20 de abril de 2024

por Fernando Vieira

Publicado no site #MeRepresenta, em 2 de outubro de 2014.

homofobiaA comoção entre nós LGBTs com relação às mortes por homofobia, como a de Samuel ou João, e mesmo a comoção em relação aos suicídios como o de Reginaldo e Kaique, nos conduzem sempre a pensar acerca da emergência da criminalização da homotransfobia. Por que compreendemos que estes crimes possuem um caráter fundamentalmente homofóbico, de violência homofóbica. Nos revoltamos e protestamos quando pessoas como Levy Fidélix são capazes de dizer que gostariam de nos ter longe “em algum lugar” longe dele, da família dele, e de tudo o que o conceito de família dele representa.

A fala dele me faz pensar em campos de concentrações nazistas, me faz lembrar os Sanatórios brasileiros como o do Juquery e o de Barbacena, me faz lembrar os Leprosários, e tantas outras formas, geralmente médicas, de apartar o diferente da convivência dos “normais”. E nos perguntamos, porque ele pôde, livremente, fazer uma declaração como aquela? Porque ele causa risos na plateia quando fala?

Creio que, apesar da relevância do tema, é preciso compreender que a violência homofóbica vai muito além do ato de morte perpetrado pelo assassino. Está além do ato de morte realizado pelo suicida. Estes casos são apenas as manifestações mais extremas da homofobia, manifestações de uma homofobia que não reside na naquele ato de morte em si, mas que se constrói antes do ato de morte. O assassinato é, pois, produto da homofobia. Porque é importante refletirmos quanto a isso?

Bem, o primeiro ponto é compreender os mecanismos de apagamento do crime homofóbico e da homofobia, o apagamento, penso eu, é o processo de banalização ou relativização do crime e sua motivação, é reduzir a importância. É permitir que se perca no tempo e nas estatísticas. Portanto, penso que é preciso identificar os mecanismos de apagamento:

1-) A interpretação da homofobia como sendo apenas a violência-crime-agressão-física, ou seja, quando a agressão tem formais verbais ou “simbólicas”, não é homofobia, é outra coisa, ela é, como muitos fizeram com a fala de Levy Fidélix transformada em “opinião”, esconde-se sob o direito de dizer que não aceita. A violência se oculta, neste caso, por trás de um discurso de liberdade de expressão. Recurso usado no apagamento de muitos casos além dos casos homofóbicos, usa-se tal recurso com o racismo, usa-se tal recurso com o machismo.

2-) Diluir esta agressão no universo dos crimes passionais, relativos a condições internas da relação entre agressor e vítima, e relativos as subjetividades dos envolvidos. Desta maneira, jamais seria o crime homofóbico, fruto de uma violência sistêmica, porém sempre fruto de um desarranjo das relações afetivas entre os dois sujeitos homossexuais;

3-) Culpabilização da vítima, por estar em condição de risco, como disse o Rodrigo Constantino em relação ao João, ao dizer que morreu pois estava a fazer sexo em um terreno baldio. Ou a culpabilização da travesti que se prostitui e se “expõe” a condições de riscos, ou ainda a culpabilização do “gay”, por “ser espalhafatoso demais”, por “dar em cima de todo mundo”, ou ainda, no casos de suicídio, o famigerado “ser fraco, não aguenta brincadeira na escola”, “depressão é fraqueza”;

4-) Quando a homofobia é inegável, como no caso do homossexual queimado em um ritual de purificação de sua homossexualidade, então, a violência é subjetivada. A homofobia é transformada e atribuída apenas aos assassinos, ou seja, ela é considerada como um problema daquele indivíduo, que tem “ódio patológico por homossexuais”, ou “medo de homossexuais”.

Com base nestas quatro possibilidades de apagamento, percebemos que existem duas formas de negação da homofobia sistêmica. A primeira é o apagamento representados pela negação direta “não é homofobia” (como mencionei nos itens 1, 2 e 3); o segundo é a negação direta da homofobia sistêmica, ou seja, o assassino ou o suicida são compreendidos como responsáveis únicos pela morte do jovem homossexual. O que me faz pensar que o temor esteja em admitir “somos uma nação homofóbica”. Não admitimos, no âmbito do coletivo, da sociedade, que a homofobia estrutura nossas relações de poder.

O assassino, considerado doente e individualmente culpado, é convertido naquele que inadvertidamente revelou o que todos escondem, ou seja, que de fato existe homofobia e que ela é sistêmica e não individual, por isso tanta agilidade em “patologizar o assassino”, para negar que isso pertença ao âmbito da pólis e não da patós.

Quero que fique claro que não estou relativizando a culpa do assassino homofóbico, estou apenas considerando que a mecânica e motivação do crime homofóbico é produto de uma violência homofóbica sistêmica e aprendida. Esta é uma maneira perversa de imobilizar o combate a homofobia, individualizá-la, nos “loucos assassinos homofóbicos”, aqueles que vivem longe, que não sabemos quem é, e não sabemos quando iremos encontrar.

Em “A Realidade do Virtual”, o filósofo Slavoj Zizek classifica nossa época como “a Era Cínica”, nas quais nossas crenças são apenas pressupostos do outro, ou seja, acreditamos social e performaticamente, e não nos identificamos de fato com aquela crença ou ideologia Neste sentido o avanço das pautas de direitos humanos, e, sobretudo, o avanço das pautas LGBT, tem conduzido muitas pessoas ao cinismo politicamente correto: o que seria isso? A incapacidade de reconhecer-se enquanto “preconceituoso”, o temor da rejeição por ter preconceito. E este temor faz com que as pessoas, sabendo-se homofóbicas, expressando-se com homofobia, neguem-se sempre enquanto homofóbico. De modo que, “se existe” (e sim muitos negam a existência), ela está no “outro”.

Isso posto, torna-se evidente que há um esforço para negar a existência da homofobia. Então, me pergunto: de onde vem a aparente necessidade de negação da homofobia? É quando me recordo da criação, no século XIX, como relata Michel Foucault, do termo homossexual como o outro patológico, e mesmo antes, com termos como: invertidos ou sodomitas.

Há a necessidade de marcar o homem homossexual (neste texto me refiro principalmente a homossexualidade masculina), ou ainda, e talvez contraditoriamente para serem unidos no mesmo parágrafo, o que nos diz o filósofo Guy de Hocqueguehem ao mencionar (e criticar) a “teoria freudiana” do espelho: “ataco no outro, no homossexual, minha própria homossexualidade”. Como Guy bem elucidou, não é a “homossexualidade do homofóbico que é atacada como num espelho” e sim, o rompimento da “norma” que aquela homossexualidade revela. O rompimento da norma e a destruição de um número de crenças e valores que estruturam a maneira como lido com o real, ou seja, o ato de homofobia, quando convertido em ato de violência física, é também o ato de destruir o elemento desestruturante da fictícia e arbitrária norma da heterossexualidade.

Com isso quero afirmar que a homofobia estrutura as relações entre os homens heterossexuais. A homofobia é o suporte da heterossexualidade, enquanto regime de poder. Neste caso é preciso que eu esclareça. Como a homofobia “sustenta” a condição de poder da heterossexualidade masculina? Simples: diferenciando a homossexualidade e homoafetividade da homofilia.

Estereotipar o gay, marcá-lo, persegui-lo, irá distinguir o agressor. Ele dirá e evidenciará “eu não pertenço àquele grupo”, e isso o libera para viver a homofilia, ou seja, o libera para viver a proximidade e intimidade das relações de amizade entre homens. Deste modo, ridicularizar o “gay” na sala de aula é libertar-se para participar dos ritos de masculinidade nas brincadeiras de vestiário. Nas brincadeiras de “agarra”, nos abraços nos jogos de futebol. Marcar o outro é também a ação de distinguir-se dele. Com isso percebemos a homofobia como um perverso fator de sustentação da intimidade masculina, assim como todo o processo de guetificação do homossexual por meio de boatos e etc.

Recentemente um amigo heterossexual me disse “sempre me convidam para masturbação coletiva, assistir filme pornô e ficar se masturbando”; eu disse “uma pena que nunca me convidaram para isso”; então ele respondeu: “acho que não convidam gays para isso”. Essa frase me foi extremamente reveladora. A presença de um homossexual, no compartilhar desta intimidade, poderia poluir toda a heterossexualidade presente naquele espaço.

É sempre importante lembrar que a sustentação da heterossexualidade masculina, enquanto regime de poder, está profundamente associada a sustentação do poder patriarcal, afinal, o homem do patriarcado não é afeminado, não é gay. Ele é homem e heterossexual.

Quero então que percebamos que a homofobia precisa ser combatida, não apenas nos atos de morte, mas enquanto ordem sistêmica, ou como diria Zizek, enquanto violência sistêmica.

Qualquer regime de poder precisa de elementos que o estruturem, a homofobia compõe e sustenta o regime de poder da heterossexualidade. Regime este que, bem sabemos, é inaugurado a partir da concepção natalista, tão bem exposta pelo Levy Fidélix “órgão excretor não reproduz”. Entretanto, a homofobia não se associa apenas a atual incapacidade reprodutiva das relações homossexuais (afinal, sexo anal hétero e sexo com camisinha não reproduzem), mas na necessidade de sustentar um estado de coisas.

Os risos em relação a fala de Levy Fidélix e a possibilidade de isso ser dito em rede nacional sem punição é exemplo do cinismo. Tolera-se socialmente a homofobia, pois é um elemento estruturante.

Quero dizer aos meus amigos heterossexuais que esta não é uma crítica a vocês, não personalizo a homofobia e não a diluo em atitudes individuais. Minha crítica é a heteronormatividade, ou seja, aquele regime de poder que define como “normal” “aceitável” e “natural” apenas as relações heterossexuais. E marginaliza e patologiza as demais possibilidades de manifestação do desejo.

Não adianta a comoção por esta ou aquela morte individualmente. É preciso por em questionamento todo o sistema cis-heteronormativo, do contrário a comoção será tomada pelo cinismo e convertida em instrumento de perpetuação da própria ordem homofóbica, como quando, por exemplo, candidatos claramente homofóbicos aproveitam-se da pauta para angariar votos. Nossa luta e questionamento não pode se resumir a criminalização da homofobia, deve ser uma luta de resistência somática contra a própria norma heterossexual. Não há possibilidade de assimilação.

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