Por Mattheus Goto
Publicado pelo portal iGay, em 5 de julho de 2018
Os estádios de futebol sempre foram ambientes hostis para a comunidade queer, mas torcedores e jogadores LGBT estão lutando contra essa realidade
“Bicha” e “viado” são apenas algumas das palavras utilizadas em estádios de futebol para tentar diminuir um jogador ou um torcedor adversário, e, com a Copa do Mundo acontecendo na Rússia, foi levantada a discussão sobre a homofobia no futebol. “Nos cantos da torcida, nos olhares que recebemos de reprovação, na perseguição dos jogadores”, afirma Flávia Ellen, torcedora LGBT do Atlético Mineiro sobre como o preconceito se manifesta.
“O que mais me incomoda são os cânticos e os gritos homofóbicos”, diz Mara Nogueira, outra torcedora LGBT do Atlético Mineiro, que faz parte da Galo Queer, torcida organizada contra a homofobia no futebol . Em entrevista ao iGay , ela conta que demorou para perceber o teor pejorativo de muitas frases ditas em um estádio. De acordo com a torcedora, isso acontece porque o preconceito ainda é naturalizado e reproduzido, por exemplo, quando crianças imitam os pais na hora de torcer.
Ela comenta que os estádios deveriam ser um lugar de festa para todos, mas o clima dentro deles não favorece a presença de torcedores LGBT. “Já fui ao estádio algumas vezes com minha namorada e tivemos, sim, medo de demonstrar nossa afetividade em público”, revela Mara. Ela acrescenta que, para poder habitar e frequentar esse espaço, sente que deve se adequar à heteronormatividade.
“Não acho que é preciso ficar no armário, mas nós somos mantidos lá pelos clubes, pelas torcidas e pelo ambiente do futebol”, afirma Flávia acerca do sofrimento dos LGBTs, que não podem expressar afeto e nem sequer suas verdades em tal espaço. Na luta contra o preconceito, ela conta que já participou da fundação Grupa, um grupo de mulheres fãs do Atlético Mineiro, que se posicionam contra machismo, racismo, elitização e homofobia no futebol.
De acordo com ela, todo esse preconceito no futebol não afeta apenas os torcedores, mas também os jogadores dos times em si e até o desenvolvimento profissional deles. “Lembra o Richarlyson, ex-jogador do São Paulo e do Atlético Mineiro? Ele não era um jogador ruim, mas se tornou ‘pior’ por ter ‘gestos de um homossexual’, ainda que tivesse declarado sua heterossexualidade”, exemplifica Flávia.
O empreendedor, ativista e fã de futebol André Fischer conta que, além da torcida, os jogadores podem sofrer preconceito dos próprios colegas de campo. “O preconceito [contra os atletas] vem de todos os lados, da torcida e entre os colegas também”, afirma o gerente da Hornet Brasil. Fischer é organizador da Taça Hornet, evento que teve sua primeira edição no ano passado e tem o objetivo de promover a integração de times de futebol LGBT de todo o país.
De acordo com ele, essa homofobia no futebol contra os jogadores acaba colaborando para que muitos, ao se profissionalizar, optem por não se assumir. “Pelo próprio estereótipo do esporte, os atletas têm receio de se assumir publicamente com o medo de sofrer preconceito. Pode ser mais complicado para a carreira deles”, afirma.
Ele acredita que o preconceito também pode afetar o desenvolvimento dos jogadores em seus times. “Muitos atletas poderiam ter desenvolvido uma carreira profissional. Eles não conseguem fazer isso em times comuns, mas encontram nos novos times inclusivos uma maneira de desenvolver sua total potencialidade”, diz o empreendedor sobre os times que disputam a Taça Hornet.
A homofobia na Copa do Mundo
Sobre a Copa do Mundo, a participante da Galo Queer Mara afirma que a Fifa deveria ser mais cobrada para que o espaço nos estádios fosse realmente de todos. “Como é possível realizar um evento que prega a diversidade e o respeito mútuo em um país que viola os direitos de uma parte de sua população?”, questiona Mara sobre o fato de a Rússia perseguir os homossexuais.
A torcedora ainda acha que não houve até então uma discussão efetiva sobre a homofobia no futebol. “Deveriam haver critérios mínimos para a realização de eventos importantes, como a Copa e as Olimpíadas, de maneira a utilizar a força de tais eventos para promover mudanças progressistas nos países sede”, acrescenta ela.
“A Copa está acontecendo em um país que persegue a comunidade LGBT, que tem leis específicas sobre comportamento homoafetivo, e o máximo que se viu foi a cartilha do Itamaraty, pedindo para torcedores homossexuais não demonstrarem afetividade em público na Rússia”, contesta a torcedora Flávia.
A origem da homofobia no futebol no Brasil e no mundo
Em seu estudo de mestrado, realizado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, o pesquisador Maurício Rodrigues investigou a história das torcidas gays e dos movimentos contrários ao machismo e à homofobia no futebol, mostrando que essas minorias sociais estão cada vez mais se impondo no cenário do esporte.
“É importante dizer que esses preconceitos no esporte e no futebol são reflexos de preconceitos que existem em uma sociedade heteronormativa e binarista, de homens e mulheres cis. Por esse motivo, ofensas e termos que se referem às pessoas LGBT de forma pejorativa acabam sendo incorporadas e evocadas no contexto futebolístico”, explica.
Rodrigues afirma que o futebol no Brasil consolidou-se historicamente como um reduto masculino e que por muito tempo se naturalizou a ideia de que futebol era um “jogo para homens”, até em função da proibição da prática do futebol pelas mulheres, que ocorreu entre 1941 e 1979. “Nessa exacerbação do macho, o outro, o diferente é inferiorizado, e a homofobia no futebol é uma das formas de se demarcar essa diferença”, acrescenta.
De acordo com o pesquisador, o resultado disso são os xingamentos, seja contra o juíz ou contra algum adversário, com o objetivo de feminizá-lo, de mostrar que o adversário é pior por ser “menos homem”. Ele destaca que um grande exemplo dessa realidade é o caso do “bambi”, usado por torcedores adversários para se referir de forma pejorativa ao São Paulo Futebol Clube e aos torcedores.
Essa realidade não é única do Brasil e também acontece em outros países, como evidenciado em declaração do técnico do México, Juan Carlos Osório, em entrevista após derrota contra o Brasil nesta Copa, dizendo que futebol é um jogo de homens. “Toda vez que alguém diz que o futebol é um jogo de ‘macho’ sugere também um ideal que o futebol seria um reduto do homem cisgênero e heterossexual”, diz Rodrigues.
Os movimentos contrários à homofobia no futebol
Segundo o pesquisador, na década de 1970, em meio ao contexto de efervescência cultural e política homossexual, foi que surgiram as primeiras torcidas gays, como a Coligay, do Grêmio, e a FlaGay, do Flamengo. Ele comenta que, apesar da homofobia no futebol da época, a Coligay chegou a marcar presença nas arquibancadas e foi reconhecida como uma das torcidas do time. Quanto à FlaGay, ele diz que a torcida ganhou notoriedade, mas sua presença no estádio foi proibida pela direção do time.
Ainda segundo Rodrigues, surgiram recentemente grupos e coletivos que se apresentaram como torcidas queer e torcidas livres, como a Palmeiras Livre, do Palmeiras, a Bambi Tricolor, do São Paulo Futebol Clube, e a própria Galo Queer, mas todas ainda enfrentam dificuldades.
“Por conta das ameaças simbólicas e reais, há uma dificuldade de movimentos como esses marcarem presença nos estádios brasileiros. Além disso, há também a falta de apoio dos clubes e confederações no acolhimento desses movimentos de torcedores historicamente segregados do universo do futebol”, acrescenta.
De acordo com a torcedora Mara Nogueira, a repercussão ao surgimento da torcida Galo Queer foi, apesar dos comentários negativos, muito positiva. “Pelo visto, muita gente que gosta de futebol já queria dar esse grito contra o machismo, a homofobia e a intolerância, e ficamos muito emocionados com todas as manifestações de apoio”, comenta ela.
De acordo com Mara, ainda há um caminho longo a percorrer, já que também são poucos os atletas homossexuais assumidos, mas o surgimento de coletivos tem sido importante para colocar a questão em pauta. “Alguns clubes me parecem ser mais preocupados com isso do que outros, é só ver pelas campanhas no Dia da Mulher e no Dia do Orgulho LGBT. Ainda é preciso de muito mais”, diz a torcedora Flávia.
“Até o momento, as ações da Fifa e de outras confederações têm sido muito mais no sentido de dar multas simbólicas a atitudes LGBTfóbicas nos estádios, mas não há ainda medidas mais enérgicas, que visem a eliminação dessas discriminações, como a interrupção do jogo em caso de ofensas ou a punição e a reeducação de torcedores”, acrescenta o pesquisador Rodrigues.
Para o empreendedor Fischer, a consciência de que o preconceito precisa acabar está sendo desenvolvida nos times do esporte. “Não vai ser do dia para a noite que vai acabar, mas acho que estamos no caminho”, afirma ele sobre a desconstrução da homofobia no futebol.