O cientista político Marcelo Caetano conta como foi o processo de transformação da mulher que nasceu para o homem que se tornou
Flávia Duarte
Publicado pelo Correio Braziliense, em 17 de abril 2016
“Não importa a voz da pessoa, se ela tem barba ou não… Por que os outros não podem só chamá-la pelo nome que ela quer e tratá-la da maneira que ela deseja? Por que o corpo dela tem que corresponder à expectativa linguística do outro?” Marcelo Caetano tem 25 anos, mas nasceu em 2010. Foi batizado com nome de mulher, em Santos, em 1989, porque suas características físicas diziam que assim deveria ser. Mas, com o tempo, a alma disse outra coisa. Ela se sentia ele. Resolveu renascer. Ela escolheu outro nome. Pediu para que os amigos a chamassem por Marcelo e, assim, começou vida nova, com identidade diferente.
O jovem ficou badalado na internet e nas redes sociais depois de fazer um discurso politizado, emocionado e igualmente emocionante em sua colação de grau. Formou-se este ano na Universidade de Brasília (UnB), em ciências sociais. Na apresentação, falou de gênero, de raça e do direito de os pobres estarem em lugar, na maioria, reservado para ricos. “Pra chegar até aqui, atravessei cerca de arame farpado”, declarou.
É considerado o primeiro negro transexual a conquistar um diploma na instituição, que ele considera elitizada. Privilegiado, se acha.
Assumiu sua mudança de gênero publicamente, sem medo. Levantou a bandeira. Foi uma libertação pessoal e também uma expectativa de ajudar na redenção alheia. “Alguém precisa falar sobre isso. As pessoas trans existem, elas estão no mundo e são altamente marginalizadas.” A coragem dele, por vezes, desperta a curiosidade dos outros. Há quem viva o mesmo conflito de não se reconhecer no próprio corpo e quer pedir ajuda. Outros não conseguem entender como é ter uma aparência e se ver em outra. Já lhe perguntaram mais de uma vez: “Como pessoas trans fazem sexo?” Ele responde. “Não a pergunta, mas respondo.” Dá o que considera “uma bela resposta”: “Como seres humanos”, encerra o assunto. Simples assim.
Mas a suposta aceitação da própria trajetória também foi um caminho tortuoso para Marcelo. Quando decidiu ser homem, vestir-se e ter uma aparência masculina, em 2010; também não entendia direito como iria se relacionar sexualmente e afetivamente com outra pessoa. Um documentário, gravado há quatro anos, sobre sua história, ganhou como título a frase que ele leva tatuada no braço esquerdo: “Eu te desafio a me amar”. Na ocasião, ele declarou que sentia vergonha de se despir na frente de alguém. Não sabia se, como homem, iria namorar com uma mulher que se definisse como hétero ou como lésbica.
Hoje, o conflito naturalmente foi embora. Marcelo, que era menina quando começou a vida sexual com uma outra mulher, agora tem namorada que se considera hétero. A moça é bonita. Tem cara de modelo. Mostra a foto dela. Apaixonado, diz que é perfeita. Mas prefere que ela não fale sobre ele. No Facebook, a relação de afeto fica comprovada na troca de comentários nas fotos postadas. Ele a elogia. Ela agradece e o chama de amor.
Ele prefere que os amigos também não sejam contatados para falar dele. Mas a história de Marcelo é construída pela família que escolheu. A tatuagem “Éramos nós”, que marca seu outro braço, é uma referência dessa nova relação de afetos que criou quando decidiu deixar a menina que foi um dia no passado.
Conta que sempre se sentiu desconfortável no papel de mulher. Socialmente, muitas vezes fazia o que se espera do gênero. Ia a festas de vestido longo, ainda que o corpo parecesse não caber dentro da modelagem feminina. “É um sentimento de não se entender, não se reconhecer. Você olha uma determinada aparência e não se sente confortável com isso. É olhar para você e pensar: ‘Não era assim que eu queria ser, que eu queria parecer’.” Ele mantinha o cabelo crespo comprido, o que também era conflituoso. Desde a infância, nunca soube lidar com a rebeldia dos fios. “Eu era uma menina negra, sendo criada por um homem branco, que também não sabia o que fazer nessas questões de estética negra e feminina”, comenta.
Por isso o cabelo sempre foi tão simbólico. Quando decidiu se assumir como homem, a primeira coisa que fez foi cortá-lo. Também comprou cuecas. O armário, ele crê, quase não mudou. Sempre andou de tênis, vestiu camiseta, jeans ou bermuda. As roupas volumosas sempre disfarçaram qualquer contorno que pudesse denunciar as curvas femininas.
A primeira vez que entendeu por que não se reconhecia como mulher foi em 2010. Foi em uma aula do curso de direito, na faculdade em que estudava, em Curitiba. A professora citou casos de pessoas que mudavam de sexo e assim conquistavam o direito de escolher novo nome. Eram transexuais, gente que, pela psicologia e pela psiquiatria, convivem com corpo diferente do seu verdadeiro sexo. “Durante mais da metade da minha vida, fui identificado e me identifiquei como uma pessoa do gênero feminino, mas nem sempre como uma mulher. Sentia atração por outras pessoas do gênero feminino. Não só por aquelas que se identificam como mulheres. Logo, era entendido e me entendia como uma lésbica”, Marcelo escreveu em sua página pessoal na internet.
O conflito de identidade é algo persistente e doloroso. O mestrando mudou a aparência e passou a ser identificado visualmente como um homem. Pediu que os amigos o ajudassem a escolher um nome. Gostava de Caetano, mas queria nome composto. Alguém sugeriu Marcelo. Achou que combinava e, então, estava rebatizado. Pediu para que o chamassem, a partir daí, por pronomes masculinos. Os amigos aceitaram a mudança. “Seus livros de anatomia, suas regras de classificação não são suficientes para a minha compreensão. Sou mais que um binômio. Não sou ela versus ele. Tampouco menos gente, sequer menos ilusão”, definiu sua confusão em poesia.
Aos poucos, foi matando a mulher com a qual nasceu desenhada no corpo. Não diz seu nome civil. Acha que é muito feminino e não faz parte da pessoa que é atualmente. “Tudo que aconteceu nesses 20 anos não deixa de existir. Ocupa um outro lugar na minha vida e fica cada vez mais distante.” A única foto que mantém, daquele tempo, nos seus álbuns virtuais é uma de quando criança, ao lado do pai. O cabelinho amarrado e a boneca no colo dão dicas da pessoa que ele, fisicamente, foi um dia: uma garotinha. Os documentos, porém, ainda não mudou. Tem dívida para quitar e enquanto isso não fizer, será tratado em situações burocráticas como “ela”.
Quando chegou a Brasília, depois de ser aprovado em vestibular para a faculdade de ciências sociais, Marcelo já se apresentou como “ele”. Ninguém desconfiava que por baixo das roupas despojadas, ainda mantinha o corpo dela. Entrou com um processo para que pudesse usar o nome social na carteirinha da UnB. Isso não evitou situações constrangedoras, porém. Na lista de chamada ou nas provas, mantiveram o nome de batismo. Era o homem identificado por nome de mulher. Na hora de regressar aos bancos acadêmicos, agora como mestre em direito, o sistema também ficou confuso com a mudança de sexo.
Mas tudo se resolve. Ou não. Já foi barrado em festa, em banco. Já teve de se impor para viajar. Quem olha o cara barbudo não pode acreditar que ele tenha identificação formal de uma mulher. “Esse é meu documento”, ele simplesmente diz. “Isso me chateia. Tenho uma aparência que não é questionada. Só me deparo com essa questão em situações de burocracia. As pessoas deveriam perguntar: “Não entendi! Por que você tem esse nome aqui e essa aparência?’ Para mim, seria muito de boa responder. Mas elas não fazem, e também não faço questão de explicar em todas as situações. Acho que não tenho a obrigação de educar os outros e gerar empatia neles”, diz.
Aos poucos, sua aparência foi mudando, de fato. Em 2012, começou a tomar hormônios. “A maioria das pessoas trans busca a hormonização para ter um corpo mais feminino, ou mais masculino.” A testosterona lhe deu os sonhados identificadores masculinos: pelos mais espessos pelo corpo, barba e voz mais grossa. O formato do rosto mudou; a libido e o apetite também ficaram mais vorazes. O cabelo, antes curto, cresceu. Mas dessa vez não foi até a cintura. O volume foi pra cima e, em 2014, adotou o estilo black power. Os seios, antes contidos pela pressão por uma malha que lhe afundou a costela, agora, em fevereiro, foram extirpados com cirurgia autorizada por laudo de um psicólogo.
Ainda há cicatrizes no local e ele não conseguiu avaliar bem o resultado do procedimento. Marcelo não se sente muito confortável ao ver o corpo desnudo diante de um espelho. Ainda mantém formas femininas. O órgão sexual é dela. Assim será. Pelo menos, ele acredita. “Se eu pudesse ter um pênis completamente funcional, que fizesse parte do meu corpo, seria ótimo, mas não é o caso. Eu não preciso disso para existir no mundo como homem, para me relacionar com as pessoas em qualquer dimensão, inclusive na afetivo-sexual”, garante.
Quem olha para ele, em seu visual confortável, boné na cabeça e óculos estiloso, jamais duvidaria que tivesse nascido menino. Tem barba. Agora o cabelo está curto novamente.
Por própria conclusão, diz que passou do papel de presa violável a potencial violentador. “Você olha para uma mulher, olha também para a bunda, para a coxa, para o peito. Eu era uma mulher negra e passei por uma série de experiências de assédio e de violência. Mas, a partir do momento que você passa a ser lido como homem, o mundo fica mais tranquilo. Existir no espaço público, não tenho dúvidas, é mais fácil para eles. Sair na rua, andar à noite, sair de madrugada, descer numa parada escura… Ao mesmo tempo, sou um homem negro, reconhecido como tal e isso traz uma outra disposição: meu corpo continua sendo estuprável, no seu limite, um corpo; mas hoje a minha leitura social é como violador.”
As características masculinas deletaram algumas femininas. Ele não menstrua mais. Também não visita o ginecologista, como sua anatomia exige. Nunca foi, na verdade. Acha que os médicos do Serviço Público de Saúde não estão preparados para lidar com suas especificidades.
O novo gênero lhe trouxe nova vida, novas perspectivas. Mas também lhe roubou algumas referências do passado. A família não aceitou o fato de a menina que criaram agora ser menino barbudo. O pai, que mora em cidade no interior de Pernambuco, terra onde a luz elétrica chegou há pouco e não tem água encanada, só falou com ele duas vezes depois que saiu de casa, em 2009. O cientista político desconfia que ele saiba que a filha agora é filho, pois trocaram um e-mail em que o destinatário atendia por Marcelo.
A mãe o deixou quando criança. A relação deles nunca foi próxima. Ela sabe que ele mudou o nome e a aparência. Não gostou e não entendeu o porquê. Analfabeta, certamente não desconfia o que significa a palavra transexualidade. Quem ousaria a explicar a ela, já que quem vive o drama também não compreende bem o conceito? Ela acredita ter a culpa por ter sido mãe tão ausente. “Uma pira dela”, Marcelo diz.
Assim, ele escolheu os amigos para acompanharem neste novo momento da vida. Eles apoiam. Ainda assim, foi difícil. “Nasci em 13 de outubro, em uma sexta-feira, 13. Costumo brincar que era um prenúncio de tempos sombrios que viriam pela frente”. Entender por que sua mente pensava diferente do que o corpo dizia, aceitar o conceito que deram para isso e renascer em nova aparência foi um processo que deixou feridas.
Marcelo, quando ainda era ela, teve depressão. Foi diagnosticado com a doença da tristeza extrema e com transtorno bipolar. Em poucos anos de vida, recebeu uma série de diagnósticos psiquiátricos. A alma inquieta tentou se ferir. Pôr fim à dor. Tentou se matar. Ele se jogou de um prédio de seis andares. Ficou dois meses em coma. Quebrou as pernas. Sobreviveu. A lembrança desse dia, traz tatuada no corpo o desenho de um edifício, com os seguintes dizeres. “Cair em si do último andar”. Literalmente, foi esse o caso dele.
Não foi a primeira vez que tentou deixar a vida. “A experiência de tentativa de suicídio é a tentativa de matar alguma coisa que dói, incomoda, faz sofrer. Como você não pode matar só esse pedaço, você tem que matar tudo para resolver o seu problema, que envolve uma série de outras dimensões e dificuldades que vão para além de ser trans ou não.” As cicatrizes nos punhos são marcas indeléveis do sofrimento de uma voz desesperada. Ele se automutilou. Passou dois meses em manicômio. Tomou remédios. Permanece vivo, por sorte ou graça, para contar essa história.
Hoje, se considera um homem “atraente e bonito.” “Gosto de mim. Sou vaidoso. A estética é um elemento importante de demarcação de quem você é e a minha tem uma série de referências das coisas que gosto, das pessoas que me interessam e me admiram.” Acredita que, psicologicamente, a mente está mais acomodada. “Sem dúvida, a transição foi uma experiência libertadora, quase de redenção, mas acompanhada de muita análise, muita terapia e muitas horas de falação.”