23 de abril de 2024
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Por Livia Scocuglia
Publicado pelo portal Jota, em 25 de Julho de 2016

http://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/uploads/2016/04/gay-743009_1280-880x380.jpgA alteração de gênero no registro civil de transexual pode ser realizada, mesmo sem cirurgia de mudança de sexo. Além disso, é vedada a inclusão do termo “transexual” ou do sexo biológico nos registros, ainda que sigiloso. É o que afirma o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em parecer apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 670.422, que teve a repercussão geral reconhecida. O processo discute a possibilidade de alterar a identidade de gênero, sem mudar, anatomicamente, o sexo.

No documento, Janot afirma que a identidade de gênero autodefinida por cada pessoa constitui parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade.

“É necessário perceber – e, mais que isso, reparar – o constrangimento sofrido pelo trans que, identificado e vestido com roupas masculinas, tratando-se de ‘trans-homem’, é obrigado a ser civil e socialmente identificado como mulher e vice-versa em relação à ‘transmulher’”.

“Muitas vezes, como nas situações relatadas pelo recorrente, sofrem constrangimento ao responderem chamadas em faculdades, ao se apresentarem para entrevistas de emprego e ao se identificarem em repartições públicas, dentre outras situação de inegável comprometimento de sua interlocução com terceiros, nos espaços públicos e privados, todas decorrentes da ausência de conformação entre a informação contida nos documentos oficiais e a sua identidade de gênero”.

O caso tramita no STF e envolve S.T.C que foi registrado como mulher, já que nasceu com órgãos sexuais femininos. Mas, antes de completar cinco anos de idade, “já possuía aparência de menino,  tendo enfrentado inúmeros constrangimentos em virtude da inadequação de sua identidade biológica com a sua condição psicológica”.

S.T.C recorreu ao Judiciário pedindo a alteração de nome e gênero do registro civil. A alegação é de que compete ao Estado a tutela da intimidade dos transexuais, mediante a proteção das respectivas escolhas de vida contra o controle público e o estigma social, e constitui-se em dever fundamental a defesa da sua sexualidade, mostrando-se descabidos questionamentos acerca da existência de genitália adequada ao gênero exteriorizado.

Em primeiro grau, o juiz deferiu a troca do nome, mas não admitiu a troca do gênero. Em grau de recurso, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por maioria, indeferiu a alteração do gênero sem mudança cirúrgica dos órgãos genitais e determinou a anotação do termo “transexual” no seu registro de nascimento. O tribunal se baseou nos princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos para proferir tal decisão.

A decisão rendeu críticas da PGR: “Não se afigura lógica nem razoável a decisão que, de um lado, permite a alteração de antenome do recorrente, averbando antropônimo nitidamente masculino, e, de outro, insiste em manter no assentamento civil a anotação de sexo feminino ou transexual, violando-se direitos constitucionais básicos – à identidade, ao reconhecimento, à saúde, à liberdade, à privacidade, à igualdade e não discriminação –, corolários do direito à dignidade da pessoa humana, bem como o direito a recursos jurídicos e medidas corretivas”, afirmou.

Além disso, Janot afirmou que impor a anotação do termo “transexual” no registro de nascimento ou exigir a “conclusão” do processo de transgenitalização, com a realização da neocolpovulvoplastia, como requisito para a alteração do gênero é o mesmo que negar, individual e socialmente, a identidade masculina do recorrente, a qual integra a sua imagem identitária, como ele se vê, “violando-se, assim, o seu direito a uma vida digna”.

No STF, o caso ganhou repercussão geral. Pelo plenário virtual, sistema em que os ministros julgam se há ou não repercussão para o recurso, apenas o ministro Teori Zavascki foi contrário. Os demais – Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello, Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Luiz Fux – consideraram que o tema envolve questão constitucional e tem repercussão geral.

A questão que o STF vai analisar é a possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. A decisão da Corte repercutirá não apenas na esfera jurídica de S.T.C., mas de todos os transexuais que buscam adequar sua identidade de sexo à sua identidade de gênero, mesmo sem a realização de todos os procedimentos cirúrgicos de redesignação.

A PGR afirmou que prefere o uso do termo “adequação” ao termo“redesignação”, uma vez que o sentimento de pertença ao sexo masculino não está ligado ao pênis e não é o fato de o recorrente passar a ter um pênis que implicará na redesignação do seu gênero. “O que a cirurgia faz, para aqueles que desejam submeter-se a tal procedimento, é simplesmente adequar a genitália ao gênero com o qual o sujeito já se identificava. Não se trata, portanto de redesignação, mas de adequação”.

“Não se afigura lógica nem razoável a decisão que, de um lado, permite a alteração de antenome do recorrente, averbando antropônimo nitidamente masculino, e, de outro, insiste em manter no assentamento civil a anotação de sexo feminino ou transexual, violando-se direitos constitucionais básicos – à identidade, ao reconhecimento, à saúde, à liberdade, à privacidade, à igualdade e não discriminação –, corolários do direito à dignidade da pessoa humana, bem como o direito a recursos jurídicos e medidas corretivas”, diz trecho do parecer.

Para elaborar o parecer, Janot se baseou na Introdução aos Princípios de Yogyakarta – Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Tais princípios são normas de direitos humanos e de sua aplicação a questões de orientação sexual e identidade de gênero.

Reparação judicial

Segundo Janot, o Direito deve ser capaz de acompanhar as mudanças que a transformação das realidades sociais introduz na vida cotidiana, “libertando-se de preconceitos que nos impedem de aceitar o próximo do jeito que é. O Judiciário, em sua atuação, deve ter como premissa máxima a garantia da dignidade de todo ser humano, indistintamente”.

A PGR explica ainda no parecer que o que importa na discussão sobre alteração do nome e do gênero no assento de registro civil de transexual, não é a “orientação sexual”, mas a “identidade de gênero”, que consiste na experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento.

“Para o trans, ter uma vida digna implica necessariamente ter reconhecida a sua identidade de gênero, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade”.

“O trans-homem tem o direito de ser tratado, em todas as esferas de sua vida, inclusive a civil e social, como pertencente ao gênero masculino. Assim, o fato, que aparentemente pode ser considerado simples, de fazer constar dos seus documentos o termo “transexual”, além de violar esse direito, enfraquece seu senso de autoestima e de pertencimento à comunidade, podendo levá-lo a reprimir sua identidade e a ter a vida marcada pelo medo e pela invisibilidade”, afirmou Janot.

Direito à privacidade

Outro direito fundamental citado pelo PGR foi o direito à privacidade que inclui a opção de revelar ou não informações relativas à sua orientação sexual ou identidade de gênero, assim como decisões e escolhas relativas a seu próprio corpo.

“Ao permitir a alteração do gênero do trans, independentemente da ‘conclusão’ do processo de transgenitalização e sem a exigência de qualquer anotação referente à situação de transexualidade, o Estado cumpre os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana’, diz o parecer.

No caso, Janot propõe a seguinte tese: “É possível a alteração de gênero no registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de adequação de sexo, sendo vedada a inclusão, ainda que sigilosa, do termo “transexual” ou do sexo biológico nos respectivos assentos”.

Ainda não há data para os ministros analisarem o mérito da questão.

No ano passado, o JOTA entrevistou a advogada Maria Berenice sobre o processo que ela patrocina no STF. Leia aqui a entrevista.

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