24 de abril de 2024
http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/o-transgressor/wp-content/uploads/sites/148/2016/05/26241477411_fa2bca7eee_b.jpg?93d805

(Foto: Be not afraid, Scott Richard, 2012)

Carta escrita pelas psicólogas Ana Lúcia Canetti e Esther Siza Tribuzi, publicada em 3 de maio de 2016, no blog “O Transgressor“, de Alexandre Martins, em resposta ao artigo “Criminosa Crueldade“, de Carlos Ramalhete, colunista da Gazeta do Povo.

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(Foto: Be not afraid, Scott Richard, 2012)

Constituir-se mulher ou homem não é algo “básico e essencial” ou biologicamente determinado, conforme o autor Carlos Ramalhete trata no artigo “Criminosa Crueldade”, publicado neste mesmo jornal em 21 de abril de 2016.

Sentimos a obrigação ética de escrever este artigo como um contraponto ao texto de opinião acima citado, pois, no Brasil, bem com em muitos países do mundo, a Psicologia enquanto ciência discute e trata a questão de maneira muito distinta do que foi dito e publicado. Além disso, o artigo faz um mal uso de termos científicos e pesquisados pela Psicologia como “transtornos de auto-imagem”, “delírio”, “loucura” ou “patologia” para falar de pessoas que o autor chama de “ditos trangêneros” (sic).

Como partida, cremos ser importante ressaltar que há vários estudos [1] que apontam que o alinhamento entre sexo, gênero e desejo não são da ordem do natural ou determinados biologicamente. Vale lembrar como, da mesma forma, a homossexualidade era tratada antigamente pelas Ciências e como esse debate avançou, sendo que atualmente não é mais considerada doença ou distúrbio nos manuais médicos [2].

Já há alguns anos, o Conselho Federal de Psicologia e inúmeras entidades internacionais [3] são favoráveis também a despatologização das vivências trans, entendendo que essas pessoas não portam necessariamente alguma doença mental. Compartilhamos também da visão de que as pluralidades das identidades de gênero referem possibilidades de existência e manifestações da diversidade humana, e não transtornos mentais. Essa concepção nos faz entender que as diferenças não são ameaças aos “laços pessoais e familiares que fortalecem a sociedade civil contra os aspirantes a ditador”, como citado pelo autor. Pelo contrário, respeitar as diferenças é parte do vínculo amoroso e social, necessários para constituição de laços sociais e da democracia.

Somos psicólogas e atendemos diariamente pessoas trans no Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais (CPATT) [4]. Pessoas que não necessariamente apresentam algum transtorno de percepção ou de auto-imagem. Muitas, porém, sofrem por viverem em uma sociedade que não as respeita, que as trata como loucas ou como “pobres pessoas”, termo usado pelo autor do artigo cujo qual nos contrapomos. Sociedade também hipócrita, pois o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo e o que mais acessa pornografia trans [5]. Ou ainda no caso de Curitiba, esta é capital do Sul do país que mais mata transexuais e que melhor paga pelo programa na prostituição [6].

Assim, questionamos: qual é o problema de alguém que se vê/sente/se reconhece e é reconhecida como mulher, usar o banheiro feminino? Qual a ofensa ou ameaça que isso poderia oferecer à sociedade?

O autor afirma que uma transexual “julga ser o que não é”. Nós entendemos que ser o oposto do que é de fato, significaria, por exemplo, não poder admitir verdadeiramente aquilo que pensa e sente em função de conveniências. Como insistir em viver fingindo ser homem, por ter sido esse o seu sexo atribuído ao nascer, mas em realidade sentir-se ou se reconhecer como mulher por toda uma vida. Pra que? Qual é mesmo a função disso? O próprio judiciário reconhece e retifica o registro civil de muitos(as) transgêneros(as). Tratar as pessoas trans como ameaças “aos laços pessoais e familiares” é pura e simplesmente crueldade e preconceito.

Crueldade, por tentar excluir as existências em suas diversidades. E preconceito por julgar que aquilo que essa pessoa vive em sua existência não é válido. Além disso, o autor trata estas pessoas como incapazes ou como se estivessem sendo manipuladas para algum fim que não o exercício de suas cidadanias.

Em resumo: pobre e triste, em nossa opinião, é ter uma visão tão simplista e limitada para a realidade do outro e da diferença. 

Ana Lúcia Canetti – Psicóloga formada pela UFPR, Mestre em Psicologia pela UFSC, atua no Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais.

Esther Siza Tribuzi – Psicóloga formada pela UFPR, Especialista em Psicologia Clínica pela PUC/PR, atua também no Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais.

[1] Ver estudos de gênero como FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber.  Rio de Janeiro: Graal, 2005, BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 ou Laqueur, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e Gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. Dentre outros.

[2] A OMS desde 1990 retirou da CID 10 o código 302.0, referente à homossexualidade. No DSM III publicado em 1980, a homossexualidade já não aparecia mais como diagnóstico.

[3] Como exemplo, citamos a campanha internacional intitulada Stop Trans Pathologization-2012, que agrega vários pesquisadores em defesa da despatologização das identidades trans (travestis, transexuais e transgêneros).

[4] Serviço especializado para o atendimento de travestis e transexuais e previsto na Portaria MS nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. É uma unidade ambulatorial que oferece assistência diagnóstica e terapêutica especializada aos indivíduos com indicação para a realização do processo transexualizador

[5] A ONG Transgender Europe (TGEU) apresenta estes dados especificamente sobre o site Redtube.

[6]  Conforme relato de Rafaelle Wiest, presidenta da ONG Transgrupo Marcela Prado, em uma reunião na Comissão de Direitos Humanos, Defesa da Cidadania e Segurança Pública na Câmara Municipal de Curitiba.

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