20 de abril de 2024
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André Fagundes é um dos que aguardam decisão judicial (Raul Spinassé | Ag. A TARDE)

André Fagundes é um dos que aguardam decisão judicial
André Fagundes é um dos que aguardam decisão judicial (Raul Spinassé | Ag. A TARDE)

Anderson Sotero
Publicado no portal A Tarde, em 28 de novembro de 2016

Para marcar uma simples consulta com o dermatologista, André Fagundes, 22, levou quatro meses. O receio era passar por mais um constrangimento ao ter que mostrar o documento de identidade, no qual consta o nome de batismo, diferente daquele que escolheu para o resto da vida.

André é homem trans (nasceu em um corpo biologicamente diferente daquele com o qual se identifica). Quando nasceu, o médico constatou o sexo biológico feminino no bebê e, na certidão de nascimento, foi designado como sendo do sexo feminino.

Mas ele, que hoje estuda matemática na Universidade Federal da Bahia (Ufba), nunca se identificou com o gênero e, desde os 16 anos, passou a usar “André”, como nome social (nome por meio do qual uma pessoa quer ser reconhecida).

O jovem preferiu não repetir o prenome que recebeu após nascer nem mesmo para esta reportagem, afinal, nunca se identificou. Mas, há um ano, a batalha pelo reconhecimento saiu do plano pessoal e passou para o âmbito jurídico. André quer que seus documentos pessoais estejam de acordo com a forma como se reconhece.

Assim como ele, muitas pessoas trans (travestis, transexuais) têm recorrido à Justiça para retificar prenome e sexo do registro civil. A demanda tem crescido, segundo a presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson.

Dados da Defensoria Pública do Estado revelam que quadruplicou o número de processos como o de André encabeçados por defensores públicos nos últimos três anos. O quantitativo saiu de quatro casos em 2014 – ano em que o órgão começou a realizar esse tipo de atendimento – para 17 deste ano. Em 2015, foram 11.

No entanto, estes dados não representam a realidade, já que se pode recorrer à Justiça com advogado particular. A TARDE solicitou dados e informações ao Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) durante cinco dias, mas não houve resposta.

Decisões recentes do órgão têm sido alvo de críticas de advogados, ativistas e transexuais. A queixa é que, em alguns casos, a mudança de nome tem sido deferida, mas o sexo não (veja mais abaixo). Há, em Salvador, só uma Vara de Registros Públicos, onde estes casos são julgados.

André é um dos que aguardam a Justiça decidir. Em setembro de 2015, por meio de um advogado particular, deu entrada na Justiça para que o prenome e o sexo do registro civil sejam alterados para André e masculino, respectivamente: “Já tem mais de um ano. Isso gera bastante indignação”..

Após duas audiências desmarcadas e problemas com um psicólogo, André só terá uma nova audiência em fevereiro de 2017. Desde os 16 anos, ele decidiu assumir sua identidade de gênero (a forma como a pessoa se reconhece) masculina. Mas, em casa, os pais, que são evangélicos, nunca o chamaram pelo nome social.

Constrangimentos

Enquanto aguarda uma decisão judicial, André conta que já passou por vários constrangimentos. “O processo familiar até hoje é complicado. Para mim, é uma violência porque não respeitam o meu eu”, diz.

Antes, já usava um apelido “neutro”, em substituição ao nome de batismo. “Não me sentia confortável. Usava calça, bermudas mais longas”, conta. Na universidade, antes das aulas, tinha que conversar e explicar aos professores para que, na chamada, não fosse interpelado pelo nome de batismo.

Essa situação só mudou após uma portaria que obriga o reconhecimento do nome social na instituição. Mas ir ao cinema, por exemplo, ainda é um problema. No comprovante de matrícula, consta o nome André. No RG, o de batismo, que se refere à uma mulher.

“A mudança do nome é algo que muda minha vida socialmente. Seja para ir ao médico, seja para ir ao cinema. Para viver socialmente, a gente precisa da documentação. Todo lugar que vou, preciso mostrar. É um constrangimento. Isso me violenta muito”, frisa.

Decisões judiciais são alvo de críticas

O mesmo desejo de ter o documento retificado levou o auxiliar administrativo João Hugo Cerqueira Alves, 23, a dar entrada na Justiça, em junho de 2015, com a ajuda de uma defensora pública. “Nosso nome é o cartão postal. É a partir dele que você recebe um tipo de tratamento. Sempre evitei lugares onde precisasse apresentar meu RG”, diz João, que é homem trans.

A sentença só saiu em agosto deste ano. “Precisei provar que sou  eu mesmo, João Hugo. Mas foi só em novembro que consegui pegar a autorização para ir a um cartório fazer a retificação”, conta.

No entanto, segundo Hugo, a felicidade não foi completa. Foi deferido o pedido para mudança do nome, mas não do sexo. Por enquanto, na certidão de nascimento permanecerá o gênero feminino. A defensora recorreu da decisão.

João Hugo não fez cirurgia de redesignação sexual. Ele conta que nunca gostou do nome do registro e nem do tratamento feminino. “Eu sempre fui muito moleque, com a aparência que a sociedade considera masculina”, ressalta. Como homem trans, ele quer que o gênero identificado na certidão seja o masculino.

Transfobia

Para ele, a decisão foi “transfóbica” (atitude que discrimina pessoas trans): . “Quando leio a decisão, parece a opinião pessoal da juíza. É um parecer muito patologizante. Não sou doente”.

Segundo ele, antes, a Justiça baiana permitia a mudança dos dois. “Agora não. Para dar o nome e gênero, a juíza só concede se houver cirurgia de readequação genital. Uma cirurgia para mulher trans chega a R$ 45 mil. No nosso caso, tem algumas, mas ainda experimentais”, afirma.

Presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Keila Simpson considera “absurda” a exigência de cirurgia. Há uma decisão, em 2009, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na qual se afirma que o procedimento não é obrigatório para se conceder o direito de mudar nome social e sexo no registro.

“Algumas decisões da Justiça na Bahia já saíram com nome e gênero. O maior problema é que o Judiciário está querendo basear as decisões no genital. O que interessa é como nos apresentamos na sociedade, não o genital. A gente não anda nu pela rua”, afirma Keila.

Segundo ela, a associação tenta combater o problema. “O que a Antra tem feito é questionar porque ainda temos essa visão antiquada. Se antes tínhamos em Salvador decisões com nome e sexo deferidos e agora não, isso mostra que depende de simpatia de juiz. O Judiciário tem que entender que é a identidade de gênero que a gente se apresenta. Não é o genital”, acrescenta.

Sentença depende do critério de avaliação dos juízes

Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Enfrentamento à Homofobia da OAB-BA, Felipe Garbelotto, diz que a jurisprudência ainda é “vacilante”.  “Os juízes têm decidido de modo distinto. Uns entendem que para deferir mudança de sexo, há que ser provado que a pessoa fez cirurgia (redesignação). Para outros, não. Os tribunais superiores, que podem pacificar o assunto, ainda não se debruçaram sobre o assunto”, explica.

Para Garbelotto, uma solução possível seria o projeto de lei federal João Nery (PL 5002/2013), ainda em tramitação, que prevê a mudança diretamente no cartório, sem a necessidade de submissão a um juiz.

O advogado Leandro Lopes Pontes conta que juízes têm decido com base em princípios da Constituição e na Lei de Registros Públicos de 1973. Ela permite a mudança do prenome sempre que expuser o detentor ao ridículo.  Mas não há legislação específica que trate sobre a mudança para pessoas trans.

Pontes diz que, como não há lei que determine o que o juiz deve pedir à pessoa trans, magistrados têm requerido o depoimento do próprio solicitante e laudo psiquiátrico com um CID (numeração que identifica uma patologia), indicando uma doença chamada de disforia de gênero. “Tem-se exigido um diagnóstico de doença mental, o que é uma afronta à pessoa trans”.

A transexualidade ainda é considerada doença mental pela psiquiatria. A homossexualidade também já foi considerada uma patologia, mas, em 1990, foi excluída da lista internacional de doenças. O psicólogo Gilmario Nogueira trabalha em um grupo na Faculdade Ruy Barbosa, onde atende pessoas trans. “No nosso caso, ao fazer o laudo, não colocamos  um CID porque não trabalhamos com a patologização. Mas não identificamos nenhum tipo de transtorno mental nas pessoas trans”, pontua.

Identidade de gênero

Percepção que a pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independentemente do sexo biológico.

Transexual

Pessoa que possui uma identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento. Eles podem manifestar o desejo ou não de se submeter a intervenções médico-cirúrgicas.

Transfobia

Palavra criada para representar a rejeição, aversão e discriminação às e aos transexuais. É uma expressão semelhante à homofobia e lesbofobia.

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