e considerados inconstitucionais.

Cynthia explica que “as pessoas ainda acreditam que, ao não falar, protegem, mas é o contrário”. Denise Motta concorda: “Quando você educa, aborda o tema de uma forma didática, lúdica, inclusive serve de proteção”. Para isso, é claro, a linguagem precisa ser adequada a cada faixa etária. “Uma aula para o sexto ano não é a mesma do primeiro ano ou do infantil”, destaca a psicóloga.

“A sexualidade é uma experiência que está posta na vida do humano no momento em que nasce, tem a ver com o corpo e em descobrir a relação desse corpo com o mundo. Entender essa dinâmica me dá ferramentas de maior segurança, cuidado, potencializa a existência, e também ferramentas emancipatórias com relação ao meu corpo”, afirma Cynthia.

Estatísticas recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram crescimento de 6% de feminicídios, 16,9% de tentativas de feminicídio e 2,9% de violência doméstica. Para a psicóloga, esses números podem reduzir no futuro por meio de uma boa educação sexual.

“Tenho muita confiança que, se nós investíssemos nessa perspectiva de educação, conseguiríamos reduzir, não sei se eliminar, porque estamos falando de um projeto muito engessado historicamente. A educação sexual não precisa acontecer apenas numa aula ou disciplina, ela está presente na sala de aula quando a professora desenvolve atividades mais integradoras, com relação menos sexistas, ‘isso é de mulher’ ou ‘isso é de menino’. A educação sexual que combate a misoginia (ódio às mulheres) não se restringe apenas a uma explicação do corpo humano, é importante atuar nas relações entre pessoas”, reforça a psicóloga.

Carmela, por sua vez, aponta que esse combate à ideia de que homens são superiores a mulheres precisa começar desde a infância para ter reflexos no futuro combate à violência. “As meninas precisam aprender que podem escolher qualquer profissão, que o corpo é delas, só toca nelas quem elas deixarem, quando elas crescerem e quando tiverem idade apropriada para isso. Os meninos têm que aprender desde pequenos a respeitar as mulheres, que elas são iguais a eles e possuem os mesmos direitos.”

Por fim, a educação sexual também permeia debates de identidade de gênero, segundo Cynthia. Isso é essencial para que as crianças entendam que “há diversidade de existências e que precisamos entender”.

Ainda de acordo com ela, os movimentos sociais foram muito importantes para ampliar o debate da educação sexual e mostrar como é essencial que ela esteja nas escolas: “A Lei Maria da Penha mostrou a importância de discutir gênero, já conferências de saúde voltadas à população LGBTQIAPN anunciaram outras perspectivas para pensar a questão da sexualidade. As lutas políticas foram possibilitando novos olhares e a gente começa com um movimento de garantir a existência da diversidade”.

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