Vanessa Campos recebeu o diagnóstico na época em que o mesmo era, como ela diz, “uma sentença de morte”. Vivendo há mais de 30 anos com HIV+, a amazonense conta toda a sua história de luta ao preconceito e relacionamentos abusivos até chegar em 2016, momento em que se tornou ativista. Primeira amazonense escolhida secretária nacional de Informação e Comunicação da RNP+ (Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids), Vanessa realizou diversos sonhos e hoje é voz e inspiração para todos os que têm o mesmo diagnóstico
Por Vanessa Campos em depoimento a Jaquelini Cornachioni
Publicado pela coluna Eu, Leitora da revista Marie Claire, em 18/12/2023
“Nasci em Manaus, no Amazonas, e cresci em uma família grande. Meus avós tiveram dez filhos: oito mulheres e dois homens. Minha mãe foi a primeira ‘mãe solo’ da família, o que virou um escândalo na época, em 1972. Apesar de toda a pressão para que ela não tivesse a criança, aqui estou. Até os 7 anos, fui criada pela minha avó e pelo meu avô, e a minha mãe morava junto conosco.
Até que chegou o ano de 1979, quando minha mãe se casou com meu padrasto. Vale dizer que eu não conheci meu pai biológico e nunca soube muito sobre ele, mas o meu padrasto foi o melhor pai que eu poderia ter. Tive uma infância e uma adolescência muito privilegiadas. Pude estudar nas melhores escolas, fazer aula de inglês e balé e realizar viagens para São Paulo.
Aos 17 anos, tive meu primeiro namorado. Foi com essa idade que iniciei minha vida sexual. Naquela época, não se falava tanto sobre preservativos. Esse namoro, que começou no final de 1989, durou dois anos. Na primeira semana de 1990, tive alguns sintomas parecidos com os de uma virose, como febre, dores no corpo, cansaço e algumas pintinhas na pele.
Minha mãe decidiu me levar para uma dermatologista e a médica pediu diversos exames, menos para infecções sexualmente transmissíveis e HIV. Quando vieram os resultados, nada indicava uma doença grave. Os sintomas passaram em duas semanas e minha vida seguiu.
Em 1992, pouco tempo após o término dessa relação, meu então ex-namorado sofreu um acidente de carro. Não foi muito grave, mas ele fraturou o fêmur e, por isso, ficou internado. Seu pai era médico e notou algumas alterações inesperadas e não relacionadas ao acidente. O que era para ser uma simples recuperação se complicou. Ele teve febre e dores de cabeça e foi diagnosticado com meningite criptocócica, causada por fungos e que, naquela época, era – e continua sendo – uma doença definidora do HIV. Seu pai desconfiou e o resultado deu positivo. A meningite o matou muito rapidamente, o que deixou todos arrasados.
Um dia, recebi a ligação de uma enfermeira explicando a situação e pedindo que eu também fizesse o teste de HIV. Nos anos 1990, o diagnóstico não era rápido e eu me preparei para um resultado positivo. Li tudo o que podia sobre HIV e aids e entendi que não afetava apenas homens que transam com outros homens, como diziam. Atingia também mulheres. A aids era vista como algo relacionado a gays e mulheres promíscuas, e sabemos que isso não é verdade. Foi assim que tive o meu diagnóstico de HIV+, aos 19 anos, muito jovem. Jamais imaginei. O HIV+ era uma sentença de morte e eu pensei que morreria igual ao Cazuza. Na minha cabeça, era só sentar e esperar por uma passagem rápida e muito dolorosa.
Coincidentemente, recebi o diagnóstico pela Adele Benzaken, que em 2016 assumiu o departamento de HIV/aids no Brasil. Com o tempo, foi ficando insustentável morar em Manaus. Eu havia me tornado a namorada do rapaz que morreu de aids e me sentia um alvo na cidade. Além disso, era como se eu fosse um perigo para a minha família, que sempre me apoiou. Mesmo com o acolhimento, falar sobre o vírus era algo que parecia proibido.
Eu não tinha com quem conversar, estava solitária. Então, me preparei para ir embora. Como eu trabalhava em uma empresa com sede no Rio de Janeiro, pedi transferência. Conversei com meu chefe, contei a verdade e ele me acolheu. Fui para o Rio um ano depois do diagnóstico – tudo aconteceu bem rapidamente. Lá, demorei um pouco para voltar ao tratamento, que, naquela época, era só acompanhamento – não havia remédios. Então comecei uma nova fase da minha vida.
Primeiramente, iniciei meus estudos na Faculdade Veiga de Almeida, o que era um grande sonho. Depois, conheci um rapaz que se apaixonou por mim. Sempre disse que não poderia namorar, mas não falava o motivo. Um dia, depois de muito insistir, contei que tinha HIV+. Para meu espanto, ele me acolheu. Começamos o namoro com a condição de que ele sempre usaria camisinha.
Mas, com o passar dos meses, notei que eu não era de fato apaixonada por ele. Acredito que ele percebeu e decidiu me prender de alguma forma, e o jeito que encontrou foi tirar a camisinha sem a minha autorização durante uma relação. Quando percebi, eu me desesperei. Bastou essa única vez para que eu engravidasse. Uma gravidez unilateral, pela qual abri mão de tudo, incluindo os estudos, e não tive poder de escolha.
A maternidade era meu sonho antes do diagnóstico, mas havia desistido dela. Antes da gestação, eu não tinha nenhuma doença oportunista, mas elas começaram a aparecer. Fiquei mal, me coçando inteira, repleta de feridas pelo corpo. Não sabia se chegaria viva até o final, mas o Pedro nasceu quando eu tinha 21 anos. Naquele momento eu me senti mal com a ideia de ter colocado no mundo uma criança possivelmente com HIV+, mas, quando ele tinha 2 anos, foi feito o teste, que deu negativo. Meu namorado da época também não estava com HIV+. Fiquei aliviada.
Meu problema, naquela época, era estar em um relacionamento abusivo. Meu namorado era extremamente ciumento e possessivo, vigiava as roupas que eu usava e, se eu dizia que queria terminar, ele me ameaçava. Resolvi contar para o meu pai o que estava acontecendo e ele me ajudou a voltar para Manaus. Avisei meu ex-namorado apenas quando havia chegado, mas deixei o caminho aberto para ele ver o filho.
Um ano depois da minha volta para Manaus, conheci meu terceiro companheiro. Com esse eu me casei oficialmente, no papel. Eu o conheci durante um curso de computação, que fiz para me atualizar e voltar ao mercado de trabalho. Lembro que ele era muito religioso, dizia com frequência que Deus iria me curar. Sinceramente? Era o que eu queria ouvir: que tinha uma saída, uma cura. Àquela altura, em 1997, eu já havia começado meu tratamento com remédios, o que me dava inúmeros efeitos colaterais.
Infelizmente, esse relacionamento também foi muito abusivo, tanto física como psicologicamente. Ele se recusava a usar preservativo, alegando ser por conta da religião, e assim eu tive outras duas gestações. Em ambas passei muito mal. Também descobri que ele era ex-presidiário. Além disso, o pai biológico do Pedro conseguiu a guarda do meu filho e o tirou de mim quando ele tinha 3 anos. Foi um baque. Reencontrei o Pedro apenas quando ele fez 7 anos, no Rio de Janeiro, e de forma muito rápida. Esse ex-namorado não me deixou ficar sozinha com ele em nenhum momento. Por mais que eu tenha tentado ao máximo me aproximar, ele barrava de todas as formas.
Com as ameaças e violências que sofria do meu ex-marido, criei coragem e tomei a decisão de pedir o divórcio. Acabei sendo perseguida por quatro anos. Nós nos separamos em 2004, e ele me perseguiu até 2008, ano em que meu pai morreu. Sem ele, eu me mudei para São Paulo, mas não me acostumei. Então, me estabeleci em Joinville com minhas filhas, onde moro até hoje.
Assim que me separei, minha saúde melhorou significativamente. Aquela Vanessa animada e bonita estava voltando. Minha história com o movimento HIV+ veio em 2016, quando minhas filhas já eram adolescentes (elas não têm o vírus) e eu precisei fazer uma cirurgia. Escolhi regressar para Manaus para que minha família cuidasse delas. Já queria muito falar sobre HIV+ e aids nas redes sociais. Era a época do Facebook, e eu decidi fazer uma postagem falando abertamente sobre o meu diagnóstico. Tudo foi feito com a autorização das minhas filhas. Sei que quando uma sorologia se torna pública, não é só a pessoa com HIV+ que sofre, mas todos aqueles que estão ao redor.
No hospital, eu já conversava com as pessoas sobre HIV+ de maneira natural. Então, um rapaz que me ouviu falando do meu caso me convidou para a reunião da RNP+ [Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV+/aids], que luta pelos direitos dessas pessoas. Entendi que existia um movimento, então me engajei. Participava de todas as reuniões e, como eu era uma pessoa com diagnóstico público e a que vivia há mais tempo com HIV+, colocava a minha cara em todos os lugares para falar sobre aquilo. Assim, fui eleita representante estadual da RNP+ no Amazonas de 2017 até 2019.
A maior conquista aconteceu em setembro, quando me tornei a primeira amazonense escolhida como secretária nacional de informação e comunicação da RNP+. Junto com esse ativismo conheci o feminismo, onde me fortaleci e entendi todos os abusos e violências que sofri. Entre minhas grandes conquistas, além dos meus filhos, está a campanha ‘Indetectável = Intransmissível’, que mostra que pessoas vivendo com HIV+ com carga viral indetectável há pelo menos seis meses e boa adesão ao tratamento têm um risco nulo de transmitir o vírus pela via sexual.
Lutei – e ainda ouso lutar – pelo direito sexual e reprodutivo das pessoas que vivem com HIV+. Devemos ter direito à vida, ao prazer. Hoje, aos 51 anos, sou uma voz importante para o movimento, ao lado de tantas outras pessoas que falam de suas vivências. Para isso, também criei o Instagram Soroposidhiva, onde dou luz ao assunto.
Com o novo governo, sentimos mais esperança de que, um dia, o HIV+ e a aids serão mitigados. Aqui em Joinville, estou realizando outro sonho, que havia abandonado em 1993: o de estudar. Atualmente curso Serviços Sociais e estou no segundo período. Também vou lançar um livro biográfico contando a minha história, outro desejo realizado.
Sigo com meu tratamento, que não é nada fácil, mas dou conta dele. Consegui administrar o HIV+ na minha vida e cheguei até aqui. Mesmo com tudo me dizendo que eu tinha prazo de validade curto, preferi acreditar que poderia continuar lutando pelos meus sonhos.”
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