16 de outubro de 2024
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O ativista Diego Callisto, um dos entrevistados pelo programa, coloca em tópicos tudo que as reportagens não exibiram sobre o clube do carimbo

Por Diego Callisto (@diegocallisto)
Publicado pelo site Lado Bi, em 27 de março de 2015

Recentemente, mais precisamente nos últimos dois domingos, foram ao ar no Fantástico duas reportagens sobre o “clube do carimbo”, que de acordo com a chamada iria mostrar as investigações que a equipe do programa realizou ao longo de dois meses, tendo acesso inclusive ao clube e entrevistando aqueles que se dizem “carimbadores”.

Entre a chamada e o que foi exibido existiu um abismo enorme de desserviço, despreparo e sensacionalismo. A matéria acerca dos supostos carimbadores, que são pessoas que disseminam o vírus HIV propositalmente utilizando-se de métodos de fraude e abuso de confiança (supostamente pessoas que furariam camisinhas ou as retirariam durante o ato sexual), pouco revelou sobre alguém que realmente praticam esses atos indefensáveis. No entanto, a absurda, criminosa, estigmatizadora e discriminatória reportagem que o Fantástico levou ao ar gerou um grande pânico moral sobre a transmissão do HIV/Aids.

Antes de discutir os pontos abaixo, quero registrar que eu, como ativista, humanista e por ser  um jovem vivendo com HIV, sou contra a transmissão do vírus de forma intencional, pois luto pela vida e não concordo que pessoas adotem práticas que caracterizam uma agressão à saúde.

Justamente por isso fiz parte da reportagem que foi ao ar: por ser uma pessoa que já denunciou esse tipo de prática, por viver com o vírus HIV e por querer mostrar que existem os dois lados da moeda. De um lado, os soropositivos que buscam viver com qualidade de vida, fazendo uso regular de medicamentos antirretrovirais e enfatizando a prática do sexo seguro, protegendo-se e protegendo o outro; no outro extremo, pessoas soropositivas, que não fazem uso de medicamentos antirretrovirais, relacionam-se e se agrupam, sexualmente falando, com a intenção de transmitir o HIV para outras pessoas, fraudando os métodos de prevenção.

Foto da câmera da Globo mostra a duração da entrevista com Diego Callisto e dá a ideia do tanto de informação suprimida em nome do sensacionalismo
Foto da câmera da Globo mostra a duração da entrevista
com Diego Callisto e dá a ideia do tanto de informação
suprimida em nome do sensacionalismo

Gostaria ainda de ressaltar que minha entrevista para a reportagem final foi de 57 minutos e 27 segundos e, como todos sabem, existe a edição que escolhe estrategicamente o que e como vai ao ar. Então, por mais que eu tenha tido a melhor das intenções e tenha falado sobre mecanismos importantes e relevantes para entendermos como enfrentamos a epidemia de Aids hoje, e também sobre quais as tecnologias e profilaxias disponíveis, infelizmente a grande mídia censurou, editou e reproduziu aquilo que ela achava viável e que dialogava com o eixo principal da reportagem, que no caso do Fantástico não era informar e alertar, mas sim chocar as pessoas por meio de uma matéria totalmente incoerente e desorientada.

Não acredito que seja esse o caminho, ainda mais nos dias atuais em que as pessoas pensam erroneamente que a Aids é a doença mais avassaladora do mundo. Não é. A doença mais avassaladora é o preconceito. Ele exclui, discrimina, mata e ninguém está livre dele.

Por isso, enumerei aqui 30 fatos que você precisa saber sobre Aids e HIV que e a mídia de massa (especialmente o Fantástico) não informou:

1 – Vivo com HIV há 8 anos. Minha sorologia é pública, praticamente desde o momento em que tive acesso ao meu diagnóstico, e de lá pra cá me tornei um ativista e humanista. Diante disso, umas das minhas maiores preocupações em relação ao que foi noticiado sobre o “clube do carimbo” é ressaltar para a sociedade que tal prática não é algo inerente a TODOS os soropositivos, mas a um pequeno recorte de soropositivos que se reúnem para transmitir o HIV intencionalmente. Portanto, sempre existiu da minha parte, em tempo integral durante as gravações para o Fantástico, uma preocupação enorme com esse tom generalista que as matérias em mídia impressa e online já haviam adotado no sentido de incluir o “clube do carimbo” como uma prática referente a todos os soropositivos, principalmente gays. Eu particularmente considero isso muito preocupante e estarrecedor, porque se trata de uma manipulação da informação para gerar mais estigma e preconceito a pessoas que já sofrem tendo seus direitos violados na sociedade.

2 – Acolho por dia, em média, cerca de dez pessoas que se infectam com o HIV e que me procuram com as mais variadas motivações: pedir ajuda, denunciar alguém, obter informações, parabenizar, flertar etc. Sempre me deparo com realidades diferenciadas como, por exemplo, em 2013, quando descobri e pela primeira vez denunciei a existência de um “clube de carimbo”. De lá pra cá, muita coisa mudou, a forma e a dinâmica que esses encontros acontecem se tornou menos acessível para os curiosos, e as informações atualizadas que eu tenho são de dois tipos de participantes: os que foram aos encontros e foram “carimbadas” intencionalmente, e aqueles que o usam de bode expiatório, sem nunca terem participado de qualquer ritual intencional de contaminação, mas frequentam os grupos e quando transam colocam como condição o uso da camisinha e eles mesmos levam a própria camisinha e ficam sempre alertas durante o ato sexual.

3 – Conheci um rapaz de 19 anos, com o qual eu converso até hoje. Ele já frequentava as festas de bareback (sexo sem preservativo) havia quase um ano e na época ainda era negativo. Eu perguntei pra ele se ele não tinha o medo de contrair o HIV nesses encontros e ele disse que não, que ele via pessoas positivas para o HIV vivendo numa boa e que ter HIV hoje era diferente e não adoecia mais. Foram estas exatas palavras. Tentei dissuadi-lo de tudo que é jeito a não ir mais aos encontros, que passaram a acontecer não só em São Paulo, mas em várias outras capitais e cidades turísticas. Ele de alguma forma se sentia seguro comigo na mesma medida em que se sentia seguro com o outro rapaz que organizava um desses clubes, talvez porque somos extremos opostos e existia nele a dúvida sobre continuar indo ou desistir. Eu sempre defendia o uso da camisinha e pontuava negativamente a prática desses encontros, e alertava que as pessoas com HIV que não são tratadas podem sim vim a se tornarem doente de Aids (doente de Aids é diferente de soropositivo; o primeiro desenvolveu a doença porque não se tratou, o segundo se trata regularmente e não desenvolveu a doença). Apesar das posições divergentes, esse jovem sempre me confidenciava muito do que acontecia e da dinâmica dos encontros. Foi aí que comecei a compreender e enxergar melhor como tudo funcionava, ou seja, há pessoas que buscam esses grupos voluntariamente, mesmo sabendo dos riscos. Algumas, inclusive, fetichizam o vírus, conforme já se debateu aqui no Lado Bi. O tempo passou, e esse jovem hoje tem 21 anos, é soropositivo, casado com um outro rapaz que também frequentou esses grupos e, atualmente, moram fora do país. Entendi a partir daí que existem processos muito maiores que nosso poder de intervenção e capacidade de argumentação e que, apesar de todo esforço, algumas questões, como essa por exemplo, estão muito além de bons argumentos ou intervenções propositivas. Perpassam uma conjuntura, um pensamento e um processo muito maior que eu. Existe o “clube do carimbo” ? Sim! Todos com esse nome? Dificilmente. Mas acredito que ainda existem grupos organizados de pessoas que se reúnem mensalmente para realizar tal prática voluntariamente. Certa vez um jovem que acolhi disse: sempre chegam novos integrantes na mesma medida que tem pessoas deixando de frequentar os grupos. E muitas vão somente uma vez de curiosidade, enquanto que outras não faltam a nenhum encontro mensal. A partir daí é possível inferir duas coisas: não existe uma via de regra e nem há um padrão de comportamento nesses grupos.

4 – Grande parte dos soropositivos, arrisco dizer que sua quase totalidade, não corrobora com a prática de transmitir HIV propositalmente e deliberadamente como o  “clube do carimbo” incentiva e a imprensa tem colocado. Todavia, é exatamente nessa minoria, nessa pequena parcela de pessoas, que todas as atenções e olhares sensacionalistas dos veículos de comunicação voltaram-se para carregar com mais estigma e preconceito a forma que a sociedade enxerga os gays soropositivos, que historicamente é um grupo de pessoas que sofre para combater atos discriminatórios e quebrar paradigmas impostos desde as primeiras ondas de epidemia de Aids nas décadas de 1980 e 1990. A mídia não está preocupada em informar as pessoas, mas sim em manipular a informação para criar um mal-estar geral e um conceito totalmente equivocado na sociedade em relação aos soropositivos, sobretudo gays.

5 – É óbvio que, para alguns editores, pouco importa a veracidade ou a pertinência da reportagem frente aos fatos, mas sim a repercussão e o alcance que ela terá e o posterior impacto dela na sociedade. Todo esse assunto envolvendo a transmissão intencional do HIV perpassa isso, vai exatamente de encontro às linhas editoriais que não se preocupam em informar, mas sim em chocar. O repórter que me entrevistou, por exemplo, parecia mais preocupado em provar a existência desse clube e se mostrou totalmente desconhecedor dos modernos tipos de  profilaxias e tratamento existentes, tanto para pessoas soropositivas, quanto para pessoas soronegativas. A visão dele sobre Aids, me pareceu, estar estacionada no terror dos anos 1980.

6 – É importante destacar que o tratamento antirretroviral (TARV) é oferecido e recomendado para todo soropositivo manter-se saudável e com qualidade de vida. O tratamento disponível hoje é muito diferente daquele oferecido no começo da epidemia, já que atualmente esse tratamento é menos tóxico, menos agressivo e mais prático de ser realizado desde a posologia até sua ingestão. Cabe ressaltar que quando realizado da maneira correta e com adesão, tal tratamento é capaz de reduzir a quantidade de vírus no sangue, a chamada carga viral a níveis indetectáveis. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma pessoa com carga viral suprimida ou indetectável apresenta menos de 1.000 cópias por mililitro cúbico de sangue, enquanto que o Ministério da Saúde tem como referência menos de 50 cópias por mililitro cúbico de sangue.

7 – De acordo com o último boletim epidemiológico divulgado pelo Departamento de AIDS e Hepatites Virais, estima-se que existam cerca de 734 mil pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil, desse total 355 mil (48%) estão em TARV, sendo que 293 mil (40%) estão com a carga viral indetectável nos parâmetros da OMS e 255 mil (35%) nos parâmetros do Ministério da Saúde.

8 – Na reportagem do Fantástico, um dos alegados “carimbadores” aparece dizendo que faz uso de antirretrovirais há dez anos, ou seja, dificilmente essa rapaz está transmitindo o vírus HIV para outras pessoas e exercendo a “carimbada”. Até porque, epidemiologicamente falando, não existe nenhum dado de infecção pelo o HIV em uma pessoa com a carga viral suprimida. Nessa condição, o risco de transmissão do HIV é reduzido em pelo menos 96%, mesmo em caso de falha no uso da camisinha.

9 – Em 2012, a Comissão Federal Suíça de Aids publicou um artigo no qual afirma que as pessoas com HIV em tratamento regular por pelo menos seis meses não transmitem o HIV. Além disso, vale destacar dois estudos importantes nesse sentido: um denominado HPTN-o52 realizado em casais sorodiscordantes (ou seja, no qual um dos parceiros tem HIV e o outro não) mostrou essa redução de até 96% na taxa de transmissão do HIV dentro dos casais cujo parceiro com HIV estava tomando antirretrovirais e outro estudo, ainda em curso, denominado Partner, que já acompanhou durante dois anos casais sorodiscordantes heterossexuais e de homens que fazem sexo com homens (HSH) em que o parceiro com HIV usa antirretroviral. Até o presente momento, diante dos dados preliminares, não observou-se qualquer infecção pelo HIV durante este período. Portanto o tratamento também é prevenção, e serve como medida de proteção para que o parceiro soropositivo reduza a transmissibilidade do HIV nas relações. Justamente por isso é de suma importância que informações como essas sejam incorporadas a reportagens relacionadas ao HIV sejam elas ligadas ao “clube do carimbo” ou não.

10 – O próprio Ministério da Saúde reforça o tratamento como prevenção (detreatment as prevention, ou TasP, no original em inglês) na prevenção do HIV: o início precoce do tratamento da pessoa recém-infectada diminui a possibilidade de que ela transmita o vírus. Na maioria dos casos, com a correta adesão ao tratamento com medicamentos antirretrovirais disponibilizados pelo SUS, a carga viral da pessoa com HIV pode se aproximar de zero, alcançando níveis indetectáveis.

11 – Existem inúmeras pesquisas sobre novas profilaxias já divulgadas e em andamento, relacionadas às novas tecnologias de prevenção, inclusive algumas já são incorporadas no Brasil. Uma delas é a PEP (Profilaxia Pós-Exposição), que consiste no uso de medicamentos antirretrovirais até 72 horas após o “acidente” por 28 dias ininterruptos. Isto evita a multiplicação do vírus e posterior soroconversão e está disponível no SUS desde 2012.

12 – Há também a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), que consiste no uso de medicamentos antirretrovirais antes do risco. No Brasil, estão sendo realizados dois estudos coordenados (IPEC/RJ e CRT/SP) para avaliar sua aceitação e implementação no país. Mesmo que ainda não disponível à população em geral do Brasil, este é um mecanismo importante no cardápio de prevenção que temos em relação ao HIV. Nos Estados Unidos, Canadá, Europa e Austrália, o uso desse tipo de medicamento como auxiliar à camisinha ou para pessoas que tenham problemas em usar preservativo já é amplamente praticado. A reportagem do Fantástico, apesar de mencionar a PEP na fala da diretora do Unaids, ignorou não só essas tecnologias disponíveis e indispensáveis para uma política séria de prevenção, como deixou de informar outras estratégias importantes como a prevenção combinada e a redução de risco.

13 – É preciso compreender a diferença entre bareback e o “clube do carimbo” uma vez que nem todo praticamente de bareback é um “carimbador”. O termo bareback surgiu no início dos anos 1990, e consiste na prática do sexo anal sem o uso de camisinha entre pessoas. Não tem relação alguma com a transmissão intencional do HIV. O pontapé inicial para toda essa confusão e pânico moral da sociedade que acontece hoje em relação ao “clube do carimbo” vem justamente pelo fato de denúncias feitas contra um blog chamado “Novinho Bareback”. Neste blog, o autor falava sobre o “clube do carimbo” e fornecia um passo-a-passo de como transmitir o vírus HIV propositalmente para outras pessoas. Com essa atenção o clube ganhou notoriedade e imediatamente a mídia se incumbiu de polemizar ainda mais o assunto. Automaticamente as pessoas começaram a associar o bareback com o “clube do carimbo”. Por mais que os “carimbadores” sejam adeptos ao bareback, nem todo barebacker transmite HIV propositalmente. Durante a minha entrevista para o Fantástico, mencionei por diversas vezes que adeptos do bareback adotam estratégias de maneira a realizar a gestão do risco, como a segurança negociada (prática de bareback entre um casal, mas caso um terceiro elemento ou outros sejam incorporados à relação, ela deverá ser com camisinha), serosorting (a escolha da relação sexual, bareback ou não, com base no status sorológico do parceiro) e vacinas preventivas que vêm sendo desenvolvidas em países como EUA e França.

14 – O repórter, no início da reportagem, diz: “Mas aí você não fala que é HIV?” Fiquei questionando várias vezes essa fala: na cabeça do repórter, então, a pessoa perde a humanidade e passa ser um vírus. Ou seja, a partir do momento que uma pessoa tem o HIV ela automaticamente passa a se chamar HIV então? Achei lamentável essa descaracterização em que a pessoa dá lugar ao vírus apenas pelo fato de ser reagente ao HIV, levando a crer que o status sorológico é mais importante que a condição humana. Isso só corrobora com o que disse no começo deste texto: o repórter tem pouquíssimo conhecimento sobre o tema HIV/AIDS.

15 – É bom ressaltar, no entanto, que nos EUA, Canadá e Europa quase como um todo, é comum que as pessoas revelem seu status sorológico antes de transar com alguém. Em muitos casos é porque elas querem saber se podem transar sem preservativo, mas em geral é porque a lei obriga que se faça essa revelação antes do sexo para que a pessoa não seja responsabilizada juridicamente por ter transmitido o HIV. Em alguns estados norte-americanos, no entanto, a pessoa pode ser responsabilizada mesmo sem ter transmitido o vírus, pelo mero ato sexual, caso não tenha informado seu status sorológico ao parceiro.

16 – Os adeptos do “clube do carimbo” agem de forma intencional com o objetivo de transmitir o HIV sem o consentimento da outra pessoa, no caso a vítima que será “carimbada”. Porém, na própria reportagem do Fantástico, percebe-se, na primeira tomada, uma conversa por aplicativo — ou simulação — onde uma pessoa fala para outra que é soropositiva e pergunta se essa outra pessoa, de sorologia desconhecida, quer ser carimbada. Isso leva a crer que essa conversa não tem absolutamente nada a ver com o “clube do carimbo”, já que a pessoa está consentindo em correr o risco de ser infectada pelo vírus HIV. Isso é um caso de negligência à própria saúde, já que a pessoa quer ser infectada pelo vírus HIV – mesmo sem saber por quê, como admite o entrevistado. A pessoa que quer se tornar uma “carimbadora”, isto é, uma transmissora intencional do vírus HIV, precisa além de negligenciar a saúde e banalizar a prática do sexo seguro, negligenciar o tratamento e a própria qualidade de vida. Só assim ele seria um transmissor do vírus HIV e poderia relacionar isso à intencionalidade de passá-lo adiante via “clube do carimbo”, que não é o que a reportagem mostra.

17 – Acredito que essa negligência da própria saúde está relacionada à minha fala na reportagem: a banalização da AIDS. Muitas pessoas pensam que viver com HIV é perfeitamente normal e preferem contrair o vírus a ter que seguir aquilo que eles têm como a “ditadura da camisinha”. Aliado a isso, vem o fato de que as pessoas que fazem parte do clube são imediatistas e vivem o hoje sem pensar no amanhã. Um dos fatores que podem levar as pessoas a agirem assim pode ser a baixa autoestima, especialmente pela maneira como a sociedade trata os gays, criando inclusive uma sensação de revolta diante desse cenário. Alguns acreditam ainda que nunca serão infectados e sentem prazer em correr o risco de contrair o HIV, os chamados bug chasers. Outros fazem puramente por revolta por terem se descoberto em algum momento da vida HIV positivo e resolvem que, além de não se tratarem, vão também transmitir deliberadamente para outras pessoas. Lembro-me que, em 2013, eu acolhi um rapaz, ex-garoto de programa, que estava em depressão. Ele me confidenciou que perdeu a conta de quantos homens e mulheres infectou durante os três anos em que trabalhou como profissional do sexo. Ele chegava a vender cocaína e outras drogas para seus clientes na intenção de deixá-los suscetíveis, e fazia o programa por um preço mais acessível justamente para atender o maior número de pessoas possível. Ele conseguiu convencer muitas delas a fazer sexo sem a camisinha, mas quando alguma delas queria usar preservativo, ele fazia o possível para rasgar o preservativo ou retirá-lo. Lembro-me de que o questionei do porquê disso e ele respondeu: “Botaram pra fuder comigo, eu retribuí na mesma moeda e botei pra fuder geral”. O caso dele era extremamente delicado na época: além de HIV ele havia contraído outras DSTs e estava bastante debilitado. Hoje ele faz terapia, sofre ainda de depressão, mas está bem melhor que antes e tenta a todo momento apagar da vida dele esse período. Segundo ele, há vítimas carimbadas por ele que até morreram, isso o deixa muito mal. Ao contrário do rapaz que se diz “carimbador” na entrevista do Fantástico, ele tem, sim, não só drama de consciência, mas depressão por todo esse período da vida dele.

18 – Transformar tal conduta em crime hediondo, conforme propõe o PL 198/2015, não aponta na direção da solução do problema. Acredito que a criminalização e punição carcerária não são solução para esses indivíduos. Pelo contrário, só reforçam o discurso do Estado penal, dos reacionários e dos setores punitivistas, que acham que a solução para comportamentos fora da normatividade burguesa judaico-cristã e ocidental é a repressão e o encarceramento. A criminalização não é a solução, como foi mostrado noFantástico: primeiro porque existem casos de grande especificidade, que inclusive não estão ligados ao clube, como o caso dos dois entrevistados pelo Fantástico que têm relações casuais sem camisinha no próprio apartamento ou em saunas. Em hora nenhuma eles falam que frequentam um clube de sexo grupal que tem por objetivo a transmissão intencional do HIV (curioso como uma reportagem que deveria falar de um clube não conseguiu entrevistar pessoas ligadas a ele). Persistir com a criminalização só vai tornar essas pessoas ainda mais inacessíveis e dificultar qualquer tipo de intervenção comportamental junto a elas. Todo esse incentivo punitivo denota o extremo moralismo com que tratamos a questão da contaminação e da autocontaminação pelo vírus HIV. Sem dúvida, não é com a ameaça de cadeia e punição que avançaremos na consciência das pessoas e acabaremos com esse tipo de prática lamentável. Pelo contrário: aprovar leis como a PL 198/2015 só tende a aumentar o estigma, preconceito e discriminação da sociedade em relação ao HIV e pessoas soropositivas, afastando-os dos serviços de testagem e tratamento, representando um retrocesso nos esforços nacionais de controle da epidemia.

19 – Na entrevista do Fantástico, um dos “carimbadores” revela que os parceiros pedem para ele “tirar o preservativo, achando que ele não tem a doença” e que “possui o HIV controlado”. Uma pessoa adulta sabe o risco que corre ao fazer sexo sem preservativo. Nenhum soropositivo, seja ele carimbador ou não, pode ser obrigado a “cuidar da saúde” do parceiro quando se trata da relação entre pessoas adultas e com plena convicção e controle de suas ações. Neste caso, a responsabilidade é compartilhada, o sexo é consensual e cabe a cada uma das partes praticar e exercer o autocuidado. É desumano querer obrigar um soropositivo a andar com uma plaquinha de soropositivo, obrigá-lo a informar que é soropositivo e jogar no soropositivo toda a responsabilidade do ato sexual. Queremos criar uma cultura em que os parceiros soronegativos não vejam na soropositividade do parceiro um empecilho à prática sexual, ao relacionamento, e não olhem o parceiro soropositivo com repulsa. Isso, infelizmente, está bem distante de acontecer na prática. Além dos sofrimentos físicos que um soropositivo vive, e dos efeitos colaterais e adversos de algumas medicações antirretrovirais, que precisam ser tomadas durante a vida, são imensos os sofrimentos psicológicos advindos do terrorismo de ter uma “doença incurável”, da estigmatização, dos julgamentos sociais precipitados, do preconceito e da discriminação.

20 – Usar um psiquiatra para patologizar e ao mesmo tempo criminalizar os supostos carimbadores é um recurso vergonhoso. É preciso chamar uma discussão ética acerca disso e a partir daí estruturar uma intervenção. Além do equívoco científico, teórico e metodológico que é patologizar um comportamento como esse, baseado na normatividade das relações, repito: é equivocado esperar que o soropositivo seja responsável pela prevenção e prática do sexo seguro de ambos envolvidos. Igualar um distúrbio de saúde mental a um comportamento criminoso é um absurdo, é condenável e contraditório. Uma coisa pode levar a outra e vice-versa, mas igualar as duas práticas, como acontece na fala do psiquiatra da USP, “especialista em sexualidade”, é no mínimo leviano. A Rede Globo e o Fantástico, por meio de seus “especialistas”, comumente usam do recurso de autoridades para provar os seus discursos e construir mentiras e situações duvidosas.

21 – O que a reportagem do Fantástico faz não é provar a prática de transmissão deliberada por uso de fraude e abuso de confiança, mas sim condenar o comportamento barebacker, que é o perfil dos entrevistados que eles conseguiram. Se eu, que sou um soropositivo, afirmo que eu não faço sexo com camisinha com ninguém, me torno criminoso por isso? E se fosse o inverso, se fosse um negativo fazendo essa afirmação, ele seria criminoso também? O comportamento criminoso é fazer sexo sem camisinha? O falso moralismo da imprensa não admite que há pessoas adultas e capazes de fazerem suas próprias escolhas, que optam deliberadamente por fazer sexo sem camisinha sabendo dos riscos que correm, sendo soropositivas ou soronegativas.

22 – Há riscos de se praticar bareback mesmo entre soropositivos. Como existem mais de dez subtipos diferentes de vírus, os soropositivos também podem se reinfectar, sofrer um recruzamento de cepas de vírus HIV, que podem sofrer cruzamento entre si e tornar o HIV mais agressivo e portanto resistente à medicação. O fator risco existe nos dois lados da moeda e cabe a cada um estar consciente disso no ato da prática sexual. Meu corpo, meus direitos, minhas regras, minha audeterminação, minha responsabilidade, minha saúde e minha segurança.

23 – A reportagem traz ainda o relato do “carimbador” que disse ter pego HIV porque quis: mais um depoimento que não tem absolutamente nada a ver com as vítimas do “clube do carimbo”. Os dois entrevistados que se dizem carimbadores nem sequer compreendem a dinâmica do tal clube! Uma coisa é ele se intitular “carimbador”, outra coisa é ele ser um frequentador de locais de sexo grupal, como saunas e apartamentos fechados com cerca de 50 homens, todos praticando relação sem o uso de preservativo e sem qualquer conhecimento a respeito do status sorológico dos envolvidos. É irresponsável que a reportagem faça o alarde que fez, pegue duas pessoas com contextos totalmente distintos e as insira para dizer que são adeptos do “clube do carimbo”. Cada adulto possuidor de suas faculdades mentais deve ter o direito a fazer o que quiser com o seu corpo, inclusive fazer sexo sem camisinha com o objetivo de contrair o HIV. Mas o sensacionalismo não quer permitir isso, jamais! Ainda bem que, a despeito do nosso atual Congresso conservador repleto de fundamentalistas e reacionários, os legisladores de 1988 garantiram que o Estado não pode intervir sobre o corpo e a autodeterminação das pessoas. Não é a toa que a prática do aborto e do consumo de drogas são temas em debate nos órgãos judiciários superiores e há uma tendência a sacramentar esse entendimento, garantindo o texto constitucional e derrubando toda a legislação e normatividade infraconstitucional que verse em contrário.

24 – O ponto alto da falta de discernimento do Fantástico acontece quando são apresentadas as vítimas. Ao contrário do era de se esperar, elas dizem ter feito sexo sem camisinha de maneira consentida. O repórter tem ainda a infelicidade de dizer: “No caso dele, o parceiro não contou que tinha a doença e a relação sexual foi sem camisinha.” Em outro momento, a vítima diz: “Fui à sauna, pensei que iria conhecer um cara legal…” Essas falas só confirmam que elas não são vítimas, mas sim optaram por ter relações sem camisinha. No sexo consentido a responsabilidade é compartilhada, e se não é provada a prática do abuso de confiança ou fraude no sentido de furar/rasgar ou retirar a camisinha durante o ato sexual, não há a prática utilizada pelos adeptos do “clube do carimbo”. Tanto a vítima que foi infectada pelo namorado como a vítima que se infectou na sauna possuem responsabilidade em relação a prática sexual, que foi feita mediante o seu consentimento, com a sua autorização; foi responsabilidade de ambas abolir o uso da camisinha. Um dos jovens que eu acolhi fez uso de drogas e ficou fora de si; no dia seguinte pela manhã soube que havia transado com pelo menos cinco homens diferentes e todos sem camisinha. Após alguns dias ele realizou o teste para HIV e deu reagente. Esse seria um caso de “clube do carimbo”: ele foi numa festinha privada, onde estava rolando um sexo grupal com cerca de uns 30 homens, e as relações antes do uso das drogas e da bebida foram com camisinha. Depois ele fez sem mas só se ligou que isso havia acontecido porque no dia seguinte havia uma grande quantidade de sêmen saindo dele. Do contrário, talvez, ele nem perceberia que isso aconteceu e jamais teria a iniciativa de se testar. São contextos TOTALMENTE diferentes e divergentes entre uma vítima do “clube do carimbo” e essas vítimas que o Fantástico encontrou nas suas investigações. Não ficou comprovada em momento algum a prática criminosa e a intencionalidade da transmissão durante a reportagem exibida pelo Fantástico.

25 – Evidentemente, meu posicionamento é contrário à transmissão intencional e concorda com a lei em vigor que pune tal prática como lesão corporal grave. Contudo, acredito que a prática sexual de uma pessoa com HIV com uma pessoa sem HIV, feita de forma consensual, não determina a intencionalidade e o caráter proposital da transmissão do HIV. Nós soropositivos temos nossas relações sexuais como qualquer outra pessoa que não possua o vírus HIV e não é pelo fato de ter o vírus que os soropositivos devem se privar de praticar o ato sexual e exercer a sua sexualidade.

26 – O sexo desprotegido não é uma prática limitada apenas aos gays, diz respeito à população em geral. Apesar de a reportagem do Fantástico ter colocado uma fala do psiquiatra sinalizando que heterossexuais também praticam sexo sem camisinha, e podem inclusive integrar o “clube do carimbo”, em momento algum um heterossexual foi entrevistado, nem para se dizer “carimbador” nem para se dizer “carimbado”. Novamente centrou-se o foco como algo exclusivamente dos gays e HSHs (homens que fazem sexo com homens), assim como acontecia na década de 1980 e 1990.Recentemente, no programa Lado Bi dos Héteros, nossos entrevistados disseram que homens heterossexuais não são tão adeptos da camisinha porque muitos ainda pensam que Aids é “doença de gay” e que consideram um troféu transar com uma mulher sem preservativo. De acordo com a Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas na População Brasileira (PCAP) divulgada em janeiro, a maioria dos brasileiros (94%) sabe que o preservativo é a melhor forma de prevenção contra as DST e a AIDS, mas 45% da população sexualmente ativa do país não usou preservativo em suas relações sexuais casuais nos últimos 12 meses. E mais: ainda segundo a PCAP, entre as mulheres, 86,8% dos casos registrados em 2012 resultou de relações heterossexuais com pessoas infectadas pelo HIV.

27 – Outro aspecto que a reportagem do Fantástico não mencionou é que,virtualmente, é mais seguro transar sem camisinha com um soropositivo em tratamento, com carga viral indetectável, do que com uma pessoa que desconhece seu status sorológico, os chamados sorointerrogativos. Um paciente soropositivo em tratamento realiza exames periódicos de carga viral e de outras DSTs, em geral a cada três meses. A periodicidade desses exames é condicionada à entrega dos medicamentos antirretrovirais.

28 – Segundo a nota lançada pelo Unaids, que também foi entrevistado peloFantástico, as matérias sobre o “clube do carimbo”, além de serem sensacionalistas e alarmistas, se baseiam em informações contidas em fontes de credibilidade questionável na internet, sem destacar nenhuma informação precisa e de caráter verídico. O Unaids ressaltou ainda que as matérias têm tratado do assunto de forma extremamente equivocada e generalista. Elas não informam corretamente que as práticas sexuais consentidas entre adultos sem o uso de preservativo(bareback) e os possíveis casos de transmissão intencional do HIV são coisas distintas, que devem ser tratadas de forma separada. Novamente: nem todo barebacker é adepto do “clube do carimbo”, nem todo gay, nem todo soropositivo. Apesar do Fantástico ter entrevistado alguém do Unaids, ficou claro que eles não leram a nota e, se leram, a interpretaram de forma totalmente errada, porque a matéria que foi produzida em nada dialoga com os apontamentos feitos por eles.

29 – De janeiro a dezembro de 2014, 74.794 novas pessoas com HIV e AIDS entraram em tratamento com antirretrovirais pelo SUS, o que corresponde a um aumento de 31% na comparação com o mesmo período de 2013. Grande parte desse aumento diz respeito ao novo protocolo clínico: oferecer tratamento a todas as pessoas diagnosticadas pelo HIV. Ainda cabe destacar que 88% das pessoas que iniciam o tratamento antirretroviral ficam com a carga viral indetectável após 6 meses de seu início segundo o padrão da OMS (menos de 1000 cópias do HIV/ml) e 78% segundo o padrão do Ministério da Saúde(50 cópias/ml). Tudo isso poderia ter sido falado na matéria do Fantástico, para que a matéria tivesse um tom mais informativo e menos sensacionalista, informando a população que o tratamento antirretroviral hoje se configura como um método eficaz de prevenção a transmissão do HIV.

30 – Talvez muitos desconheçam a história de Ryan White, jovem que contraiu HIV via transfusão sanguínea e descobriu seu diagnóstico ao adoecer em 1984. Os médicos lhe deram seis meses de vida. Ryan conquistou na Justiça o direito de retornar a escola, aos 15 anos de idade, visto que a escola na época não queria aceitar que o adolescente voltasse a estudar, sofrendo inclusive pressões dos pais de alguns alunos. Quando finalmente Ryan foi readmitido na escola, um grupo de pais retirou seus filhos de lá e iniciou uma escola alternativa. Ameaças de violência e processos continuavam. As pessoas na rua gritavam: “Nós sabemos que você é bicha.” Até os editores do Kokomo Tribune, jornal local que militava pela causa de Ryan, foram chamados de homossexuais e ameaçados de morte. O caso de Ryan White ganhou notoriedade em todos os Estados Unidos, disparando uma onda de discussão sobre a doença. Ele aparecia com frequência nos jornais e na televisão, discutindo seu drama. Participou de vários eventos educativos e beneficientes para vítimas da Aids. Tudo isso foi uma importante mudança de paradigma, pois até então a Aids era uma doença atribuída somente aos gays. Sua história fez todos perceberem que isso não era verdade. No início de 1990, a saúde de Ryan se deteriorou rapidamente, e em 29 de março ele foi internado. Morreu em 8 de abril de 1990 aos 18 anos de idade. Seu funeral atraiu 1.500 pessoas, entre elas o presidente Ronald Reagan, que era criticado por nunca mencionar a palavra Aids em seus discursos e por não investir recursos em seu combate, como mostrado recentemente no filmeThe Normal Heart. Naquele dia, Reagan prestou um tributo a Ryan, homenageando-o. Que esta história sirva como exemplo do que a ignorância e o preconceito em relação aos portadores do vírus HIV podem fazer com uma pessoa. Quero destacar uma importante frase de Ryan sobre a AIDS, que além de levar comigo pra vida, dialoga muito com nossa realidade:  “Por conta da falta de informação e educação sobre a Aids, a discriminação, o medo, o pânico e as mentiras tomaram conta do mundo.”

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1 thought on “Conheça 30 fatos sobre Hiv e AIDS que o Fantástico não mostrou

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