Helena Vieira
Publicado pela coluna TRANSbordando, em Os Entendidos, no portal Fórum, em 3 de janeiro de 2016
“Não imagine que precise ser triste, para ser militante,
mesmo se a coisa que combatemos é abominável. É o elo do desejo à realidade
(e não sua fuga nas formas de representação) que possui uma força revolucionária”
Michel Foucault, “Introdução a uma vida não fascista”
“Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos.”
Félix Guatari, “Revolução Molecular – Somos todos grupelhos”
Quando nossas convicções tornam-se absolutamente imutáveis, quando estas convicções transformam-se na única maneira como conseguimos ver o mundo e no único discurso que temos sobre ele, quando não toleramos que outras possibilidades contrastem com as nossas e exigimos que todos nos escutem, sem no entanto escutar ninguém, então estamos tentadas à verdade única, ao discurso único, à aniquilação da diversidade, e portanto, ao decreto da morte de nossa ação política. Ser convicto de algo não impede que reavaliemos tais convicções.
Falarei ao longo deste texto em “ativismo” somente assim, sem adjetivar, buscando apenas a fluidez do texto, pois me refiro ao ativismo transfeminista, por questões óbvias: identifico-me enquanto travesti e enquanto ativista trans, portanto é com este ativismo que tenho relações mais sólidas e firmes. Há alguns (poucos) anos, o ativismo tem ganhado imensa visibilidade na internet, o discurso tem se propagado, assim como figuras trans têm ganhado imensa visibilidade através de suas postagens, textos e relatos.
A importância salta aos olhos: pessoas que jamais ouviram falar em direitos trans, pessoas que não possuíam nenhuma sensibilidade frente à causa, passaram a conhecer nossas dores e desafios diários, o contraponto à mídia cissexista é criado e tudo isto é importante. Nossas vidas, as vidas das pessoas trans, que são vidas precárias, ganham, ainda que mínima, alguma visibilidade.
O sentido do ativismo e o discurso autoritário
Mas qual o sentido do ativismo? Por que é necessário que este ativismo exista e por que é necessário que ele se difunda? Ainda nesse sentido, quais são as estratégias? A busca da visibilidade e da correção deve ser sempre a única estratégia? O que o momento político demanda de nós?
Creio que estas respostas ainda não estejam dadas, que seja uma tarefa constante pensar e repensar o sentido do ativismo, mas não perder de vista que precisamos criar condições dignas de existência para os sujeitos trans. Que a política, o ativismo e tudo o mais tem apenas uma dimensão de existir, como propunha a feminista colombiana Domitila Barrios de Chungara (no livro “Se me deixam falar”): é hora de reconduzir a política para o lugar dela, qual seja, a mudança da vida das pessoas.
É neste sentido que me preocupo com a postura autoritária que tem se construído nos discursos ativistas da internet, em grupos de discussão, em páginas de Facebook: o diálogo tem se tornado escasso e tem sido entendido como negativo, dócil, condescendente. A postura tomada é a do “cala a boca”, do “racha” e, dessa forma, a capacidade de mobilizar tem sido extremamente limitada. Uma luta que perde seu poder de mobilização é ineficaz. Uma luta que reduz-se ao “sentir-se bem” ou “não sentir-se bem”, do ponto de vista subjetivo, sucumbe à fraqueza e perde força política e capacidade de transformação.
É compreensível – eu compreendo muito bem – que não seja fácil dialogar quando vivemos experiências extremamente dolorosas ao longo da nossa vida. Claro que não é fácil! Entretanto, a realidade demanda de nós ações que, muitas vezes, precisam caminhar na superação dos medos, das dores, dos incômodos, frente a posturas de luta, frente a estratégias de construção de um mundo e de um paradigma que não produza mais tantas situações traumáticas. Nossos medos e dores, escondidos no ostracismo auto induzido que é construído com autoritarismo e fantasiado de protagonismo, nos afastam da vida; são, como diria Espinosa em “Ética”, paixões tristes. São parte do nosso culto à morte, ao medo e à imutabilidade.
A postura autoritária é, as vezes, uma postura de defesa: queremos ser obedecidos, queremos que nossas respostas sejam as únicas, não queremos construir, queremos impor. A postura autoritária espera passividade plena do outro.
“Você não tem que falar. Quando o assunto é este, você cala a boca e escuta as manas falarem”
“Seu papel na nossa luta é ouvir”
“Não me questione, você devia era aprender”
Resistir à tentação autoritária
Será mesmo que é este o papel do ativismo? Será que esta é a postura esperada? Pretendo elencar aqui algumas posturas que, creio eu, precisam ser repensadas, tendo como norte a efetividade política do movimento e o aumento de sua capacidade de mobilização:
1-) Resistência ao essencialismo:
Essencializar é supor que haja algo como uma natureza nos sujeitos, uma condição imutável, que emana deles de forma universal e categórica tendo, portanto, pouco ou nenhum espaço para mudanças ou deslocamentos. Neste sentido é que questiono o discurso que incide sobre os homens cisgênero. Como posso propor que não haja uma universalidade em “ser mulher” e não aplicar o mesmo raciocínio ao “ser homem”? Ressignificar a condição da mulheridade implica em repensar a masculinidade, e isso não pode ser feito a partir de uma imposição ou de uma postura essencialista. A condição de mulher, já denunciava Beauvoir, se dá a partir daquilo que é tomado como “homem”, a mulher é (arbitrariamente) o “outro” do homem, de modo que há nisso uma perspectiva relacional a ser superada, mas não se pode superar tal condição sem que todos os seus elementos sejam rearticulados, e claramente o papel do homem precisa ser repensado. Não se pode discursar sobre o papel do homem, como se fora o mesmo de outros paradigmas, atribuindo a isso uma essência da condição de “ser homem”.
O feminismo tem produzido uma política intensa de “desidentificação” da mulher com imagens como: fragilidade, vítima, dona de casa. Mas e onde se realiza a “desidentificação” do homem com as imagens de agressor e opressor? Obviamente as mulheres estão submetidas a uma série de violências com as quais os homens não lidam, e eu digo isso na condição de travesti; entretanto, o que é o feminismo, senão uma tomada de posição ético-política frente ao mundo? E o que impede que homens tomem tal posição? O que nos impede de tentar diálogos e assumir uma postura não essencializadora?
Obviamente, não pode haver uma igualdade no papel de homens e mulheres nesta luta, mas é preciso pensar: Qual pode ser esse papel? Simplesmente ouvir e calar? Esse, definitivamente, não me parece o papel adequado. E mais ainda, que tipo de relações queremos que se constituam no futuro? Trata-se de perceber a contradição, não para reforçá-la, mas para buscar formas de produzir novos paradigmas a partir dos contraditórios.
Mas então você está dizendo que todas somos obrigadas a dialogar? Não. Acredito que os ativismos feministas e especificamente o transfeminismo, podem construir-se acolhendo as diferenças. Porém rejeito o discurso essencialista ainda que haja nisso o sentido de ferramenta política. É possível recusar o diálogo com homens, claro, o que não é possível é fazer isso partindo da categorização absoluta do que é “ ser homem”.
2-) Resistência às respostas prontas:
É muito comum que respondamos imediatamente a cada pergunta que nos é feita nos debates virtuais de forma imediata, a partir daqueles discursos correntes que já estão “consolidados”: “não se pode falar em biologia”, “homens cis não podem falar”, “pessoas trans só reproduzem transfobia”, não há tempo de reflexão, não há a consideração de que talvez, apenas talvez, não estejamos assim tão certas. As respostas prontas, por exemplo, põem a perder até mesmo uma série de vivências. Como dar conta do discurso de algumas travestis que identificam-se como homens? Vamos falar “Olha, você está errada. Sua vivência não vale o suficiente”. As respostas prontas e as verdades inquestionáveis tendem à dogmatização, ao uso irrefletido e isso é perigoso. Precisamos construir outras práticas de lidar com a verdade, precisamos manter a constante postura de espreita, aquele olhar de quem está disposto a descobrir e não de quem está disposto a agredir frente a qualquer discordância.
3-) Resistência à personalização da política:
Como eu disse mais acima, é tentador politizar nossos sentimentos, nossas frustrações e nossas dores, porque nós percebemos que a ordem sistêmica transfóbica nos atinge intimamente, nos limita afetivamente. Entretanto, não é no campo das subjetividades que construiremos uma prática política de emancipação, e neste sentido é importante resistir a isso. É óbvio que os processos de exclusão da economia do desejo e dos afetos que vivemos e a solidão que nos é imposta em muitos âmbitos doem, mas tudo isto está ligado à condição à qual estamos sujeitas: corpos e identidades abjetas, desnecessárias às forças produtivas, vidas não escolarizadas, sem nenhuma renda. Toda luta precisa elencar prioridades, é preciso que concentremos nossa atenção nisto: retirar a comunidade T da sub-humanidade. Esta luta é ainda por políticas públicas! Enquanto na internet discutimos o nome que daremos a isso ou aquilo, travestis continuam a morrer. A luta precisa ter um sentido de emancipação coletiva, não é uma luta individual, para abrandar as dores do indivíduo, mas para alçar toda uma coletividade à condição de “humanidade”.
4-) Resistir à emotividade:
Pode parecer duro pedir resistência à emotividade, mas é preciso. É comum que nos sintamos ofendidas ou magoadas frente a críticas ou discordâncias, entretanto, uma discordância não é sempre silenciamento (na verdade quase nunca o é), a discordância não anula a voz, não a impede, ela permite que nós respondamos a contestação do outro. Resistir à tendência de chutar o balde e falar “está me silenciando” é garantir a continuidade da fala. Os nossos regimes emocionais também nos silenciam, e constituir resistências internas é importante para a prática enquanto sujeito da ação política.
Resistir ao silêncio e à emotividade são estratégias para confrontar os discursos hegemônicos e para confrontar o silenciamento. A ordem da norma está dada, às vezes, na impossibilidade de pôr tudo abaixo, a gente precisa é agir com o que está dado na construção de algo novo.
5-) Resistência ao silêncio:
Neste sentido, é importante compreender que “falar” é um ato político (Hannah Arendt já propunha o ato político na dimensão do verbal em “O que é política?”), e que, para isso, precisamos assumir uma postura política ao enunciar. Capaz não de desmantelar o esquema argumentativo do outro, mas de fortalecer e evidenciar o que temos a dizer. Resistir ao silêncio é construir formas de sermos ouvidas, e as estratégias podem ser muitas. Precisamos também abandonar essa ideia de que só há uma forma de falar para nós, de que só há uma forma de se opor ao discurso hegemônico. A resistência é movimento, é mutante, é um fluxo de estratégias e de práticas que se constituem umas após as outras ou simultaneamente. Por fim, e não menos importante, resistir ao autoritarismo é engajar-se na construção de diálogos e de um transfeminismo capaz de abraçar as dissidências e as discordâncias, construindo um espaço que seja produtivo e não tóxico, que emancipe e que não construa novas formas de autocensura.
Este texto não se pretende definitivo de maneira alguma: ele é o reflexo dos incômodos que eu e muitas pessoas com as quais tenho dialogado sentimos frente à forma como tudo está caminhando. Escrevo cada linha com imenso medo. Receio de ser “ rachada” na internet. Receio de ser acusada de “agradar macho” ou de “iuzomismo” (termo que muito me desagrada, mas vá lá). Não acho saudável e nem mesmo normal que tenhamos que sentir medo de construir nossas opiniões. Espero construir um feminismo capaz de abraçar os diversos discursos e de construir espaços múltiplos de participação.