Por Rod
Publicado no blog Temporada de Pensar, em 22 de dezembro de 2015
Relutei em escrever esse texto. Primeiro porque não quero correr o risco de soar como aqueles trogloditas que estigmatizam as comunidades minoritárias. Segundo porque o propósito da minha escrita não é ofender ninguém. Desejo questionar ideias e não pessoas. No entanto, penso que precisamos, enquanto nação, discutir o movimento evangélico, que vem mudando drasticamente não só o perfil religioso do Brasil, como também seu perfil societário e comportamental. Conforme o país adota cada vez mais o evangelicalismo como doutrina religiosa, bancadas conservadoras crescem nos espaços de formulação de políticas públicas, tensões religiosas entram em estado de ebulição e o discurso do senso comum se torna cada vez mais intransigente com quem é visto como pecador — não raro são pessoas que já se encontram a margem da sociedade como indígenas, homo e transsexuais e usuários de drogas.
Em 2015 o Congresso mais conservador desde a redemocratização tomou posse e, junto com ele, um número inédito de deputados evangélicos. Logo em seguida, foi eleito o também evangélico Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para a presidência do Poder Legislativo nacional. Cunha e a maioria dos deputados evangélicos — um exceção notável é a também carioca Benedita da Silva, do PT — defendem, por um lado, projetos de lei que dão mais liberdade à atividade econômica (lei da terceirização) e, por outro, restringem as liberdades individuais (fim do acesso à pílula do dia seguinte no SUS e do reconhecimento de famílias formadas por casais homoafetivos). Isso demonstra o quão o evangelicalismo brasileiro é alinhado ao americano, para o qual o sucesso financeiro seria uma dádiva de Deus àqueles que creem nele. Isso só não explica porque a maioria dos moradores de rua são cristãos e não ateus.
O Tea Party, embora não seja oficialmente um movimento político de cunho evangélico como o Revoltados Online, atua no mesmo sentido. Defende o fim do intervencionismo do Estado na economia enquanto enche o Congresso americano de políticos evangélicos como Carly Fiorina e Ben Carson, que são brilhantes ao questionar os direitos das minorias, mas omitem-se em questionar os escandalosos benefícios dos mais ricos. Ambos são pré-candidatos á presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano. O neurocirurgião Carson seria o rosto de uma nova direita: apesar de ser negro, é conservador no campo dos costumes e liberal na economia. Uma tentativa de reaproximar os negros do partido que, num passado distante, libertou-os da escravidão. Contudo, a maioria deles apoia os pré-candidatos democratas Hillary Clinton e Bernie Sanders. Carson é visto como um negro que deu sorte e agora representa a minoria rica como ele e não os negros do gueto.
Apesar de sua retórica da meritocracia, da qual seria um exemplo vivo, o candidato desagrada aos negros menos por defender a plutocracia e mais por ser percebido como um fanático religioso, que chegou até mesmo a contradizer arqueólogos para sustentar sua fé. Os evangélicos, após anos propagando o ódio contra os grupos mais excluídos da sociedade americana na política, conseguiram se tornar politicamente inviáveis. Mesmo tendo sido os principais responsáveis pela vitória de Ronald Reagan na eleição presidencial de 1980, hoje são a parcela da população que mais desperta a desconfiança do eleitorado em geral. Um quarto dos eleitores americanos — que são, em sua maioria, protestantes (21,2%), católicos (20,8%) e não-religiosos (22,8%) — afirma que não votaria num candidato evangélico para a presidência da República. Só não conseguiram os muçulmanos, os ateus e os socialistas em rejeição.
No Brasil, no entanto, o movimento evangélico ainda está em trajetória ascendente, embora, penso eu, figuras polêmicas como Silas Malafaia, Edir Macedo, Valdemiro Santiago, Marco Feliciano e o próprio Eduardo Cunha contribuem para a saturação do mesmo. Aqui em nosso país convencionou-se, por ignorância e preconceito, chamar todo e qualquer cristão que não fosse católico de “evangélico”, o que distorce o real número de adeptos do evangelicalismo. As denominações luterana, anglicana (da qual faço parte), presbiteriana, metodista e batista em nada se assemelham à leitura do Evangelho proposta pelas igrejas evangélicas. Como o próprio nome sugere, trata-se de uma tentativa de fazer uma leitura mais literal da palavra de Cristo. Buscam seguir os primeiros cristãos — que na verdade eram judeu-cristãos, pois não haviam rompido por completo com o rabinato —, como se fosse possível aplicar as normas sociais vigentes em Israel do século I no Brasil de vinte séculos depois.
A tentativa de “purificar” o cristianismo, de fazê-lo retornar a suas raízes, gera anomalias sócio-comportamentais. A repressão sexual imposta pela moral cristã evangélica consegue a façanha de ser ainda pior do que a católica. Porque a interpretação deles diz que Jesus era contra a homossexualidade e o amor livre, querem impor essa interpretação para todos. Desejam impor ao Brasil a sharia cristã. Quem nunca ouviu um fiel evangélico dizer que a Bíblia é mais importante do que a Constituição? É muito cômodo apontar os horrores do Daesh (ISIS), que deseja criar um Estado Islâmico entre a Síria e o Iraque e fecharmos os olhos para o projeto de poder semelhante de alguns líderes evangélicos. Os militantes islâmicos são loucos por se sujeitarem a uma dinâmica social onde o prazer é pecado e a vida limita-se a observar as leis de Deus escritas por homens há milhares de anos. Mas só os islâmicos, os evangélicos radicias não?
Graças a Deus, nem todo evangélico é assim. A rejeição a estudos, análises e interpretações da palavra de Deus à realidade concreta dos fiéis não ocorre em todas as igrejas evangélicas, assim como nem todos os seguidores de Maomé desejam subjugar os seguidores de outras religiões. Da mesma forma que há uma ímã mulher em Los Angeles, há pastores evangélicos gays. Nem todo evangélico crê na necessidade de se engajar numajihad (guerra santa) contra os valores que percebem como contrários à palavra de Deus para propagar o Evangelho de Jesus Cristo. No entanto, são as figuras mais barulhentas, odientas e explosivas que chamam mais a atenção da população em geral para o movimento evangélico. Por que entrevistar um teólogo esclarecido como Ricardo Gondim se o pregador do ódio Silas Malafaia dá mais ibope? A imprensa também tem sua parcela de culpa na proliferação do discurso de ódio entre os evangélicos.
Mas a quem serve um Evangelho que oprime as criaturas de Deus? De que adianta seguir o carpinteiro humilde da Galileia que salvava adúlteras do linchamento e condenava o acúmulo de riquezas se hoje aplaudimos o homem que espanca a esposa infiel pega no motel com outro e valorizamos os bens materiais mais do que nossas próprias vidas? A Reforma Protestante, sem a qual nenhuma dessas igrejas existiriam, surgiu da revolta contra a mercantilização da fé e também contra as doutrinas, regras e normas inexistentes na Bíblia inventadas pelos bispos de Roma — tais como o celibato de sacerdotes, a proibição do divórcio e a virgindade perpétua de Maria. E, por falar em Maria, é interessante notar que a repressão religiosa recai sempre de forma mais severa sobre os corpos femininos. Não foi à toa que 15 mil mulheres marcharam na Avenida Paulista contra o projeto de poder de Eduardo Cunha, que não prevê o aborto em casos de estupro.
A alguns líderes evangélicos não basta orientar suas próprias fiéis quanto à questão reprodutiva. Querem regular os corpos de todas as brasileiras, sejam elas católicas, protestantes, espíritas, judias ou ateias. O Brasil deve retroceder vários anos enquanto nação e se livrar da pílula do dia seguinte e do aborto. Não porque a comunidade científica regulou que são invasivos. Mas porque uma parcela minoritária da comunidade religiosa nacional se incomoda com tais métodos que, embora invasivos, evitam o nascimento de crianças que podem ser abusadas, maltratadas e abandonadas por mães que não lhes queriam, o que traz consequências desconhecidas para a coletividade. Interessante notar que a violência sexual contra as mulheres propriamente dita — motivos pelos quais o SUS distribui pílulas do dia seguinte e realiza abortos — parece não incomodar esses líderes religiosos. Condenam mais o aborto do que o estupro que leva as mulheres a procurar tal procedimento.
A liberdade de culto garantida por nossa Constituição federal não é absoluta. Um conceito interessante do Direito é que nenhum direito termina em si mesmo e pode se sobrepor sobre os demais. É o famoso “o meu direito acaba quando começa o do outro” no ditado popular. O cidadão pode escolher, sem moléstia, se quer seguir uma religião. Mas ele não pode querer impor sua religião sobre as religiões dos demais cidadãos. A partir do momento em que líderes religiosos passam a decidir o que professores devem ensinar na sala de aula, que medida o SUS deve adotar para atender mulheres vítimas de estupro e quais arranjos podem ser considerados famílias, observa-se uma invasão do Estado laico por forças religiosas, estranhas ao Direito. Tais forças atuam em defesa da visão de mundo de apenas alguns em detrimento da coletividade, ampla e plural.
Aos poucos, o evangelicalismo embrutece o Brasil. Seus líderes radicais querem substituir a defesa do bem estar — seja de mulheres vítimas de estupro ou de crianças que podem ganhar um lar com um casal gay — pela interpretação que a igreja deles fazem do Evangelho. Interpretação essa que não é consensual nem mesmo entre os teólogos. Ao contrário da Constituição, a Bíblia admite várias interpretações. Na minha igreja, por exemplo, entende-se há mais de 15 anos que Jesus não rejeitou os homossexuais. De fato, não há uma menção sequer à homossexualidade em nenhum dos quatro Evangelhos — há em escritos posteriores, de autoria de homens que, ao contrário de Jesus, eram falíveis, e em escritos anteriores, como o Levítico, que o próprio Jesus violou. Por que então é a visão da Assembleia de Deus e não a da Igreja Episcopal Anglicana que deve ser ecoada na legislação brasileira? O Estado ser laico significa que ele deve respeitar ambas as visões, e não colocar uma acima da outra, observando sempre o princípio maior que é a garantia da dignidade humana.
O que interfere na vida de um evangélico se há membros de outras doutrinas religiosas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo e abortam? Ora, se eles acreditam que a homossexualidade e o aborto são pecados, que não cometam nem um nem outro. Devem respeitar os outros como eles os respeitam. Duvido que um militante gay ou feminista se julgaria apto a ensinar o padre a rezar a missa, ou melhor, o pastor a celebrar o culto. A tentativa de impor um único ponto de vista sobre os demais, sobretudo através da violência, seja ela simbólica (episódio do chute na santa ou quando Malafaia disse que gays mereciam apanhar) ou real (agressões a praticantes de religiões afro e destruição de seus templos), é o primeiro passo rumo ao fascismo. Cabe a nós, cristãos moderados, lutar contra o embrutecimento que impõem ao Brasil. Devemos agir enquanto é tempo, porque o que os radicais querem não é se livrar do pôster exposto nos corredores da Câmara que mostrava Daniela e Malu se beijando. Eles querem é se livrar delas!
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