10 de dezembro de 2024
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Crescemos acreditando que há cidadãos de primeira e segunda classe, e que os transgêneros não devem ser tratados como humanos. Mas, por trás de todos os preconceitos, existem pessoas com histórias e sonhos.

André Pacheco

Publicado na revista “Vestiário”, em 4 de novembro de 2013

São Paulo, 03 de novembro de 2013. É por volta das quinze quando eu e o Jader chegamos a um desses típicos prédios do centro, próximo à Catedral da Sé. Anunciamos a nossa presença e, como de praxe aqui, mostramos o nosso RG. Entramos no elevador e subimos. Terceiro andar. A porta já estava aberta e uma simpática senhora nos esperava. Alta, de porte esguio, cabelos encaracolados e tingidos dum louro bem amarelo. Seu nome é Thaïs, com trema mesmo. “É francês”, explica com um tom de voz calmo, que se estendeu por toda a entrevista. Foi mais de uma hora de conversa.

A travesti Thaïs Azevedo é exceção. Chegou aos 60 anos
(Foto: Jader Gomes)

 

Batizada e registrada como Antônio Gabriel de Azevedo, a mineira Thaïs é uma vencedora. Numa sociedade onde travestis são vistas como escória, passar dos 30 anos é quase como ganhar na loteria. “Seria muito pretensão minha achar que sou uma exceção, mas não posso negar que tive sorte,” justifica. Mesmo não querendo se assumir como peça fora da regra, ela não se entregou ao papel social reservado ao terceiro sexo. Thaïs é calma, intelectualizada e emocionalmente estável. Além de somar mais de seis décadas de vida.

“Existe esse lado de sofrimento, do preconceito, o lado da exclusão,” conta o psicólogo Pedro Sammarco, autor do livro “Travestis Envelhecem?”, lançado recentemente pela editora Annablume, e completa: “elas acabam desenvolvendo essa coisa agressiva, do ataque, mas como uma forma de proteção. Porque elas foram muito agredidas, desde pequenas e em suas próprias casas”. Abandonadas e sem amparo familiar, sofrendo incontáveis tipos de abusos psicológicos e físicos, a grande maioria vai pelo caminho da prostituição e do crime, vivendo no gueto. Como consequência, elas morrem cedo. Estima-se que a expectativa de vida de uma travesti seja de 30 anos, menos da metade da média nacional.

Thaïs nos conduziu até a sala de estar, sentamos em frente a uma janela grande, dessas que deixam o máximo de luz do sol entrar. O apartamento é amplo, a decoração mistura móveis antigos com novos. Há vasos com plantas, bibelôs e muitos, mas muitos livros. Nada muito distante do que poderia ser a casa da minha falecida avó, ou até mesmo da minha mãe. Mas algo ali me chamou bastante a atenção. Um quadro de Jesus logo na porta, como que um aviso que, para a dona daquela casa, não há nenhum dogma cristão forte a ponto de tirar-lhe a sua paz interior. Fui pra entrevista esperando encontrar um tipo de pessoa bem diferente da que conheci, por isso, praticamente deixei de lado a minha pauta e quis conhecer mais sobre essa figura tão hipnotizante. Thaïs é aquele tipo de pessoa que dá vontade de abraçar, de ter por perto.

“Um dos problemas da sociedade é achar que o homossexual não é feliz,” afirma categoricamente em algum momento da prosa. De fato, existe uma quantidade absurda de verdades não verdadeiras ditas e repetidas sobre gays, lésbicas, travestis e transgêneros. A sociedade parece querer continuar imersa na ignorância quando o assunto é o debate de gênero, talvez como uma forma de proteção. Uma de nossas principais bases está justamente no que é “ser homem” e no que é “ser mulher”. Para Pedro, tudo isso é apenas um pacto social, uma maneira de padronizar o comportamento da massa e facilitar o controle. “A gente aprende que o gênero é algo imutável, uma matemática, e isso não é necessariamente verdade”, defende.

Então, se nós estamos imersos num contexto onde quem devemos ser está baseado no que temos no meio das pernas, como fica a questão dos que vão além? Aí está o problema, essa questão por muito tempo nunca foi sequer levantada. Se gays e lésbicas, que em sua maioria desempenham os papéis sociais estipulados para os homens e mulheres, já são massacrados diariamente, a situação piora bastante pra quem transita entre as duas pontas. Há a privação do direito básico de pensar, e logo, de existir. “A travesti, naquela luta constante pela sobrevivência, coloca todo o questionamento de lado. O único questionamento que existe é sobre o dinheiro, porque ela precisa comer. A sociedade reduz essas pessoas a um estado de abandono tão grande, que mesmo que uma menina tenha dinheiro, tenha tudo, ela está tão só, que está tão privada da vida,” conta Thaïs.

SUBEMPREGOS

Logo quando nascemos, a nossa família já deposita uma grande expectativa sobre o nosso futuro. Alguns pais até escolhem a profissão que o rebento vai exercer, anulando desde a infância qualquer outro talento que poderia se desenvolver. A gente estuda, se qualificando o tempo todo pra conseguir um lugar ao sol no competitivo mercado de trabalho. Há, desde que somos crianças, um investimento constante em nossa formação intelectual, e qualquer percalço no caminho pode estagnar uma vida inteira. “Tem a questão do emprego, que não engloba as travestis”, diz Pedro. “Algumas empresas até têm uma política de inclusão, mas ainda é muito pouco, porque a travesti que consegue ser empregada, deverá ter tido uma qualificação educacional e profissional, e são muito poucas as que conseguem isso,” conclui.

A grande maioria das travestis são expulsas de casa logo na adolescência, o sistema educacional não está preparado pra recebê-las. Por causa do nome social e de todos os problemas que isso pode gerar, além do preconceito visível, muitas desistem de buscar algum sonho. Resta a prostituição ou alguns empregos que pagam pouco e exigem pouca, ou quase nenhuma, formação acadêmica. É uma vida difícil, e Thaïs entende muito bem isso. Nos anos 70, ela saiu do norte de Minas e se mudou para o Rio de Janeiro, lá trabalhou como faxineira numa época onde esse serviço era quase próximo à escravidão. Mas a sorte virou quando ela conheceu o estilista Luiz Carlos de Carvalho, famoso da época, que se encantou por seu corpo e a contratou como manequim de prova.

“Fui trabalhar com moda, foi o meu primeiro emprego. Me ofereci como faxineira num showroom, mas como me acharam muito bonita, acabei fazendo um teste pra ser vendedora, mas foi por pouco tempo, porque daí veio o Carlos, tirou minhas medidas e achou que eu seria um manequim ideal, acabei me mudando para São Paulo.” A prostituição, naquele momento, parecia ser uma punição distante, até que a situação se complicou. Thaïs trabalhava como modelo durante o dia e à noite era vendedora num shopping de classe média alta da capital. A comissão das vendas era o suficiente pra manter um padrão de vida estável. “Quando descobriram que eu era travesti, as funcionárias de todas as lojas do shopping fizeram um abaixo assinado para que eu fosse mandada embora,” conta sem nenhum traço de revolta ou frustração. Decidiu largar o país. “Eu já tinha uma amiga que estava na França, e lá eu tive que sobreviver. Acabei me prostituindo, mas eu não gostava. É o que eu acho que acontece com a maioria, mas muitas não se questionam.”

Hoje, Thaïs trabalha na inclusão de travestis e transgêneros através do Centro de Referência da Diversidade, projeto ligado à Prefeitura de São Paulo e idealizado por Marta Suplicy em parceria com a União Europeia.

O BURACO É MAIS EMBAIXO

Thaïs trabalha na inclusão de travestis e transgêneros
(Foto: Jader Gomes)

 

Você já parou pra pensar como não faz sentido algum o mesmo travesti que é assassinado na rua, ser o mesmo travesti que ganha dinheiro com o seu próprio corpo? Ora, se há prostitutas, é porque há clientes. E são muitos os locais disputados, tanto que não raro acontecem conflitos por causa de pontos de prostituição. Pra entender isso, devemos voltar ao ponto inicial da questão: a identidade de gênero.

O machismo diz claramente quem é quem nessa história toda. Ele também impõe como nós homens, principalmente os heterossexuais, devemos agir. Homem não chora, não demostra sentimentos, tem que ser líder e dominador. E daí, dane-se se você é mais sensível e não gosta de ser o centro de comando numa relação. Tem que gostar de azul, rosa é pras moças. O machismo não subjuga apenas as mulheres, o masculino também sofre com isso. É claramente um papel social que deve ser desempenhado dia após dia, semana atrás de semana. Se estende por toda a vida um filme genérico chamado “Homem hétero e pai de família”. Mas nem todos os homens suportam essa pressão, e acabam achando formas de sair um pouco desse personagem.

Travestis sempre existiram ao longo da história, e em todas as sociedades. O Kama Sutra, por exemplo, cita relações sexuais com o “terceiro sexo”. Mas o ocidente conseguiu eclipsar e colocar esse grupo inteiro como doente. “Até pouco tempo, achava-se que a travesti era uma pessoa louca, isso era muito comum,” diz Pedro. Mas não é um doente qualquer, é um doente objeto. Sem história de vida, sem personalidade, com pouca, quando existe, perspectiva de futuro, o travesti é tratado meramente como um objeto sexual. “É um fetiche, a sociedade ainda nos vê, e nos usa, como um objeto sexual de homens, e também de mulheres,” conta Thaïs.

“As pessoas, geralmente, só conseguem ver a gente como fantasia, e isso tudo é muito equivocado,” completa aquela elegante senhora. E essa objetificação é tão grande, que até mesmo eu, há anos inserido nesse debate de gênero e na militância, me assustei quando estava de frente a uma mulher que ia contra todos os clichês esperados. “Você me convidaria para um jantar na sua casa?”, perguntou sem papas na língua. Respondi, óbvio, que sim. Mas não posso negar que houve uma ponta de dúvidas. Afinal, eu também carrego todas as imposições sociais que nos permeiam, além de que Thaïs foi a primeira travesti com quem eu tive a oportunidade de sentar e conversar. Senti que naquele momento eu me desamarrava um pouco mais do papel masculino que escolheram pra mim.

“Por que você acha que o homem procura uma travesti? É justamente pra se libertar desse peso de ser homem,” defende Thaïs, que trabalha à frente da causa desde os anos 90, quando largou a França e voltou ao Brasil. “As pessoas têm a ideia de que ser homem é ser de um jeito, que não pode ter sentimento, não pode ter delicadeza. E o parceiro da travesti não é homossexual.” De fato não é, pois a sexualidade humana vai além do ato sexual em si. Estamos falando de sentimentos e experiências, afetivas e carnais. Limitar as pessoas em cercados sexuais é tratar o ser humano como algo que ele definitivamente não é, um ser vivo apático. Essa limitação talvez seja a maior dívida que a humanidade fez consigo mesma.

“Eu sou mulher, mas o meu corpo não é de mulher, mas também não é de homem,” divaga antes de concluir: “o homem gosta de mim justamente por isso, porque ele não está com um homem, nem com uma mulher. Ele desfruta de uma mulher e de homem ao mesmo tempo.” O relação de um cliente – ou um parceiro como em qualquer outra situação, por que não? – com uma travesti, é um momento delicado, onde as barreiras impostas pelo lado de fora são transpostas. As verdades absolutas, mesmo que sem consciência, são todas questionadas. “Você tem que entender que nós, do terceiro sexo, estamos na plenitude,” fecha Thaïs. Todo esse melindre talvez explique a violência que pode acometer travestis após um programa, pois é bastante comum clientes que não pagam. E a sociedade, como uma mãe arrogante e equivocada, toma partido do lado errado da história. Mas isso é assunto pra outra matéria, quem sabe?

Vivemos num sistema social onde as pessoas são constantemente divididas em diversos grupos, e cada um com um status de superioridade ao outro. Uma mistura estranha de “quem manda” e “quem obedece”, que varia conforme o gênero, como disse ao longo deste texto, mas também conforme a etnia, a renda, a escolaridade e qualquer coisa que dê pra segregar os membros da mesma espécie. Você pode ser taxado de “superior” por alguma particularidade sua, e por outro, de “inferior”. Mas há quem carregue verdadeiras chagas sociais, como infelizmente é o caso de Thaïs. Por mais que ela tenha mantido a calma durante toda a entrevista, sem demostrar resquício algum de rancor, não há como tapar o sol com a peneira.

Poderíamos chamar tranquilamente os travestis de “o gueto do gueto”, por todos os abusos e privações diárias que elas sofrem. Algumas, por uma série de fatores e um pouco de sorte, conseguem desabrochar e transformar uma vida que já estava fadada ao fracasso em algo que vale muito a pena. São as exceções que confirmam a regra, são histórias atípicas. E de tão raras, merecem ser partilhadas.

Fonte: http://vestiario.org/2013/11/04/e-quando-a-travesti-e-gente/

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