Ativistas querem acrescentar ao relatório da Comissão Nacional da Verdade capítulo sobre perseguição aos homossexuais durante o regime militar
Por Mariana Melo
Publicado na revista Carta Capital em 30 de março de 2014
Em um cenário de censura, vigilância e polarização política, somavam-se aos problemas enfrentados pelas organizações de luta pelos direitos homossexuais o desprezo e até mesmo a hostilidade dos movimentos da esquerda, além da perseguição oficial do Estado ditatorial no Brasil. As conclusões foram apresentadas durante a audiência pública sobre “Ditadura e homossexualidade no Brasil”, neste sábado 29, no Memorial da Resistência, sede do antigo Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) em São Paulo.
Organizada pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” e pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), a audiência teve como objetivo acrescentar aos relatórios produzidos pelos organismos um capítulo que trate especificamente da violação dos direitos humanos a lésbicas, gays, travestis e transexuais ao longo do regime militar. “Temos que pensar como as comissões da verdade podem atuar visibilizando as questões LGBT e quais instrumentos jurídicos e políticos temos na democracia para trabalhar as opressões” disse Renan Quinalha, advogado e membro da Comissão da Verdade de São Paulo. “Trata-se da primeira tentativa de reparação do Estado brasileiro”.
Marisa Fernandes, pesquisadora da PUC-SP e antiga integrante do Somos (grupo que nos anos 80 lutou pela afirmação dos homossexuais no País), destacou a sua militância durante os anos de repressão e contou sobre a dificuldade de promover a discussão não só da homossexualidade, mas também da própria sexualidade feminina em meio às discussões sobre luta de classe. “Nós, homossexuais, tivemos que enfrentar a existência de uma esquerda ortodoxa e autoritária que não compreendeu, naquela época, a urgente necessidade de também se pensar a sexualidade humana, o machismo e o racismo conjuntamente com as demais causas sociais.”
Ela lembrou que, em 1979, o grupo de militância lésbica do qual participava tentou integrar o 2º Encontro da Mulher Paulista realizado na PUC. “As mulheres ligadas a organizações políticas autoritárias e centralizadoras pregavam que não existia a violência contra a mulher, a única que de fato existia era a violência ditatorial sobre homens e mulheres da classe operária”, contou. “Para elas, as nossa propostas de se refletir as especificidades das mulheres eram elitistas e pouco interessavam ao povo e à revolução. Assim, fomos acusadas de dividir a luta ‘maior’ e de sermos contrárias à luta contra a ditadura.”
Prisões arbitrárias. Além da dificuldade de articulação com grupos de esquerda, os homossexuais enfrentavam a perseguição das autoridades. O pesquisador Rafael Freitas, também da PUC-SP, apresentou em sua fala provas disso, ao ler um trecho da Portaria 390 de 1976 do 4º Distrito Policial de São Paulo, que dizia:
“O objetivo desta equipe é sindicar todos os travestis que frequentam a área jurisdicional do 4º Distrito Policial para apuração de sua conduta. Sempre que possível, as sindicâncias serão ilustradas com a fotografia desses pervertidos em trajes femininos que estiverem usando na ocasião, para que os meritíssimos juízes possam avaliar a sua nocividade.”
Segundo Freitas, as operações para prender travestis não tinham respaldo da justiça, o que tornava-as arbitrárias. O delegado do 4º distrito Guido Fonseca prendeu 318 travestis e fez com que preenchessem um termo de declarações de gastos e informações que poderiam ser usadas para a extorsão das presas. Para não ficarem muitos dias na detenção, as travestis chegaram a cortar os pulsos para serem encaminhadas à Santa Casa.
As arbitrariedades continuaram. Em maio de 1980, lembra o historiador, durante o governo de Paulo Maluf, o delegado José Wilson Richetti assumiu a delegacia seccional do Centro e criou a Operação Cidade, que tinha como objetivo prender traficantes e assaltantes. No dia seguinte, no entanto, os jornais estampavam que a maioria das 152 prisões feitas na operação foram de prostitutas, travestis e homossexuais. Em 31 de maio neste mesmo ano, a Secretaria de Segurança Pública do governo Maluf soltou uma nota oficial assumindo a perseguição aos LGBTs, na qual dizia, segundo Freitas: “O delegado de polícia é o comandante e chefe de uma guerra sem quartel em toda área central da cidade. Não esperando as queixas que um cidadão possa apresentar, vai aos locais suspeitos para conduzir a qualquer um dos outros distritos da região central o rufião, o travesti, o traficante de tóxicos, o assaltante, o trombada e a prostituta que realiza seu comércio nas vias públicas.”
Atraso. Professor de História da América Latina na Brown University e ativista dos direitos LGBT, James N. Green destacou o fato de a ditadura no Brasil ter ocorrido enquanto aconteciam transformações culturais e comportamentais importantes em outras partes do mundo. Enquanto outros países testemunhavam a luta do movimento negro e a revolução cultural, em 1968, o Brasil se frustrava com a implantação do AI-5. “É importante abrir muito mais o conceito da ditadura que dominou o Brasil por 21 anos. As vítimas do regime militar não eram somente os militantes da esquerda que levantavam armas ou que se envolveram em atividades contra o regime. O estado de exceção afetou toda a sociedade brasileira.”
Quinalha propõe, portanto, que as discussões sobre o período ditatorial ultrapassem os debates e construam políticas públicas para impedir que a repressão continue. “Termos muito abstratos e genéricos como reconciliação nacional, cidadania, identidade e confiança cívica não dão conta de compreender as opressões específicas que se operaram nesse aparato de repressão da ditadura. E também não dão conta de fazer um trabalho de memória, verdade e justiça adequado em uma democracia que deve ser comprometida com a diversidade e os direitos humanos.”
Nesse sentido, concluiu o acadêmico e ativista James N. Green: “Nosso trabalho pretende evocar a ditadura e seus agentes, seja a censura, o Itamaraty – que expulsou homossexuais no AI-5 – ou o delegado Richetti.”