18 de abril de 2024

Gilmaro Nogueira

Publicado na coluna Cultura e Sexualidade do portal iBahia, em 6 de março de 2014

orgulhoheteroApós ler as chocantes notícias do pai que matou o seu próprio filho Alex porque ele não se comportava como um homem, tive vontade de retomar um tema que já foi bastante tratado aqui no blog. Esse e outros casos mostram o quanto ainda é necessário evidenciar como a heterossexualidade é obrigatória sobre todos nós e, caso não nos comportemos como prevê a norma, corremos o risco de sermos assassinados, inclusive por nossos pais, aqueles que figuram na imagem da sagrada família que nos protege.

Quando realizo alguma palestra ou oficina sobre sexualidade, começo refletindo sobre  questões de identidade posicionando-a como uma construção humana. Rapidamente as pessoas entendem que, a partir de algumas características corporais, a cultura constrói identidades, separa grupos e produz hierarquias.

Embora nossa pele tenha diferentes cores, formatos, etc, a cultura inventou a ideia de raças, que separa e hierarquiza os homens e confere à branquitude uma série de privilégios. Se cada um tem uma pele diferente, na cultura os sujeitos são enquadrados como negros ou brancos. O mesmo com a questão do gênero, isto é, embora cada um de nós combine masculinidade e feminilidade de uma forma diferente, a cultura nos enquadra num único gênero entendido como oposto ao outro e puro em si mesmo.

Após essas explicações: como a cultura toma a diversidade e pluralidade e transforma-nos em uma única categoria em oposição a outra – as pessoas entendem que toda identidade, categoria é uma produção cultural que separa e hierarquiza. Mas ao afirmarem que a identidade é construída questiono se a heterossexualidade é também construída ou se as pessoas nasceram heterossexuais. Os sujeitos entram em um momento de conflito de ideias, por acreditar que a identidade é construída, mas sua heterossexualidade é natural.

A contradição: toda identidade é construída, mas minha heterossexualidade é natural, coloca os sujeitos numa encruzilhada ou diante de uma crença – o mito que todos nascemos heterossexuais e de que algo desvia alguns sujeitos. Percebo também que quase nenhum dos sujeitos se perguntou o que é a heterossexualidade e o que a produz, pois são ensinados que é assim que se nasce – uma condição.

Desconstruir a heterossexualidade como uma identidade natural não é um empreendimento dos tempos atuais, nem se trata, como alguns pensam, de um intento do movimento LGBT (que, aliás, de uma forma geral, no Brasil, nem faz isso), mas algo que já foi feito por diversos saberes.

É surpreendente quantas pessoas leram Freud e não questionaram a heterossexualidade. A psicanálise, no entanto, não concebe a heterossexualidade, a homossexualidade, o ser homem ou mulher como natureza humana. Freud adverte que é preciso não ceder a anatomia dos corpos, isto é, não devemos buscar uma verdade no corpo, nas genitálias, para o ser homem ou mulher. Não compete assim, diz Freud, dizer o que a mulher é, mas o que vem a ser na cultura.

Ainda na psicanálise não se concebe que alguém nasça mulher ou homem, heterossexual ou homossexual, mas que nos posicionamos em algum desses lugares através de identificações inconscientes, com os genitores, através do complexo de édipo. Quando discuto o édipo e a heterossexualidade como uma posição produzida após a saída desse complexo, algumas pessoas ficam surpresas, como se eu tivesse inventando algo novo.

Nos estudos antropológicos discute-se que aquilo que achávamos que era natural ou inato é, na verdade, cultural. Ao se deparar com o outro, o diferente, os primeiros antropólogos os classificaram como “selvagens”, primitivos e poucos humanos ou anormais. Com o tempo esse outro mostrou que nossa humanidade é apenas um modo de humanidade, e que há outras formas, modelos de vivenciar costumes, crenças e sexualidades. Esse mesmo conceito pode ser utilizado para entender que a heterossexualidade é apenas uma forma de sexualidade.

Diversos estudos antropológicos, hoje, evidenciam o caráter cultural e contextual das identidades heterossexuais e homossexuais, evidenciando que em diferentes contextos esses termos têm sentidos diferentes. Atos sexuais idênticos têm sentidos diversos, e assim evidencia-se que as identidades sexuais são inventadas, contextualizas e recontextualizadas, plurais e diversas e que não são estáveis e naturais.

Estudos sociológicos, de psicologia social e estudos culturais têm evidenciado o caráter contextual e social das identidades. Quando pensamos a heterossexualidade, no entanto, desconsideram-se esses estudos.

“Que provas científicas há de que não nascemos heterossexuais?”, perguntou  uma aluna. Eu sempre evidencio os saberes citados acima, mas o mito da heterossexualidade e do ser homem e mulher como essências parecem ser mais fortes e legítimos sob o qual se erigiram as identidades dos sujeitos. Sem falar de uma longa tradição de não questionar o que socialmente foi considerado como única forma normal de identidade.

Dizer que não nascemos heterossexuais ou homens não significa dizer que nós aprendemos voluntariamente a ser isso ou aquilo. Digo isso porque algumas pregações religiosas tendem a supor que nascemos heterossexuais e que a homossexualidade ou qualquer outra forma de vivência sexual se aprende pela influência da cultura. Não escolhemos voluntariamente o que queremos ser, mas nos identificamos, também inconscientemente, com determinadas posições, numa cultura que concebe as categorias como duais e opostas. Isso acontecia com Alex, assim como aconteceu e acontece com todos nós, sejamos LGBT ou não.

Acreditar que nascemos alguma coisa traz um conforto que não escolhemos, que somos naturais e normais ou, em última instância, não somos culpados por alguma posição socialmente desvalorizada. Muitos sujeitos inclusive afirmam a homossexualidade como natural, essência presente antes do nascimento. Colocar a homossexualidade como natureza humana equiparando-a ao mito da heterossexualidade originária não permite contudo criticar as hierarquias produzidas na cultura, além de deixar de fora diversas outras formas de vivência da sexualidade, pois não há lugar para todos na concepção de sexualidade natural.

De certo modo, os sujeitos, ao afirmarem: “nasci homossexual, não foi uma escolha”, parecem dizer: “não tenho culpa, nasci assim”. A desvalorização cultural de algumas formas de sexualidade empurra os sujeitos para uma busca de uma natureza humana, em vez de problematizar que somos o que somos na cultura que transforma características corporais em agrupamentos e hierarquizações.

E assim vamos criando e recriando nossos mitos e talvez um dos mais fortes deles é o de que nascemos heterossexuais, homem ou mulher. Mito que sustenta as hierarquias e é desfavorável a não-heterossexuais e não-homens. Mito não sustentado pela psicanálise, estudos antropológicos, sociológicos, culturais, feminismos e estudos  queer.

Para saber mais leia os textos de Leandro Colling: Por que a  heterossexualidade não é natural?.

Agradecimentos em forma de beijinhos a Colling que cooperou com esse texto.

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