por Mary Emily O’Hara, com tradução de Marina Schnoor
Publicado pelo site Vice, em 27 de novembro de 2014
Entre outubro de 2013 e o final de setembro deste ano, de acordo com relatórios internacionais reunidos pelo grupo europeu Transrespect versus Transphobia (TvT), 226 pessoas transgênero foram assassinadas no mundo todo. A maioria, mulheres trans negras. Esses números foram reunidos através de notícias e relatórios de organizações parceiras em lugares como Honduras e Tailândia. O site do Transgender Day of Remembrance (TDoF) tem sua própria lista com o nome dos mortos, apresentando cerca de 700 pessoas trans – novamente, a maioria composta por mulheres negras – brutalmente assassinadas nos últimos anos. A lista da TDoF vai até 1970, mas o maior número de homicídios aconteceu entre 2000 e 2012.
As duas listas oferecem um documento horrível de ódio. Nenhum assassinato é agradável, mas os morticínios de mulheres trans tendem a ser particularmente doentios. As vítimas são arrastadas por carros, queimadas vivas, apedrejadas, esfoladas ou – o que é muito comum – espancadas até a morte no meio da rua ou em festas. Fica claro pelas descrições desses homicídios que mulheres transgênero, especialmente pobres e negras, enfrentam uma epidemia de violência e assassinato.
Quando, alguns meses atrás, em Baltimore, duas negras trans foram mortas com apenas seis semanas de diferença, mulheres trans da comunidade disseram aos repórteres que estavam com medo de sair de casa, temendo tanto o assédio normal da polícia como se tornarem alvos por sua identidade.
“É assustador confiar em alguém”, LaSia Wade desabafou ao Guardian em agosto. “Aquele motorista de ônibus, ele pode ser o assassino; aquele taxista, ele pode estar olhando para você e pensando: ‘É uma mulher transgênero, vou acabar com ela’.”
Então, por que a polícia prende mulheres trans que se defendem durante ataques violentos? E por que tantos assassinatos de mulheres trans não só nunca são resolvidos ou sequer investigados propriamente, mas nem mesmo rotulados como crimes de ódio?
“Geralmente, o que se vê são homicídios de mulheres transgênero pobres e negras em que a polícia não responde tão rapidamente quanto deveria e nem com a força que deveria. Não é apenas uma questão trans, mas uma questão de classe social e cor”, afirmou Osman Ahmed, coordenador de pesquisa e educação da National Coalition of Anti-Violence Programs (NCAVP), à VICE.
A NCAVP rastreia dados de violência através de 54 organizações-membros em 24 Estados norte-americanos e no Canadá. Como o Departamento de Justiça americano atualmente não rastreia dados por gênero e orientação sexual, pode ser frustrante tentar reunir estatísticas de homicídio através das agências da lei.
Além disso, o relatório anual do FBI sobre crimes de ódio é inerentemente falho devido à baixa participação. Críticos protestaram em 2011 quando o Estado do Mississippi informou apenas um único caso, uma vez que cidades como Nova York têm divisões próprias para rastrear e investigar crimes do tipo.
“As estatísticas de crimes de ódio que o FBI publica todo ano não formam uma imagem nacional completa”, criticou Ahmed, cuja organização trabalha diretamente com as agências do governo para promover a sensibilidade e a prestação de contas no caso de vítimas LGBTQ. “Os números divulgados são muito menores do que o que está realmente acontecendo. Especialmente com mulheres trans pobres negras: elas desaparecem, e não há investigação.”
Ahmed diz que esse é um problema com raízes profundas e que tem a ver com o histórico de violência policial contra pessoas trans, além da desconfiança em relação às autoridades dentro da comunidade. “Mulheres trans negras têm muito mais chances de experimentar violência policial depois de denunciar crimes de ódio”, disse Ahmed. “Amigos e familiares das vítimas têm menos probabilidade de abordar a polícia por causa desse tipo de culpabilização da vítima, além de confusão de gênero e transfobia.”
Na verdade, quando mulheres trans negras procuram a polícia para denunciar um ataque violento, elas geralmente são acusadas de algum crime e presas. Como no caso de CeCe McDonald, uma jovem estudante trans negra de Design que foi presa por homicídio culposo. O crime dela? Prestes a ser atacada por um neonazista homofóbico drogado em Minneapolis, McDonald pegou uma tesoura de tecido em sua bolsa e a segurou na frente do corpo. O agressor correu na direção dela mesmo assim e morreu mais tarde pelo ferimento. McDonald cumpriu um ano e sete meses de sua sentença de mais de três anos numa prisão masculina, um lugar para onde ela nunca deveria ter sido mandada em primeiro lugar, independentemente de sua condenação. Ela foi libertada por bom comportamento, mas os protestos internacionais e o apoio da atriz Laverne Cox, da série Orange Is The New Black, também ajudaram.
Já Eisha Love não teve tanta sorte. Love e a amiga Tiffany Gooden pararam para abastecer num posto de Chicago; então, alguns homens começaram a gritar ofensas para as duas trans negras. Um deles socou Love no rosto. Depois de perceberem que estavam sob ataque, as duas entraram no carro e tentaram fugir, mas um dos homens bateu na traseira do veículo delas com outro carro enquanto outro agressor tentava abrir a porta do motorista. Apavorada, Love manobrou seu veículo e atropelou um dos agressores, o ferindo seriamente na perna. As duas escaparam vivas. Mas, quando Love foi à delegacia denunciar o ataque, ela foi presa.
Love continua na cadeia, acusada de tentativa de assassinato. Sua amiga Tiffany Gooden não teve tanta sorte – dois meses depois do ataque, ela foi assassinada no mesmo bairro onde o ataque aconteceu. A mãe de Gooden contou aos repórteres que a filha vinha sofrendo ameaças. “Disseram que iam matá-la. Disseram que iam acabar com ‘ele’, porque era ‘ele’ quem estava dirigindo o carro”. Foi a polícia de Chicago que complicou o caso. Se eles tivessem investigado o ataque a Love e Gooden em vez de jogar a primeira na cadeia, sua amiga poderia estar viva.
De maneira parecida, a polícia de Orange County atrapalhou o caso de assassinato de Zoraida Reyes em junho: primeiro, dizendo que não havia sinais de crime apesar de o corpo dela ter sido encontrado numa lixeira, atrás de uma lanchonete; depois, se recusando a reconhecer a morte como um crime de ódio (após vários protestos da comunidade, a força policial de OC admitiu que Reyes havia sido estrangulada; assim, seu assassino foi encontrado em outubro). “Para muitos, a vida das pessoas transgênero não importa, e elas são vistas como descartáveis”, opinou Jorge Gutierrez, amigo de Reyes, ao Los Angeles Times. “Sabemos que a identidade dela como mulher trans foi um grande fator, a polícia querendo reconhecer isso ou não.”
Depois que quatro mulheres trans foram assassinadas em 20 meses na cidade de Ohio, membros da comunidade se frustraram com o que disseram ser uma recusa da polícia em ver os assassinatos como crimes de ódio em potencial. “Ouvimos da polícia que não há razão para acreditar que esses foram crimes motivados por ódio”, disse Aaron Eckhardt, da Buckeye Region Anti-Violence Organization (BRAVO), ao Buzzfeed. “Para nós da comunidade, isso soa como uma afronta. Antes de qualquer investigação acontecer, isso foi usado para desviar o diálogo. Queremos ouvir que eles estão investigando todas as possibilidades.”
Quando as agências da lei se recusam a levar o assassinato de mulheres transgênero suficientemente a sério para reconhecê-los como crimes de ódio, isso perpetua a desconfiança quanto à polícia dentro das comunidades, fechando o círculo. “Muitas vezes, logo no começo das investigações sobre a morte de mulheres trans, muita transfobia entra em jogo, e isso se traduz na alienação da comunidade, que, de outra forma, poderia ajudar”, Ahmed frisou à VICE.
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