
Casado e feliz com o próprio corpo, Gabriel Oliveira critica a liberação de tratamentos psicológicos para mudança de orientação sexual
Nathalia Passarinho
Publicado pelo portal BBC Brasil, em 25 setembro 2017

para mudança de orientação sexual
Quando criança, Gabriel Graça Oliveira, batizado Maria Graça Oliveira, já se sentia desconfortável com o próprio corpo. Não gostava de roupas de menina, se identificava com personagens masculinos quando via televisão e se juntava às brincadeiras dos garotos da rua e do colégio.
Por causa do jeito de falar e vestir, chegava a ser confundido por menino na escola. Mas no início da adolescência, decidiu se “adequar” ao gênero que esperavam que tivesse. Passou a observar e imitar o modo de falar, andar e gesticular da mãe e das tias. “Às vezes me sentia um ator”, conta.
Gabriel não se via como mulher, mas carregou o nome, as roupas e a aparência da Maria por 48 anos. “Eu sou um homem transgênero. Tenho conhecimento disso desde a infância. Mas só aos 48 anos consegui assumir essa identidade e iniciar o tratamento de transição de gênero, com cirurgia e hormônio”, relata à BBC Brasil.
O longo processo de autoconhecimento incluiu muitos anos de terapia até que, em novembro de 2015, Maria deu lugar a Gabriel nos documentos de identidade. “A psicoterapia me ajudou a compreender melhor como eu me sentia, a identificar com maior clareza minha identidade. Ajudou a compreender que é um fenômeno humano”, diz.
Ele estava em um relacionamento sério com uma mulher quando decidiu iniciar o tratamento para ganhar aparência masculina. O desconforto que sentia com o próprio corpo era tão grande que começara a afetar a vida sexual do casal. “Meu constrangimento com meu corpo feminino não me deixava à vontade na intimidade. Enquanto éramos apaixonados, conseguíamos passar por cima dessa minha dificuldade, mas depois que a paixão acabou fomos oprimidos pela minha inadequação física”, conta.
“A mudança na aparência me trouxe conforto”, explica. Casado desde abril deste ano, feliz com o próprio corpo e confortável com identidade masculina, Gabriel Oliveira critica a liberação de tratamentos psicológicos para mudança de orientação sexual. O verdadeiro papel da terapia, defende, é promover o autoconhecimento.
Neste mês, o juiz federal da 14ª Vara do Distrito Federal Waldemar Cláudio de Carvalho concedeu uma liminar que autoriza psicólogos do Brasil a oferecerem aos pacientes formas de terapia de reversão sexual, a chamada “cura gay”. A justificativa, segundo o juiz, seria a de não impedir os profissionais “de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia”.
A liminar atende parcialmente uma ação movida contra o Conselho Federal de Psicologia por Rozangela Alves Justino, psicóloga que teve seu registro profissional cassado em 2009 por oferecer “terapias para curar a homossexualidade masculina e feminina”. Resolução do órgão proíbe desde 1999 tratamentos de reversão da orientação sexual. O argumento é que homossexualidade não representa doença, distúrbio nem desvio psicológico e, portanto, não cabe reorientação. Mas Rozangela Justino argumenta, na ação, que a resolução do conselho representa ato de “censura” e impede psicólogos de “desenvolver estudos, atendimentos e pesquisas acerca de comportamentos e práticas homoeróticas”.
Na sexta, o Conselho Federal de Psicologia recorreu da decisão judicial que libera o tratamento de “cura gay”. Diretor do órgão, Pedro Paulo Bicalho nega que a resolução impeça pesquisas sobre orientação sexual e identidade de gênero. “Isso não faz o menor sentido, porque o órgão que regulamenta pesquisa no Brasil é a Coordenação Nacional de Ética em Pesquisa, órgão do Conselho Nacional de Saúde. Os conselhos profissionais não têm a menor interlocução com pesquisa cientifica.”
Função da terapia
Além da experiência pessoal com terapia no reconhecimento da própria identidade de gênero, Gabriel Oliveira é psicoterapeuta e professor de psiquiatria da Universidade de Brasília. Ele argumenta que a função do processo terapêutico é permitir que o indivíduo, com interlocução do psicólogo, organize os próprios pensamentos e identifique os fatores causadores de angústias e sofrimentos. “A terapia precisa ajudar o paciente a se conhecer mais profundamente, compreender, acessar sua real identidade e se aceitar, aceitar sua orientação, como algo que faz parte do humano, da vida”, defende. “Ao existir tratamento para a homossexualidade parte-se do pressuposto de que a homossexualidade é uma doença, algo que precisa ser tratado, como se você pudesse, através da psicoterapia, ser heterossexual. Vai levar as pessoas a não se aceitarem, a se sentirem inadequadas”, diz.
É esta também a posição do Conselho Federal de Psicologia. “O papel da terapia é empoderar o sujeito para que ele possa conviver da melhor maneira possível com a sua orientação sexual e identidade de gênero e dar a ele condição de entender os processos históricos e sociais que fazem com que setores da sociedade tenham preconceitos e fobia LGBT”, explica Bicalho, que também é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É um processo muito importante. O Conselho Federal de Psicologia nunca impediu tratamento psicológico. O que proíbe é terapia vinculada a um processo de reversão da orientação sexual ou da identidade de gênero”, completou.

ele diz que terapia o ajudou a ajustar expectativas quanto à reação de familiares e colegas (Foto: Mauro Restiffe)
O advogado Mauro Finatti, por exemplo, diz que encontrou na terapia uma forma de se conhecer melhor e de abordar com clareza diferentes aspectos da vida pessoal e profissional. Casado há cinco anos com outro homem, ele conta que a psicologia o ajudou a lidar com o modo como familiares e colegas de trabalho reagem à sua orientação sexual. “A terapia me fez fazer uma análise da minha vida como um todo, de aspectos familiares a questões de trabalho e, dentro desses aspectos, a questão da homossexualidade, de relacionamentos”, relata. “O processo terapêutico me ajudou muito a ajustar expectativas, até com relação à aceitação da minha sexualidade no ambiente familiar e de trabalho. Eu tinha a expectativa de que tinha que explorar de forma mais aberta a minha sexualidade com a minha família e que eles tinham que me aceitar. Tinha essa inconformação de não ter uma relação mais aberta na minha família. A terapia me ajudou a resolver essa questão comigo mesmo”, detalha.
Libertar de angústias
Psiquiatra e psicanalista, Oswaldo Ferreira Leite Neto explica que, ao contrário de impor, conter e transformar desejos e preferências, a terapia, também no caso na psicanálise, tem a finalidade de ajudar o paciente a descobrir quem é e o que quer. “A pessoa, na análise, num ambiente livre de preconceitos, descobre o que quer. O analista ajuda a fazer o parto da alma, a libertar de angústias e culpas”, diz.
Para Leite Neto, a orientação sexual não pode ser definida ou “revertida” com terapia. Ele lembra que o desejo, no caso do ser humano, não é somente relacionado ao sexo e ao instinto de procriação, mas também intermediado pela “fantasia”, que é o “imaginário, o universo da vida mental”. “O que é tratável numa pessoa são as angústias, as coisas do inconsciente que travam, reprimem. As pessoas vão à terapia para descobrir quem são e que são donas do próprio nariz”, afirma.
Como é no mundo
Há quase 30 anos, a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças.
Nos EUA, cada Estado tem as próprias regras sobre tratamentos de reversão sexual. Muitos deles proíbem a prática em menores de idade. A Associação Psiquiátrica Americana se opõe a qualquer “tratamento psiquiátrico, como a terapia de conversão baseada no pressuposto de que a homossexualidade seja um transtorno mental ou de que um paciente deveria mudar sua orientação sexual”.
Na Europa, somente Malta proíbe expressamente tratamentos de “cura gay”, mas entidades de psicologia e saúde de diversos países se opõem à prática. No Reino Unido, por exemplo, o NHS (equivalente ao SUS) classifica tratamentos de conversão da orientação sexual como algo “potencialmente prejudicial e antiético”.