Propostas de acabar com cirurgias para fins estéticos foram aprovadas na 17ª Conferência Nacional de Saúde
Jess Carvalho
Publicado pela agência de notícias Diadorim, em 18/09/2023
“Eu passei por uma mutilação na infância”, lamenta a jornalista e ativista intersexo Céu Ramos, 32 anos. Ela tem o cromossomo XX e o sistema reprodutor feminino, mas nasceu com o que a literatura médica chama de “genitália ambígua”.
Céu foi criada como menina, mas diz que na pré-adolescência começou a se sentir confusa sobre o próprio corpo. “A mutilação me causou muita perda de sensibilidade, muita dor, infecções urinárias recorrentes e falta de lubrificação.”
Aos 17 anos, ela passou por uma nova cirurgia, desta vez porque assentiu. Depois dela foram outras cinco. “Todas essas seis cirurgias foram para tentar reverter a mutilação, mas não teve como e ao longo do tempo acabou piorando. A estética da genitália, quanto mais mexe, pior fica”, conta.
Durante esse processo, Céu se descobriu como pessoa intersexo e passou a fazer ativismo para compartilhar informação e conscientizar, por meio das redes sociais, outras famílias a não permitirem que suas crianças sejam “mutiladas”.
“Eu acredito que, no Brasil, estamos caminhando para a proibição total dessas cirurgias, e isso vai dar muito mais resguardo para as crianças intersexo poderem crescer e definir sobre quem elas querem ser, escolhendo suas orientações sexuais e identidades de gênero sem essa imposição binária do Estado”, fala.
Céu se refere principalmente a duas propostas históricas para a população intersexo brasileira aprovadas 17ª CNS (Conferência Nacional de Saúde), que ocorreu em Brasília. Ambas afirmando a urgência de dar fim às cirurgias para fins estéticos em crianças intersexo. Os textos servem de “aconselhamento” para o Ministério e outros órgãos da Saúde, que podem transformar essas propostas em políticas públicas.
Processo
Atualmente, o protocolo majoritário da saúde é seguido sob a orientação da Resolução 1.664/2003, do CFM (Conselho Federal de Medicina), que determina a realização de cirurgias em crianças intersexo, considerando a condição como uma “urgência biológica e social”. Movimentos sociais, porém, discordam do CFM.
Mila Torii Corrêa Leite, professora de cirurgia pediátrica da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), afirma que raramente há necessidade de realizar cirurgias no período neonatal em bebês intersexo, exceto quando há problemas urológicos associados, no entanto, esses procedimentos são feitos com frequência, seguindo a recomendação do CFM.
“Não há nenhuma urgência para a realização de cirurgias genitais estéticas. Essas decisões cirúrgicas precisam ser discutidas por uma equipe multiprofissional envolvendo a família após a adequada investigação das condições clínicas. Qualquer cirurgia apresenta riscos inerentes ao próprio procedimento, mas aquelas que envolvem a retirada de estruturas (corpos cavernosos), como ocorre na reconstrução genital feminina, são irreversíveis”, destaca a especialista.
A Abrai (Associação Brasileira de Intersexos) recomenda que sejam realizados apenas procedimentos cirúrgicos fundamentais para a saúde da criança, da maneira menos invasiva possível, com o objetivo de garantir que a pessoa intersexo possa escolher sobre o próprio corpo quando tiver o discernimento para fazê-lo.
“Acreditamos que a aprovação das propostas na Conferência Nacional de Saúde representam uma importante voz da sociedade que busca chamar o CFM, tão arredio ao diálogo, para que dialogue com o movimento social e outros profissionais da saúde, bem como seus conselhos, no sentido de compreender um outro caminho a respeito do acolhimento e cuidados em saúde quando pensamos em corpos intersexo”, diz o advogado e co-fundador da Abrai, Walter Mastelaro Neto.
Segundo o profissional, a ideia de que pessoas intersexo constituem uma “urgência biológica e social” leva profissionais de saúde a criarem, de maneira equivocada, um manto de sigilo sobre a condição intersexo, inclusive deixando de registrá-la.
“Entendemos que não apenas as cirurgias, quando realizadas de forma precoce, podem resultar em danos irreparáveis, como a própria ideia de ‘urgência social e biológica’ é danosa ao criar um senso de urgência muitas vezes desnecessário e impedir que pessoas intersexo tenham pleno acesso à sua história e possam decidir sobre a integridade de seus corpos”, fala a liderança da Abrai.
Ainda não há levantamentos de quantas pessoas intersexo vivem no Brasil. De acordo com dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, 104.557 nascidos vivos foram registrados com o “sexo ignorado”, entre 2014 e 2021, número que representa 1,6% do total de bebês registrados no período. Em 2017, o Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) estimou que entre 0,5 e 1,7% da população mundial é intersexo – o que pode significar até 3,5 milhões de brasileiros.
Aprovação democrática
A Conferência Nacional de Saúde é construída em etapas municipais, estaduais e nacionais. A cada etapa são eleitos delegados, que têm a responsabilidade de representar aquele núcleo na etapa posterior. De modo geral, essas pessoas são profissionais da área da saúde e/ou representantes da sociedade civil organizada.
De acordo com Walter Mastelaro Neto, as propostas CN-E3000616 e CN-E4000225 foram pautadas e aprovadas durante a 1ª Conferência Livre Nacional de Saúde de Pessoas LGBTIAPN+, promovida pela Abrai, em maio, em parceria com outras entidades do segmento. Depois, elas voltaram a ser discutidas e votadas por 3.526 delegados na plenária final da 17ª CNS.
Na versão preliminar do relatório consolidado do evento, a primeira proposta aparece no Eixo Temático 3, intitulado “Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia”. “Incluir/articular decretos federais sobre impedimento de realização de cirurgias genitais com fins estéticos em crianças intersexo, bem como campanhas amplas a profissionais de saúde e à população contra a patologização e a invisibilidade de pessoas intersexo nos serviços de saúde”, sugere o texto.
No Eixo 4, “Amanhã vai ser outro dia para todas as pessoas”, a proposta é “proibir a realização de cirurgias genitais com fins estéticos em crianças intersexo e realizar campanhas contra a patologização e a invisibilidade de pessoas intersexo nos serviços de saúde e na sociedade em geral.”
Violação de direitos
Quando Jacob nasceu, a psicanalista Thaís Emília, 44 anos, já sabia que seria mãe de uma criança intersexo, cuja “genitália ambígua” havia sido identificada no ultrassom. Após o parto, um dos médicos da família sugeriu que fossem realizados exames genéticos e cirurgias estéticas para afirmação do sexo. Em outras palavras, se a criança fosse XX receberia uma vagina, e se fosse XY, um pênis.
Desconfiada, a mãe foi em busca de uma segunda opinião. “A segunda equipe médica argumentava que essas cirurgias tinham que esperar pelo menos a juventude ou a vida adulta, então a gente se identificou mais com a questão do esperar”, conta.
Assim começou a militância de Thaís, uma das fundadoras e atual presidenta da Associação Brasileira de Intersexos. Hoje, a organização acompanha centenas de pessoas intersexo, e diferente de Jacob, muitas delas tiveram seus corpos mutilados quando não podiam escolher.
“A nossa demanda é muito grande, vai desde crianças que foram operadas e está tudo bem até crianças que foram operadas e têm sequelas, crianças que foram operadas e depois houve arrependimento por parte da família ou da própria pessoa. Crianças com incontinência fecal, urinária, que tiveram a bexiga amputada. Adolescentes pressionados a operar que, quando adultos, não puderam ter filhos”, relata.
Em 2023, a Abrai atendeu uma mãe ameaçada de perder a guarda do filho de cinco meses por não autorizar uma cirurgia. “A equipe médica estava pressionando tanto essa mãe a ponto de dizer que se ela não autorizasse, eles acionariam o Conselho Tutelar. A Abrai teve que intervir, junto ao Conselho Tutelar, porque quem estava gerando violência contra a infância era a equipe médica”, afirma a presidenta.
Disputas como essa, na visão da organização, violam os direitos humanos da criança e de sua família, pois, segundo o advogado Walter Mastelaro Neto, “todo sujeito deve ter sua integridade física, psíquica e dignidade humana respeitadas”.
“A gente tem que respeitar as crianças e entender que elas também são sujeitos de suas vidas. Quem vai viver naquele corpo é aquela criança, por isso a gente defende que cirurgias devem ser vistas com total responsabilidade e avaliando todo o contexto biopsicossocial e cultural da família”, fala Thaís Emília.
Avanços
Países como Malta, Kenya, Uruguai, Albânia e Portugal já garantem legalmente a pessoas intersexo sua autonomia e integridade corporal. Países como Austrália, Nova Zelândia, Áustria, México e Argentina reconhecem a intersexualidade como gênero.
O Brasil avança a passos lentos. Desde 2021 o Conselho Nacional de Justiça prevê que bebês intersexo podem ser registrados com o “sexo ignorado”. O provimento visa garantir que essas crianças tenham documentos e, com isso, possam acessar o SUS (Sistema Único de Saúde) e outros direitos.
Em 2022, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo publicou uma nota técnica orientando os profissionais a não realizarem atendimentos de pessoas intersexo sob um viés patologizante, inspirando o Conselho Federal de Psicologia a criar um grupo de trabalho para compreender novas formas de abordagem em saúde para pessoas intersexo.
Quando se trata do fim das cirurgias, as aprovações na CNS são um primeiro passo de uma longa jornada até que o direito seja efetivado: falta o próprio Estado brasileiro, por meio do Ministério da Saúde, expedir recomendação nesse sentido; falta o Conselho Federal de Medicina adotar o fim da prática; falta, sobretudo, essa agenda chegar ao SUS.
“Acredito que a mobilização precisa continuar, envolvendo o Judiciário e o Ministério da Saúde, buscando-se garantir a saúde plena de pessoas intersexo, sua integralidade corporal, sua autonomia, sua história e uma plena vida social, política e familiar”, finaliza o advogado da Abrai.