
Gésner Braga*
“Macaquinhos” é uma performance teatral apresentada no 22º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, que acontece em São Paulo, até o dia 23 de novembro. Em cena, atrizes e atores totalmente despidos ocupam-se de fazer uma investigação anal do outro, sem que isso seja necessariamente uma colonoscopia. Como o próprio grupo descreve, “Macaquinhos” se propõe ao desbunde, ao deboche, ao degredo, ao íntimo e ao comum, entre outras ações.
Numa reação esperada, a cena vem causando polêmica, indignação e questionamentos sobre o que é arte e quais os seus limites. Alguns exemplos de comentários coléricos podem ser conferidos na página onde o vídeo ao final deste artigo foi divulgado. Há quem afirme, por exemplo, que a performance “não é coisa de gente normal”, que “é coisa de pedófilo degenerado com sérios distúrbios” e que “essa gente devia ser colocada em cana por uns 80 anos”. Clique aqui e confira outros comentários.
Mas eu não estou aqui para fazer análises de aspectos cênicos e estéticos da obra, visto que eu resido em Salvador e não a assisti. Entretanto, adianto que adoro os desempenhos sempre provocativos de Yuri Tripodi, que compõe o grupo de “Macaquinhos”.
Aliás, provocação é exatamente a palavra à qual eu quero me ater. Em uma breve e profícua discussão virtual com amigos, eu me questionava: quem sou eu para estabelecer os limites da arte? Pois uma das suas virtudes é o oposto da imposição de limites, é o seu poder de transgressão, de quebra de paradigmas e de questionamento do nosso pensamento engessado. Por isso, quando uma obra me incomoda, eu paro e penso: por que ela me inquieta? Talvez haja algo em mim (e não na obra) que precisa ser repensado.
A arte sempre foi transgressora. Se hoje uma cena como “Macaquinhos” causa estranheza, o mictório de Marcel Duchamp também se tornou um escândalo em 1917, entre inúmeros exemplos vindos antes e depois. Mas aí reside um dos grandes méritos da arte: tirar-nos da nossa zona de conforto para questionar os valores culturalmente determinados. Afinal, o caráter apelativo atribuído por nós a esta e outras expressões artísticas está atrelado aos nossos parâmetros morais instituídos por uma cultura da culpa.
Neste sentido, “Macaquinhos” está nos prestando grandes serviços. O primeiro deles é trazer à baila um assunto cuja discussão é vetada em nossa sociedade de costumes forjados sob dogmas religiosos: a existência do ânus. E não só do ânus, mas também do pênis, da vagina e de tudo mais que nos remeta a um outro assunto proibido: o sexo.
E quais são as consequências danosas desse nosso silêncio obsequioso? Vou citar três, mas a lista é enorme: 1. o câncer de próstata é o segundo que mais acomete homens simplesmente porque o cu é um terreno intocável, condição imposta por nossa ignorante cultura machista; 2. exames ginecológicos ainda enfrentam resistência por parte de muitas mulheres que deveriam tê-los como hábito e, em alguns casos, é proibido pelos parceiros porque prevalece princípios compulsoriamente fixados por nossa estúpida cultura machista, entre eles a de que a mulher e sobretudo sua vagina são propriedades do homem; 3. gravidez indesejada é recorrente entre adolescentes, assim como se verifica aumento de infecções por HIV nesse segmento porque sexo é um assunto que não se discute em nossa cultura de fundamentos judaico-cristãos.
O segundo mérito de “Macaquinhos” é trazer ao mundo das literalidades o péssimo hábito que se convencionou chamar de “fiscalização do cu alheio”. Não é de agora que, do alto de púlpitos intimidatórios, de templos suntuosos e de nada laicas apesar de públicas concessões de rádio e tevê, baluartes da falsa moral insistem em exercer, sem legitimidade, poder de polícia sobre a vida alheia, confiantes na cegueira dos seus fiéis que saberão reproduzir seus discursos de ódio. Ao levar um conceito figurativo para o literal, os artistas e sua arte fazem uma ótima crítica social. A literal fiscalização do cu em “Macaquinhos” incomoda? Pois me incomoda muito mais o policiamento hipócrita que a sociedade quer a todo custo operar sobre a minha vida.
Ah, um esclarecimento necessário: infelizmente, eu precisei dar um corte especial à foto acima, de modo a torná-la menos “ofensiva”, pois pretendo publicar o artigo em redes sociais onde sei que imperam excessivas normas de “moral e bons costumes”, numa lógica muito dissimulada e incoerente ao meu ver.
Agradeço aos meus amigos Bira Vidal e Leo Victor pela inspiração ao artigo.
* Gésner Braga é gay, ativista social, jornalista e mantem o site Clipping LGBT
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Ouvir seus comentários provoca em mim uma espécie de consolo! Sempre grato pela sua presença, amigo!
Valeu, Leo! Pretendo aproveitar dias de folga neste final de ano para outra resenha.