Ariane Senna é uma mulher trans que está fechando um ciclo da sua vida ao se graduar no curso de psicologia, em Salvador. Seguindo a regra geral de uma sociedade transfóbica, o caminho trilhado por ela foi árduo e repleto de obstáculos. Mas Ariane tem vencido um a um. Abaixo, ela apresenta o relato da sua trajetória até aqui.
“Desde a infância, a vida nunca foi favorável para mim, mas, à medida que fui crescendo, pude perceber que haveria dois caminhos para eu seguir e eu sabia que um deles seria a solução: “a luta pela vitória”. E foi nesse que tive foco.
Já vim ao mundo de forma indesejada. Quando meus pais namoravam, meu pai soube que minha mãe estava grávida e comprou remédios para minha mãe abortar. Quando percebeu que os remédios não adiantavam, passou a agredi-la fisicamente na região da barriga. Ele queria me matar.
Ainda assim, vim ao mundo, mas a separação deles dois foi um fato inevitável. Minha mãe tinha outro filho, que também foi rejeitado pelo meu pai, motivo pelo qual a criança foi morar na casa dos meus avós maternos. Por essa razão, eles não me aceitaram, pois haviam alertado a minha mãe que não admitiriam uma mesma situação pela segunda vez. Assim, depois da gravidez indesejada e dos maus tratos ainda no ventre materno, eu experimentei a segunda de tantas rejeições que passei e passo.
Uma vez rejeitada pelos avós, passei a ser criada nas ruas. Minha mãe conta que, ainda se recuperando do parto, ela ia às praias de Salvador vender lanches para me sustentar e pagava para algumas pessoas tomarem conta de mim. Mas chegou um momento em que fiquei com desnutrição, entre a vida e a morte. Então meus avós se sensibilizaram e me aceitaram quando eu tinha 5 anos de idade.
Nesse novo ambiente, passei a maior parte da infância e vivia apenas com as sobras. Tudo era para o meu irmão, que viveu ali desde que nasceu, e assim começaram as brigas. Cabia a ele me dar um pedaço de um chocolate, dividir comigo algum brinquedo ou não. Ele era tratado como um rei e eu sempre a pessoa que morou naquela casa de favor.
O tempo foi passando e fui crescendo uma criança agressiva e rebelde, segundo minha mãe. Aos 13 anos, quando já apresentava indícios da minha orientação sexual, os conflitos só pioraram. Briguei com um avô que vivia me perseguindo com ódio e, no meio de umas dessas agressões, eu o empurrei e fui expulsa de casa, passando novamente a morar de favor nas casas das pessoas conhecidas.
Aos 15 anos, penalizados com a minha situação, eu consegui retornar à casa dos meus avós. Porém, outro problema nasce para a minha família: a minha feminilidade. Meu irmão já não brigava apenas, mas me agredia fisicamente. Nesse período, passei a buscar ajuda dando queixa em delegacia, registrando boletins de ocorrência que tenho até hoje em mãos e que jamais surtiram qualquer resultado. O Grupo Gay da Bahia (GGB) foi a primeira casa em que busquei ajuda. Lá pude trabalhar a minha auto-aceitação e encontrei um espaço para onde ir.
Dentre todas essas várias agressões, houve mais uma: fui expulsa de casa novamente. Como eu já sabia que era uma mulher, minha saída foi a prostituição para me manter e comprar minhas coisas, já que minha mãe pagava meu aluguel. A prostituição foi fundamental para que eu fizesse as minhas escolhas. Lá eu pude reviver, sentir na pele mais uma vez o que era humilhação, agressões físicas e verbais de outras travestis e de clientes, estupros e todos os tipos de vulnerabilidade que podemos imaginar. Mas isso me fortaleceu para que eu não largasse os meus estudos e foi assim minha rotina: durante as tardes, eu dava continuidade ao meu ensino médio. À noite, fazia prostituição.
O tempo passou e, aos 17 anos, retornei novamente para a casa dos meus avós. Nesse período, já tendo passado por várias coisas, resolvi cortar o meu cabelo e tentar “virar homem”, pois não entendia de onde vinha tanto sofrimento. As pessoas me diziam que era falta de Deus e então eu corri atrás dele. Saí de casa e fui morar nos fundos de uma igreja para tentar mudar, mas passei apenas três meses e votei para a casa dos meus avós.
Também voltei a me transicionar e deixar existir a mulher que sempre esteve dentro de mim. Apesar de recomeçar a minha transição, não quis mais voltar para a prostituição e comecei a tentar entrar no mercado de trabalho, “transformando-me temporariamente em homem” para isso. Nessa ocasião, encontrei um namorado que me acolheu, no mesmo instante em que meu irmão colocou uma mulher dentro de casa. Ela o fez me expulsar de lá, e assim estou até hoje, morando em casas de aluguel.
Em meu primeiro emprego como promotora de cartão de créditos, aos 18 anos de idade, conheci uma promotora da Faculdade Unime. Decidi me inscrever para o vestibular e também inscrever meu namorado, hoje meu marido. Ambos formos aprovados. Ele já concluiu a faculdade e agora eu concluo a minha.
Entrar na faculdade não significou inclusão para mim. Lá dentro, senti mais uma vez a rejeição velada por conta de certa competição e por ter sido sempre umas das melhores alunas. Tive as melhores notas, bom relacionamento com os professores, boa desenvoltura nas apresentações de trabalhos. Isso tudo gerou e gera desconfortos na maioria dos meus colegas de sala. O tempo foi passando, fui lidando com tudo isso, mas não foi nada fácil. Houve abaixo-assinados de colegas para eu não usar o banheiro feminino, jogavam bolas de papel quando passava pelos corredores, enfim, eram todas as formas de exclusão e de rejeições possíveis. À medida que viam o meu potencial, aumentavam ainda mais esses comportamentos.
Há sete anos vivendo com a mesma pessoa que hoje é meu marido, estagiando e sendo aceita como sou, finalizando os meus estudos ainda com todas as dificuldades possíveis, eu digo para outras trans que porventura estejam lendo este texto: a vida pode ser difícil mas nada é impossível. Acreditar sempre nisso foi o que me moveu, sempre tive fé.
Com muito esforço paguei e pago minha formatura, inclusive com ajuda de rifas. À medida que vou realizando alguns sonhos, outros novos vão aparecendo. Ainda chegará o tempo em que escreverei para falar de outras conquistas e outros sonhos, como a casa própria, a estabilidade com minha profissão e a ajuda que darei a muitas trans e travestis para se inserirem nesta sociedade tão difícil e resistente a nos aceitar.
São muitas coisas que tive que resumir aqui. Se pudesse, passaria dias, meses e talvez anos escrevendo, mas quis mostrar que é possível conquistar o que queremos quando acreditamos. A fé nos move!
Quero dizer para todas e todos vocês que EU VIM E VENCI!”
Sinto um imenso orgulho de ter me engajado nesta luta que é de todos nós seres humanos, sou pai de um rapaz homossexual e por conta disso, me senti na obrigação de dar minha contribuição para que famílias, pais e mães principalmente, aprendam a respeitar e aceitar seus filhos como são. Amei a sua história e estou me formando em Coaching para dar minha contribuição e poder ajudar a outros LGBTS e principalmente trans e travestis a se aceitarem e superar todo esse preconceito da sociedade. Parabéns, que sua história seja exemplo para muitos que não tem a mesma força. Em breve estarei formado e terei um espaço dedicado a filantropia.