12 de dezembro de 2024
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A educadora socioeducativa Thaís de Azevedo, de 66 anos. Foto: Guilherme Santana/VICE

A educadora socioeducativa Thaís de Azevedo, de 66 anos. (Foto: Guilherme Santana/VICE)

Por Débora Lopes
Publicado pelo portal Vice, em 9 de março de 2016

Nascida numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, próximo ao encontro do Rio das Velhas com o Rio São Francisco, Thaís de Azevedo não podia imaginar que viajaria o mundo fazendo trabalho voluntário, se formaria como técnica de enfermagem e falaria quatro línguas. Durante a juventude, trabalhou como vendedora em um shopping da cidade de São Paulo. Quando as colegas de profissão descobriram que Thaís era travesti, fizeram um abaixo-assinado para que ela fosse demitida. Hoje, aos 66 anos, ela conta sua história com orgulho. Ainda que, para se sustentar e bancar os estudos, tenha enfrentado o mundo da prostituição em alguns momentos da vida.

“Eu sou uma pessoa que não é nem uma mulher, nem um homem”, relata durante a entrevista para a VICE. O que pode dar um nó na cabeça de muita gente, é simples para Thaís, que atualmente trabalha como educadora socioeducativa do CRD (Centro de Referência da Diversidade), no centro de São Paulo. “A travesti é uma performance na cabeça das pessoas. Não há nada de estranho comigo. A única coisa estranha que há é o olhar ignorante das pessoas.”

A expectativa de vida do brasileiro é de 75,2 anos de acordo com dados divulgados pelo IBGE em 2014. Já Pedro Sammarco, doutor em psicologia social e mestre em gerontologia pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), estima que expectativa de vida das travestis é de 35 anos. Esses números remetem ao estilo de vida marginalizado de boa parte delas. “Elas acabam indo para a marginalidade porque o sistema não as acolhe”, ele justifica.

Para Thaís, a infância é o grande divisor de águas na vida de qualquer pessoa LGBT. “As travestis da minha geração tiveram muita dificuldade de acesso ao que quer que seja. São pessoas que, na tenra infância, foram relegadas à obscuridade, à inexistência. Ninguém quer dar vida e permitir vida à pessoas que não sejam heterossexuais.”

A maneira com a qual os trejeitos e as preferências da criança é vista pelos adultos também pode interferir, acredita Thaís. “Quando incluem a questão da sexualidade, as pessoas deixam de olhar pra você como criança e olham pra você como uma pessoa má, inadequada, uma pessoa a ser eliminada. E, aí, existem mil mecanismos pra te eliminar. São todos subentendidos, são todos muito perversos.”

O psicólogo concorda e explica que, na maioria das vezes, as travestis, quando crianças, são meninos afeminados – o que dificulta o diálogo familiar ao longo dos anos. “Geralmente, elas não são aceitas na família. Aí tem a coisa do bullying na escola. Então, elas acabam não conseguindo estudar e vão para os grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro.”

O empurrão que as leva para a prostituição também pode ser justificado por isso. Sem qualificação ou estudo, resta o corpo como alternativa. “E elas fazem um investimento muito grande naqueles corpos. Silicone, tratamentos hormonais. E, como ainda existem poucos lugares que dão apoio a esse processo de transformação, muitas fazem de forma clandestina.” Pedro cita o caso do silicone industrial, artefato muito popular para “bombar” o corpo e que pode levar à morte.

Em 2015, a travesti Scheylla Mychelly teria morrido após aplicar 1,5 litros de silicone industrial nas nádegas. Ela supostamente havia comprado o produto na internet por R$ 200 e pedido que uma amiga realizasse a aplicação.

A prostituição soa mais como caminho de sobrevivência do que como escolha. “Qual é a vida que a travesti pode ter? É o submundo. É o mercado do corpo”, afirma Thaís. “No mercado do corpo, tem todo tipo de mercado que não deveria existir; que desvaloriza, que desqualifica o ser humano. Prostituição, troca de favores, drogas. O ilícito; crimes, roubo. E aí, você vai sendo espoliado de tudo.”

Para Pedro, as drogas surgem no meio de um turbilhão de acontecimentos como medida paliativa. “Elas sentem muita tristeza. Acabam se envolvendo com drogas pra aguentar o baque.” O lado emocional também não ajuda. De acordo com o especialista, elas têm problemas forte de rejeição, sofrem de depressão e se sentem muito sozinhas. “Querem um marido, mas é difícil porque o marido também vai ter de enfrentar toda essa barra por ela ser travesti”, ele justifica.

Thaís, que já foi casada, não quer um marido. “Sou muito mundana – sexualmente falando. Preciso ser livre. Acho que casamento é uma coisa muito perigosa. Sou casada com a vida.”

O psicólogo compara, fisicamente, a prostituição na vida da travesti com o futebol na vida do atleta. “Chega uma certa idade em que o corpo já não tem o mesmo rendimento”, detalha. Por isso, parte delas acabam se tornando ‘bombadeiras’, profissionais que cobram para aplicar silicone nos corpos das outras, ou até mesmo cafetinas. Algumas travestis mais velhas são chamadas pelas mais novas de “mães”, já que são elas que ensinam as novatas a como se portar no mundo da prostituição.

A violência é outro empecilho para a longevidade das travestis, que, pelas ruas, se submetem ao desconhecido. Principalmente no Brasil, país que mais mata travestis e transexuais no mundo. De acordo com um estudo divulgado pela ONG Transgender Europe (TGEU), entre 2008 e 2014, foram registradas 604 mortes no país.

Uma trajetória considerada “de sucesso”, de acordo com Pedro, são as das travestis que conseguem ir para fora do país levantar uma grana e depois voltar para o Brasil. “Muitas vão pra Europa, principalmente para a Itália porque ali elas ganham muito dinheiro.” É lá, também, que conseguem montar o corpo que desejam.

Thaís, que viveu na Itália, na Alemanha e na França, trabalhou como voluntária para uma ONG que cuidava de pessoas com HIV em estado terminal. Para bancar os cursos que fez, como o de moda, teve de recorrer ao próprio corpo. “Eu me prostituía e pagava os meus estudos. Sempre estudando e lendo muito. Mas acho muito lamentável a pessoa se prostituir. Acho muito doloroso”, pondera.

O debate sobre a marginalização da comunidade LGBT, principalmente de travestis, transexuais e transgêneros, tem sido ampliado nos últimos anos. Em São Paulo, a Prefeitura lançou no início de 2015 o programa Transcidadania, que oferece uma bolsa de R$ 940 mensais condicionada à regularidade nos programas escolares e profissionalizantes.

Para o psicólogo social, que assume ter sentido preconceito pelas travestis até o momento em que passou a estudá-las e entrevistá-las, “quem é travesti na velhice é uma verdadeira sobrevivente”.

Thaís, que se diz reencarnacionista, adora Nietzsche (“já li Assim falou Zaratustra até em francês pra ver se ficava mais fácil, mas ficou mais difícil”), ouve ópera (sua preferida é, óbvio, Thaïs, de Jules Massenet) e em breve irá completar 67 anos, diz não ter medo do que um dia virá. “Envelhecer é o prenúncio de um descanso, de um final. Não tenho mais medo de morrer. Tenho até uma certa curiosidade.”

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