18 de abril de 2024
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Relato de Gabriel Giffoni, homem trans de 24 anos, em seu processo de afirmação de si mesmo, publicado originalmente em seu perfil no Facebook

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Eu tenho uma declaração pra fazer. EU SOU TRANSEXUAL! E agora, somente agora, com os meus 24 anos de vivência eu pude entender o que isso significa e significou em todos os meus momentos de confusão, já que o meu corpo não correspondia com a minha mente.

Eu me lembro que desde pequeno nunca tive aquela tendência para ser a princesinha promissora que a minha mãe sonhou quando deu à luz a uma menina.

Na minha infância, por volta dos meus nove anos de idade, logo quando eu mudei para Salvador, a diretora do colégio chamou minha mãe para conversar e começou a dizer que eu não era igual às outras meninas da minha idade, que eu não me preocupava com a minha aparência e vivia andando com os meninos e me portando como um.

Minha mãe, graças a Deus, nunca me cobrou que eu usasse vestido nem maquiagens, agradeço muito por isso.

Já na adolescência, acredito ter sido o momento “divisor de águas”, e é nessa época que a cobrança para você ser mulher ou homem é mais fortemente imposta pela sociedade. Foi exatamente nesse período que tudo aconteceu para mim, acho que foi a fase mais confusa de toda a minha vida.

Nessa fase, eu vivia em uma cidade próxima a capital (mas ainda assim era um interior), e nessa cidade, onde os padrões mais conservadores e o impiedoso cis-tema heteronormativo imperava, o simples fato de se assumir homoafetivo era motivo para perseguições e humilhações, imagine se assumir transexual?

Nessa época o meu interesse sexual pelo sexo feminino começava a despertar, e essa foi a primeira confusão porque eu não entendia o que estava acontecendo, eu sentia que não era só amizade, era um carinho maior do que isso e com desejos maiores do que isso, e eu não podia falar, eu não podia expressar, eu não podia sentir. Chegou um momento que eu não consegui mais mascarar e comecei a transparecer esse lado, foi aí que as piadinhas começaram…

Lembro de um “inimigo secreto” que participei e ganhei a minha primeira cueca. Todo mundo riu quando eu mostrei o que era, mas meus olhos brilhavam. Era a minha primeira cueca e foi uma das melhores coisas que eu ganhei porque já tinha tentado pedir a minha mãe e ela sempre me dizia não. Essa, como tinha sido “presente”, ela não reclamou e eu usei até rasgar.

Sofria preconceito de uma garota mais velha do que eu. Ela vivia me chamando de “sapatão” (adjetivo que considero pejorativo, porque eu não era uma mulher masculinizada, eu era/sou homem!). E esse é só um pequeno exemplo.

Foi tanta pressão que comecei a acreditar que eu devia tentar me encaixar. Passei a usar brincos, roupas mais “femininas”, mas não adiantava, aquele não era eu.

Logo começou a época dos aniversários de 15 anos e com isso a imposição ainda maior de usar vestidos. Eu juro que tentei, mas quanto mais eu me produzia, mais eu deixava de me enxergar no espelho. Aquele não era eu.

Foi nesse período que surgiram o fake. Criei um perfil em um jogo e havia a opção de escolher um avatar feminino ou masculino, e eu lembro que nesse dia passei uns 30 minutos olhando para a tela do computador refletindo sobre essa decisão. Eu podia criar um perfil de menina e ser lésbica, afinal eu estava atrás de uma tela de computador, mas se eu podia ser a porra que eu quisesse, por que não ser eu mesmo? Criei um menino.

Mantive esse perfil por uns 5 anos. Aquele era o meu refúgio, minha válvula de escape, lá eu podia ser o Gabriel, sem julgamentos, sem humilhação, eu era reconhecido como um menino, tratado como menino. A minha vida virtual se tornou mais interessante que a vida real.

A coisa começou a mudar quando eu fui estudar em Salvador e a visibilidade homossexual já estava maior. Na minha sala, por exemplo, tinham 3 lésbicas assumidas e um gay.

Logo no primeiro dia de aula, um menino me perguntou se eu era hetero ou lésbica, e eu entrei em choque. Meu desejo estava tão óbvio assim? Eu respondi que tinha interesse em ficar com meninas e foi aí que passei a levantar a bandeira lésbica com toda a força na minha vida social e familiar. Eu estava me sentindo tão bem, pela primeira vez não precisa esconder a minha vontade de ficar com meninas.

Como consequência, comecei a ficar à margem da sociedade heteronormativa, sofri todos os tipos de agressões, de inúmeras pessoas conhecidas e desconhecidas, já fui expulso de lugares por estar com uma menina, ouvi xingamentos, recebi olhares de repulsa. Mas o que acho interessante é que o discurso começa sempre igual: “desculpe incomodar, não é preconceito nem nada, mas…” o que vem depois desse “mas” faz você sentir nojo da sociedade, porque é um discurso pautado puramente no preconceito que a pessoa jura não sentir.

Depois que me assumi lésbica, comecei a perceber que aquilo ainda não era suficiente, tinha algo errado. Eu tinha a versão feminina do meu lado como sempre imaginei, mas EU não era como sempre imaginei. Eu não sou lésbica!

Aquele cabelo grande não combinava com meu verdadeiro eu, não fazia parte do meu ideal. Eu parava toda vez na frente do espelho e ficava me imaginando de cabelo curto. Foram vários meses de autorreflexão, de coragem e questionamento da opinião das pessoas que eu convivia.

Quase todas as pessoas me diziam para não cortar: “Ah não corta, você vai ficar parecendo um menino” (mal sabiam elas que era essa a intenção). Tive o apoio de apenas uma pessoa, e graças a ela hoje me sinto melhor comigo mesmo. 

O tempo passou e a palavra “transexual” começou a ser mais vista na internet e na mídia como um todo. Um assunto que antes era visto como tabu, passou a ser discutido e abordado de várias maneiras e foi aí que eu comecei a me descobrir, a renascer. Eu finalmente sabia quem eu era e eu não estava sozinho.

O primeiro registro desse momento foi uma foto que coloquei no meu perfil e nela eu estava sem camisa e de boné (bem caracterizado como um homem) e durante uma semana eu perdi a conta de quantas pessoas me perguntaram se eu era transexual e eu sempre ficava estático sem saber o que responder, na verdade com medo da minha própria resposta. E foi tanta cobrança por uma resposta que eu comecei a me questionar sobre isso, e entender que se não tomasse coragem naquele momento, poderia ser que eu nunca tomasse. Sabe quando você sente que aquela força maior abre uma porta e fala “meu filho se você não entrar, você não entra nunca mais”? Foi bem isso que eu senti, e foi numa conversa franca com a minha namorada que eu chorei assumindo que realmente era.

Tá. Assumi. E agora o que a gente faz?

Eu realmente tinha renascido e não sabia o que fazer, não sabia que passo tomar e foi aí que ela sugeriu que a gente começasse a me tratar no masculino nas mensagens que trocávamos por uma semana para fazer um “teste”. Concordamos que precisava existir uma fase de adaptação, já que ninguém vai dormir com um sexo e acorda com outro, isso é fato.

Depois que você assume sua transexualidade você tem que criar uma nova imagem na cabeça das pessoas que você convivia e isso leva tempo e paciência, uma coisa que se você não tem você realmente precisa aprender a ter.

Na madrugada que nós tivemos essa conversa eu sabia que assim que o sol surgisse e falasse meu primeiro “bom dia” seria como Gabriel. Sabe aquele frio na barriga que você sente quando desce rápido de um lugar muito alto? O que eu senti foi 1000x isso, foi um misto de medo, ansiedade; uma sensação indescritível porque eu comecei a perceber o peso dessa decisão. Não é fácil, porque você sabe que vai perder pessoas com as quais você se importa, você sabe que vai começar a sofrer preconceito (pior do que já sentia) porque quanto mais você é diferente, mais você é taxado de estranho e anormal. Mas você tem que permanecer forte! Embora eu tivesse sentido tudo isso e mais um pouco naquela madrugada, uma coisa era certeza: por dentro eu estava aliviado e com aquela sensação de liberdade que realmente não tem ninguém nesse mundo que pague.

Passada essa semana de teste, eu já estava acostumado a mudar o gênero até porque fiz isso durante 5 anos com o fake e nessa mesma semana eu já tinha contado pra uns amigos mais íntimos que me apoiaram nessa nova fase e ouvi as seguintes frases “não sei porque você demorou tanto”; “eu sempre soube que você tinha essa essência”; “nenhuma novidade sobre o sol, sempre te vi como um menino”. E meu irmão que sempre foi uma peça chave para ver que não importava quantas pessoas me olhasse torto ou me julgassem, ele sempre iria estar lá para apoiar as minhas decisões.

Eu estava me sentindo completo, falava em alguns ciclos sociais no masculino onde sou tratado como Gabriel. Agem com tanta naturalidade que dá pra perceber que já passaram pelo processo de adaptação e realmente conseguem enxergar minha essência.

Mas como a vida não é fácil vieram os surtos dessa decisão tomada. Primeiro foi com a minha namorada, acho que a fiz engolir muito rápido um prato que a digestão tem que ser lenta, rs foi uma fase difícil e eu quase a perdi! Ela foi um dos pilares que estava me sustentando no momento para conseguir “colocar a cara no sol”, mas eu não podia culpá-la, afinal ela começou o relacionamento com uma “menina”, não podia exigir que ela ficasse se ela não quisesse e foi isso que eu disse, mas por mais que ela estivesse confusa, ela escolheu estar ao meu lado. Eu tinha certeza que o sentimento existia e que uma hora o gostar do ser seria maior do que um gênero e foi o que aconteceu. Depois da maré revolta, veio a calmaria e nosso barco sobreviveu e hoje ela é uma das que mais me apoia, já chorei várias e várias vezes no telefone com ela.

Depois que você se assume vem a vontade de querer gritar aos quatro cantos do mundo que você se libertou, porém não é tão simples. Uma das provas foi que eu ainda tinha que ser seletivo nesse novo processo e tinha lugares que eu era tratado como eu realmente sou e tinha lugares que eu ainda tinha que fingir ser uma coisa que eu já não era mais (faculdade/casa/amigos que ainda não sabiam).

Outro exemplo foi quando precisei procurar um emprego e consegui uma entrevista em uma padaria gourmet. Fui vestido como eu sempre vou, ou seja, com roupas masculinas, e a dor de não poder se apresentar como você realmente é já começa desde quando perguntam seu nome. Como eu poderia me apresentar no masculino se eu tinha medo que eles nem me deixassem terminar a entrevista? Sou pré-T (não hormonizado) e na época nem usava binder (faixa dos seios), então coloquei a máscara heteronormativa e segui. Consegui o emprego, mas ser tratado no feminino não é a melhor coisa depois que você se assume, e olha que isso nem era o pior: lá exigiam que as mulheres fossem maquiadas e usassem sapatilhas! Gente, eu nunca tinha usado uma sapatilha na vida!!! Só que eu precisava trabalhar.

E assim eram todos os dias: deixava pra me maquiar no trabalho porque eu ia vestido de Gabriel e lá eu me montava para parecer uma mulher cisgênera. Eu particularmente gostava do emprego, o que não gostava era de ser colocado como mulher no emprego, mas como explicar que eu era trans? Então, você se pega em uma prisão sem grade de não poder ser quem você realmente é, porque o Cistema não quer entender e é muito difícil encontrar empregos que aceitem pessoas trans, ainda mais se elas não são passáveis (trans que é lido pela sociedade pelo gênero que deseja expressar). 

E era essa mensagem que eu queria frisar antes de encerrar esta declaração sobre o meu novo eu: Eu entendo que o desconhecido, o diferente, causa medo. Somos tão acostumados com o cotidiano que nos adestramos a definir um padrão do que é ”normal” e tudo o que foge desse padrão se torna motivo de ataques de ignorância das pessoas que se negam a enxergar e entender o “novo” e isso me entristece porque é esse pensamento fechado e pequeno que faz o preconceito tomar essa proporção que assassina ou agride tanto fisicamente quanto verbalmente. Portanto, amibiguinhos vamos ser mais do que isso? Vamos amar, vamos enxergar o coleguinha gay, a coleguinha lésbica, xs coleguinhxs trans, pelo que eles são? Pelas qualidades e o caráter acima da orientação e gênero que ele expressa?

Enfim esse é o começo da nova etapa da minha vida e eu sei que tenho muito chão pela frente, muita dificuldade e preconceito, mas sei também que para cada agressão que sofro e sofrerei, para cada pessoa me olhando como se eu fosse uma aberração, vão existir o dobro de pessoas que me entenderão, me apoiarão, me deixarão confortável para mostrar quem sou de verdade!”

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