Existe uma grande diferença entre o sentimento de permitir mistério e o sentimento de evitar vexame. Uma grande diferença entre se preservar e se tolir. Uma grande diferença entre ser compreensivo e ser auto destrutivo. Entre evitar pisar no calo dos outros… e convidá-los a que pisem nos seus. Quando a etiqueta é mais importante do que a ética, alguma coisa está muito errada.
Já repararam que quando alguém resolve se declarar gay, bi, pam ou trans, esta pessoa nunca diz “vou assumir minha sexualidade”? Diz: “Vou me assumir.” Porque o gesto e a questão estão muito além dos limites do sexo. Trata-se de assumir sua personalidade, sua opinião religiosa, política, social, profissional, familiar, amorosa e para consigo própria. Trata-se de assumir sua ilimitada criatividade e responsabilidade (a habilidade de responder) perante a vida.
Meu nome é Alessandra Maestrini. Sou caucasiana, magra, tenho 37 anos, uma família grande que me ama, me sustento com o suor do meu trabalho que já tem reconhecimento inclusive público, sou artista, boa parte dos meus amigos é artista, “mente aberta” como eu, a imprensa sempre me trata com o carinho e discrição que eu gostaria e, ainda assim, eu estou exausta. Exausta de não me sentir amada incondicionalmente. Exausta de não me permitir amar e ser amada como devo e como mereço. Exausta de me sentir rejeitada e, é claro, especialmente por mim mesma. Exausta de assumir uma posição superficial sobre tantos assuntos para “não me expor”. Exausta de falar sobre sexualidade não ortodoxa como se me referisse a terceiros, quando na verdade estou entre os sujeitos e sou o objeto do assunto. Não estou falando sobre “eles”. Estou falando sobre “nós”.
Imagine você que a cada entrevista que dou tenho que ficar ou trocando o gênero de um personagem de minha história, ou escolhendo outra história vivida por mim que “já traga em si o gênero certo, esperado, desejado pelos ouvidos da sociedade”. Nossa… só de escrever isto “je suis très fatigué!” Agora imagine que a cada festa que eu vou ou.. nem precisamos chegar a tanto: a cada esquina que viro, pessoa que conheço, desde o fã que me cumprimenta até o médico com quem me consulto tenho que me perguntar se tal pessoa é confiável e/ou compreensiva o suficiente para que eu possa me expressar sem camuflar o fato de que sou bissexual.
Lembro de um término de namoro difícil. Ela disse: “Eu te amo, mas eu não me aceito. Sei que esta sou eu, mas eu não quero ser esta. Eu não consigo. Eu vivia em um mundo preto e branco e você me apresentou a um mundo cheio de cores tão lindo. Mas eu não sou forte o suficiente para dar conta dele. Não tenho coragem de encarar o desgosto que vi nos olhos da minha mãe. Vou voltar para a minha vida preto e branco.” Você será feliz assim? – perguntei. Ela sorriu singelamente e disse: “Assim dá para sobreviver.” Humm.. Sobreviver. E está bom assim? Sobreviver é o suficiente para você? “Como assim?” Não quer viver? Sobreviver não basta. E estamos esperando mais o que para virar esta chave? Se o presente é tudo quanto existe?
Lembro de uma vez, na descida de uma montanha russa, aquele frio na barriga e a pessoa ao meu lado gritou: “Ai, meu Deus!!! A gente vai morrer!!!” E eu respondi gritando de volta: “Eu sei!!! Mas quando???” Se eu morrer amanhã, quero que, ao menos, a pessoa que viveu tenha sido eu. Uma coisa é o fato de que me pagam para fazer teatro, na vida profissional. Outra coisa é o fato de que me custa passar a vida fingindo, na vida pessoal.
Sou comediante. Sei bem onde graça e dor se encontram. Quando me vi, mais uma vez, desviando de mim mesma para responder a perguntas simples, com mais de 30 anos de idade, e em pleno 2014… Achei patético, e resolvi mudar o quadro, digo: a entrevista. “Cada um faz da vida o que quer; mas pra que se exibir assim? Pra que se expor?” Minha sexualidade não é um defeito ou uma doença. É uma característica minha da qual, assim como de todas as outras que me compõem, me orgulho porque me dá alegria porquanto me identifico com ela porque… sou eu. Portanto, que isto fique bem claro: ao me assumir não estou me exibindo; não estou me expondo: estou me expressando.
Não estou abrindo mão da minha intimidade.Estou fazendo questão da minha identidade. Sou múltipla: dentro da pessoa existe uma mulher, uma criança, uma velha, filha, amante, artista, filosofa, amiga, mil outras coisas…. Dentro da artista existe uma comediante, uma atriz dramática, uma pin up, uma cantora, bailarina, escritora, poetiza, compositora, tradutora, versionista…. Dentro da cantora, todos os estilos… Dentro da atriz, infinitos personagens… Dentro da poetiza, versionista e compositora, incontáveis direções… E assim, sucessivamente… Porque dentro da minha sexualidade haveria eu de ser chapada e não, coerentemente, multidimensional?
A esta altura eu, que não paro de me questionar, me pergunto: mas quem se importa, Alessandra? A quem afinal interessa o que você faz ou deixa de fazer, de que maneira você ama? A bem da verdade, o fato é que não deveria mesmo interessar a ninguém. Poderia o mundo responder ao meu manifesto, como respondeu meu pai quando, já nos meus vinte e poucos anos, me assumi para ele. Meu pai respondeu: “E daí?” Você já sabia, papai? “Não.” Como é possível eu te contar que sou gay e você reagir assim, como se eu tivesse dito nada? “Minha filha, isto é tão desimportante para mim, que nunca me passou pela cabeça se você é ou não é gay. Cada um faz da sua vida o que quiser. O que me interessa saber é: você está feliz?”
Por isto que sempre que alguém me perguntava em entrevistas se eu estava solteira ou namorando, como costumeiramente eu estava sempre namorando alguma mulher que não só não queria se assumir como, boa parte das vezes, apesar de já estar há meses me namorando e declaradamente apaixonada dizia “não se considerar gay” eu respondia: “Estou feliz.” E imediatamente ficava orgulhosa do drible elegante… e drenada por sublinhar mais uma vez minha cumplicidade à escolha de envergonhar-me de ser quem sou e de viver o que vivo. Boa parte das vezes, a melhor maneira de piorar um problema é contorná-lo ou, mais objetivamente, fingir que ele não existe.
Sabe o que é viver em estado de gueto existencial? É assim: “Pode ser gay, mas não pode mostrar que é gay. OU Pode namorar alguém do mesmo sexo, desde que não beije na boca na rua como fazem os casais héteros. Aliás, se andar de mãos dadas eu já acho que é provocação. Na verdade se quem estiver em volta puder sacar que tem um clima é porque já está um pouco demais; vai namorar em casa, poxa! Porque é que eu sou obrigada a ver isto? OU Pode morar junto, mas pra que tanto alvoroço em querer. casar de papel? OU Eu tenho o maior respeito pelos gays, tenho vários amigos inclusive, mas filho meu tem que ser macho.”
Nos chamam de minorias… Os homossexuais, os bissexuais e todos os outros “criativos sexuais” não são nem nunca foram minoria. Nós não somos nem nunca fomos minoria. O que é, ainda, de fato minoria, são os poucos de nós que se assumem como eu estou fazendo agora. E é isto que nos enfraquece. Direito e dever quase sempre são sinônimos. Exercer-se é, talvez, o maior exemplo do que quero dizer com isto. Assim como o é a cidadania. Exercer-se é um direito e um dever de todo cidadão que, individual em sua natureza e escolhas, e pertencente à tribo humana, como tal quer e merece ser tratado.
As pessoas costumam assumir o seu amor e não a sua sexualidade. Não as julgo. Mas eu aqui estou me assumindo, não porque esteja apaixonada e nem mesmo porque esteja procurando um amor para o momento. Não é o caso, definitivamente. Estou me assumindo porque estou exausta. Pra mim já deu. Sabe? E sei que esta minha decisão e gesto podem e vão influenciar muitas pessoas, da vida pública como eu e, principalmente, na sua vida privada, a abrir suas asinhas e alçarem voos mais leves.
Ai! Que alívio! 🙂
Fonte: revista Caras
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Esse texto mudou minha vida em 2014. Levo a leveza que ele me deu até hoje comigo.