25 de abril de 2024

Leandro Colling

Publicado pelo CUS – grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade, em 24/07/2014

leandrocollingAgradeço a oportunidade para integrar esta mesa-redonda, mas aviso que hesitei em aceitar o convite porque eu não sou um pesquisador das religiões, mas Suely Messeder, coordenadora deste evento, insistiu para que eu aceitasse em função de um texto que escrevi, a pedido do Conselho Nacional LGBT, sobre o livro A estratégia – o plano dos homossexuais para transformar a sociedade, publicado no Brasil em 2011 pela editora Central Gospel Ltda, de autoria do reverendo norte-americano Louis P. Sheldon. O Conselho me indicou para escrever um parecer sobre o livro que, ao final, solicitou que a Procuradoria Geral da República e o Ministério Público Federal avaliem se a obra não deveria ter a sua circulação suspensa em função da propagação de discurso de ódio contra as pessoas LGBT. O pedido foi encaminhado aos órgãos federais, que repassaram o assunto para São Paulo, onde a obra foi editada no Brasil. Nada foi feito e o livro continua sendo vendido. Este livro já foi vendido inclusive nos catálogos da Avon.

Vou retomar algumas questões que estão nesse texto que fiz sobre o livro A estratégia, em paralelo com outros pequenos textos que fiz após a eleição do pastor Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, todos publicado em nosso blog Cultura e Sexualidade no portal ibahia.com. Também vou retomar outro artigo, a ser publicado na próxima edição da revista Contemporânea, da Universidade Federal de São Carlos, em que faço uma análise do primeiro ano de funcionamento do Conselho Nacional LGBT, do qual fiz parte ocupando uma vaga conquistada pela Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), que presidi de 2011 a 2012.

Depois da escolha do pastor Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, duas perguntas se tornaram recorrentes entre as pessoas interessadas pelo respeito à diversidade sexual e de gênero em nosso país:

Como explicar o crescimento do fundamentalismo religioso no Brasil e de suas ações em desrespeito às diversidades, em especial as relativas à diversidade sexual e de gênero? O que fazer para frear esse poder?

Vou esboçar alguns aspectos que, no meu entender, devem ser considerados por quem deseja enfrentar essas duas perguntas. Antes de tentar responder as duas perguntas, gostaria de fazer três ponderações importantes:

? A primeira serve para dizer de onde eu falo: sou um pesquisador interessado nas relações entre as culturas, as sexualidades e os gêneros, fortemente influenciado pelos estudos queer e cada vez mais interessado pelo campo das subjetividades, pelas micropolíticas, de como as micropolíticas precisam e podem contaminar as macropolíticas. Ou seja, não entendo aqui as micropolíticas como as políticas realizadas em pequena escala, mas me filio a Suely Rolnik, em Cartografia sentimental, quando ela diz que as micropolíticas são aquelas que modificam e produzem novas subjetividades, novos processos de subjetivação;

?  Segundo ponto: eu sou uma pessoa religiosa. Sou ogã, confirmado, do terreiro Ilê Axé Oyá Mesi. Portanto, antes de mais nada, peço a benção às pessoas mais velhas. Como muitas outras pessoas, sou também duplamente atingindo pelo crescimento do poder do fundamentalismo religioso – por ser viado e por ser macumbeiro. Utilizo aqui os termos viado e macumbeiro no propósito de resignificá-los, na mesma proposta do uso do insulto queer, pelos estudos queer, que potencializaram os outros significados igualmente presentes na palavra queer, a saber, o estranho, aquilo que é difícil de definir. Nesse sentido, cumpre dizer que viado é um belo animal, majestoso, forte, muito sensível aos perigos do seu mundo e delicado ao mesmo tempo. E o termo macumba provém de um antigo instrumento musical de percussão, uma espécie de reco-reco, de origem africana, utilizado em vários terreiros;

?  O terceiro aspecto diz respeito a um ponto do debate em si. Nesta discussão sobre fundamentalismo religioso no Brasil, muitas vezes estamos colocando “no mesmo saco” todas as pessoas evangélicas e todas as denominações evangélicas. É preciso destacar que existe também uma diversidade entre essas denominações e uma diversidade dentro das próprias denominações. Portanto, quando eu usar aqui a expressão fundamentalismo religioso eu não estou me referindo a todas as pessoas evangélicas, ok? E não são apenas pessoas evangélicas que são fundamentalistas. O fundamentalismo pode ser encontrado em várias religiões.

Primeira pergunta:

Razões do crescimento do fundamentalismo religioso e do seu poder político no Brasil

?  O número de evangélicos cresceu no vácuo deixado pela Teologia da Libertação, da Igreja Católica, que estava mais presente exatamente nos setores em que as igrejas evangélicas mais cresceram, em especial nas periferias das cidades (pesquisador e ativista Eduardo Albegaria escreveu um bom texto sobre isso, que está disponível do site da Cia Revolucionária Triângulo Rosa, de Brasília);

?  Para crescer, muitas igrejas evangélicas usaram e continuam usando agressivas estratégias de marketing religioso, que obedece a critérios de marketing de mercado e é fortemente vinculado com a utilização dos meios de comunicação de massa, em especial rádio e televisão;

?  Depois de verificar que chutar a santa não deu certo, porque a Igreja Católica é poderosa, a estratégia dos fundamentalistas foi apostar em um forte discurso contra determinados setores que já são mais fragilizados, como as religiões de matriz africana, as mulheres, negros/as e as pessoas LGBT;

?  Os fundamentalistas usam um discurso muito simplista e dicotômico. Nós detemos as verdades de Deus e os outros são coisas do demônio. Ou seja, trata-se de um discurso de fácil assimilação, dentro de um modelo de pensar já muito enraizado em nossas sociedades. Isso facilita a comunicação e o convencimento de muitas pessoas, em escala massiva;

?  Promessa de felicidade para hoje. Basta você aceitar Jesus e fazer as doações, sem esquecer a senha do cartão, por favor. Com isso, os seus problemas acabam agora. Se não acabarem é porque você não tem fé suficiente, ainda está possuído pela coisa ruim. O forte do discurso fundamentalista não é a promessa de salvação e felicidade para depois da morte. É para agora, para hoje, o que cola completamente com uma das marcas de nossa sociedade atual, que quer gozar já, agora. A teologia da prosperidade é um desses exemplos;

?  Com o crescimento do número de adeptos, os pastores passaram a se candidatar aos parlamentos e conquistaram vagas nos legislativos de todo o país. Hoje a bancada evangélica tem 63 dos 512 deputados federais, centenas de deputados estaduais e vereadores e um ministério do governo Dilma;

?  Nos últimos anos, as diversas denominações evangélicas esqueceram as suas diferenças e passaram a se unir em torno de determinados temas, em especial os ligados com as discussões em torno da diversidade sexual e de gênero. E um dos livros que cumpre o papel de unificar os discursos dos fundamentalistas é A estratégia – o plano dos homossexuais para transformar a sociedade, de autoria do reverendo norte-americano Louis P. Sheldon.

Nesse livro, o autor defender que nós, homossexuais, somos os novos terroristas que devem ser atacados, que queremos destruir a família, que disseminamos uma cultura de morte e não um estilo de vida, que queremos ensinar as nossas criancinhas a serem gays e lésbicas, que a universidade está contaminada por uma epidemia da diversidade, que a homossexualidade é uma doença que precisa ser curada, entre outras várias coisas. Se compararmos o que diz o livro com o discurso dos fundamentalistas religiosos brasileiros mais conhecidos veremos que existe uma total sintonia.

E como combater esse fundamentalismo religioso?

A minha proposta não é elencar um conjunto de questões por ordem de importância e muito menos oferecer uma receita de bolo, um manual, mas apenas e a de apontar alguns aspectos que considero centrais para esse enfrentamento. Tenho ciência de que existem outros aspectos que também são importantes, mas sobre os quais eu não irei tratar aqui:

?  Urgente regulamentação da comunicação de massa no Brasil. O governo federal não pode mais permitir que as concessões públicas de rádio e televisão sejam utilizadas, 24 horas por dia, para a proliferação de discursos de ódio. A regulamentação e a democratização da comunicação no Brasil foi uma pauta histórica do PT, que não foi enfrentada pelos governos Lula e Dilma. O mesmo vale para os governos de FHC;

?  Articulação entre os diversos movimentos sociais mais atingidos pelo fundamentalismo religioso, em especial os movimentos LGBT, feministas, negro e das religiões de matriz africana. Tenho pensado e escrito sobre porque é tão difícil a união entre esses grupos. Mesmo no movimento Fora Feliciano, onde temos um inimigo explicitamente machista, misógino, racista e homofóbico, a união entre esses movimentos se mostrou tímida.

E por que isso ocorre? São várias as razões, entre elas estão os preconceitos entre esses próprios grupos, a disputa de verbas e poder entre eles, a excessiva partidarização entre os movimentos e, também, a excessiva aposta nas chamadas políticas identitárias que geraram, sem querer, uma fragmentação na luta pelos direitos humanos.

Essa fragmentação é incapaz de perceber as opressões que atravessam os diversos grupos, pois cada um está apenas preocupado com o seu quadrado, com a sua caixinha, ou melhor, com a sua identidade, que é muito impermeável às demais identidades. Enquanto isso, a realidade nos mostra, mais uma vez, que não somos apenas negros e negras, ou apenas candomblecistas, ou apenas gays e lésbicas, ou apenas mulheres. Diversos militantes perceberam essa necessidade de união temporária de movimentos diferentes e já começamos a perceber esforços nesse sentido, a exemplo do que ocorreu ontem no X Seminário Nacional LGBT, no Congresso Nacional e articulações que estão sendo realizadas nesse sentido pela Cia Revolucionária Triângulo Rosa, de Brasília;

?  Também precisamos que as pessoas que estão nos cargos de comando mais importantes defendam sempre, de maneira irrestrita, sem concessões, o Estado Laico e que elejam as nossas bandeiras como prioritárias. Em todos os países onde os marcos legais pró-LGBT avançaram, esses temas foram escolhidos como prioridade pelos/as presidentes/as e/ou primeiros ministros dos países. Aqui na América Latina isso aconteceu na Argentina, no Uruguai, no Chile e no Equador. Na Europa isso aconteceu na Espanha, em Portugal e recentemente na França. Em todos esses países ocorreu uma forte pressão dos religiosos, mas os comandantes das nações não se ajoelharam. Enquanto isso, hoje, aqui no Brasil, as políticas públicas LGBT, em âmbito federal, estão praticamente paralisadas. O governo federal atual criou mas não reconhece, a rigor, o Conselho Nacional LGBT. A maior prova da paralisia é que ainda não temos o nosso II Plano Nacional LGBT, apesar da II Conferência nacional LGBT ter sido realizada em dezembro de 2011;

?  Qualificação do debate na desconstrução das principais ideias dos fundamentalistas. De modo geral, a compreensão sobre o campo das sexualidades ainda é muito rasa, quase sempre vinculada exclusivamente à ideia de uma normalidade e naturalidade da sexualidade e dos gêneros. Como contraponto à ideia de que queremos acabar com a família, na maioria das vezes, vejo pessoas LGBT dizendo que nós queremos é formar também famílias. Raro é ver alguém argumentando que a instituição familiar também é fruto de um processo cultural, que produziu grandes modificações no que se entende por família na história da humanidade. Em geral, vejo muitas pessoas LGBT muito mais aderindo a determinados argumentos dos fundamentalistas do que desconstruindo as bases das suas ideias;

?  E, por fim, penso que devemos apostar mais em outras estratégias políticas, que dialoguem mais explicitamente com o campo da cultura, com a produção de outros processos de subjetivação. A nossa luta, nos últimos anos, via de regra, tem sido calcada na luta por questões institucionais e marcos legais, que são importantes mas que, sozinhos, não acabarão com a homofobia, o racismo e a misoginia. Precisamos apostar mais em outras formas de fazer política e chamar para a luta, cada vez mais, os heterossexuais. Nesse sentido, o movimento Fora Feliciano revelou, pelo menos no início, que temos sim criatividade e capacidade de unir uma série de pessoas diferentes em torno da luta pelo direito de ser diferente, inclusive pelo direito a ser um heterossexual diferente. Por isso, chega de considerar os simpatizantes como suspeitos, o que afastou e continua afastando possíveis aliados, um equívoco político brutal em qualquer circunstância, ainda mais em momentos críticos como o atual.

No movimento Fora Feliciano, nossas mensagens contrárias aos fundamentalistas religiosos apontaram para outras formas de viver a vida, e milhares de outras formas de se auto-identificar, bastante distintas entre si. Através de um velho instrumento como os cartazes, publicizados via on-line ou não, podemos perceber que as pessoas, definitivamente, não se deixam encaixar em algumas letrinhas e definições. E, paradoxalmente, a constante criação e recriação de novas e velhas identidades, que alguns sempre consideraram como um problema político para qualquer movimento, nesse nosso momento revelou-se como nossa grande riqueza e força. Somos, e podemos ser muito mais, uma multidão de diferentes, unidos em torno do respeito às nossas diferenças. É com essa esperança que eu me despeço e peço que todos gritem comigo: Fora Feliciano!

*Texto escrito e lido para a minha participação na mesa redonda Um diálogo sobre sexualidade e conhecimento religioso, que também contou com a participação de Ebomi Thomázia Azevedo (Ilê Axé Opô Afonjá), Marcelo Natividade (UFC) e a coordenação de Miriam Rabelo (UFBA), (veja foto) realizada no III Seminário Enlaçando Sexualidades, dia 15 de maio de 2013, em Salvador, Bahia.

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