Presidente de comissão da OAB fala em risco de perda de direitos da comunidade LGBT com a posse do presidente eleito Jair Bolsonaro. ‘Mutirão’ começou para ajudar casais que querem adiantar cerimônia.
Por Marina Pinhoni e Gabriela Sarmento*
Publicado pelo portal G1, em 7 de novembro 2018
Rossanna Pinheiro checava distraidamente suas redes sociais no último domingo (4) quando uma oferta de “trabalho grátis” chamou sua atenção. Algum conhecido usou a hashtag #casamentolgbt para oferecer mão de obra até o fim do ano para casais que resolveram antecipar a cerimônia com medo de perder direitos após a posse do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) e de uma bancada mais conservadora no Congresso.
Dona de uma empresa de Karaokê, Rossanna se inspirou na ideia e também ofereceu seus serviços. Em poucas horas, foram tantas curtidas, compartilhamentos e comentários de pessoas até de outros estados que ela resolveu criar uma página no Facebook para organizar a oferta e a demanda por região. Apenas dois dias depois, já eram mais de 1,5 mil curtidas na página e uma centena de comentários de gente oferecendo ajuda profissional nas mais diversas áreas.
“Não sei quem criou essa ideia, mas achei que poderia ajudar. A gente quer fazer o casamento de quem realmente não tem condições financeiras e tem medo de perder o direito civil. Além da taxa do cartório, já conseguimos arrumar as outras coisas da festa. Uma noiva já me escreveu que estava chorando muito de alegria. Não posso dizer que é um trabalho de graça, porque pra mim vai ter esse retorno”, diz.
Aumento de 25%
Segundo a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), que reúne dados dos registros civis feitos em cartórios do país, houve aumento de 25% nos casamentos de LGBTs no Brasil de janeiro a outubro deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado: de 4.645 para 5.816. Se considerarmos só de setembro para outubro, o crescimento chega a 36%. No estado de São Paulo, os casamentos cresceram 40,7%, de 2.015 para 2.836, de janeiro a outubro, e na capital, 42%, de 731 para 1.041.
Em São Paulo, o produtor de eventos Caique Paz é um dos que deu continuidade ao movimento da página de Rossanna. Seis casais que entraram em contato com ele já terão as cerimônias organizadas com ajuda do mutirão. “Fiz o post e achei que atingiria só o meu círculo. Mas começaram a compartilhar e diversas pessoas se prontificaram. Desde o buffet, serviços, garçons, cabelo, penteado, maquiagem, cerimonialista. É muito possível que a gente consiga fazer tudo sem custo, a única coisa que falta é o espaço”, diz.
Na onda da hashtag, a Casa1, centro de acolhida em São Paulo de pessoas LGBT que foram expulsas de casa, também anunciou que fará um casamento coletivo em 15 de dezembro. “Foi um movimento orgânico e simultâneo. A princípio anunciamos que escolheríamos cinco casais. Mas já recebi contato de uns 300 voluntários. Vamos estender para no mínimo 20”, afirma Iran Giusti, fundador da Casa 1.
“Embora essa não seja a pauta prioritária da casa, a garantia desse direito passou a ser uma demanda do movimento como um todo. A gente está sendo colocado num lugar muito difícil, é uma ameaça real. Vamos fazer o casamento não só no campo jurídico, mas também a celebração. É importante ter todos os símbolos dentro desse processo como parte de um ato político”, complementa.
No dia 5 de novembro, a Prefeitura de São Paulo também abriu as inscrições para um casamento coletivo que será realizado em dezembro. Esta será a segunda edição do evento organizado pela Secretaria de Direitos Humanos.
Casamento gay no Brasil
A união civil entre pessoas do mesmo sexo é realizada no Brasil desde 2011 com base em uma decisão do Supremo Tribunal Federal (2011) e uma posterior resolução de 2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Milhares de pessoas se casaram desde então com base na jurisprudência, mas o direito ainda não é garantido por lei (Leia mais no histórico abaixo).
Apesar de ter dado declarações homofóbicas, o presidente eleito Jair Bolsonaro não fez promessas diretas de acabar com o casamento gay. Entretanto, durante a campanha, assinou um termo em que se compromete a “promover o verdadeiro sentido do Matrimônio, como união entre homem e mulher”. O texto foi produzido pela organização Voto Católico Brasil e assinado pelo então candidato em 12 de outubro.
Após o resultado da eleição, a ex-desembargadora e presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da OAB, Maria Berenice Dias, deu uma orientação para que os casais procurem assegurar o matrimônio ainda em 2018. O posicionamento da comissão contribuiu para a corrida aos cartórios. “Não estou fazendo um alarmismo, nem histeria. Há todo um movimento conservador, fundamentalista e declaradamente homofóbico. Ele vai ter que dar uma resposta ao seu eleitorado, né?”, diz Maria Berenice.
A advogada ressalta que os casamentos já realizados não podem ser anulados, mas expressa preocupação com um Congresso mais conservador que possa vir a aprovar futuras leis restritivas. “O que temos é uma jurisprudência ocupando o vácuo por falta de lei, mas se for criada uma lei proibindo o casamento, até o Supremo dizer que é inconstitucional vai demorar um tempo longo onde as pessoas não vão casar”, afirma.
Histórico
- Maio de 2011: O Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar. A partir dessa decisão, direitos como herança, comunhão parcial de bens, pensão alimentícia e previdenciária, licença médica, inclusão do companheiro como dependente em planos de saúde foram assegurados.
- Maio de 2013: O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução 175, que passou a garantir aos casais homoafetivos o direito de se casarem no civil. Com a resolução, tabeliães e juízes ficaram proibidos de se recusar a registrar a união.
- 2017: Enquanto o número total de casamentos no Brasil caiu 2,3% em relação ao ano anterior, entre pessoas do mesmo sexo houve aumento de 10%, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Esse aumento foi puxado especialmente pela alta de 15% do número de casamentos entre mulheres, maior que o de 3,7% entre homens. Ao todo, foram 5.887.
- 2018: Foram realizados de janeiro a outubro deste ano 1.041 casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo na capital, segundo levantamento da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen). No mesmo período de 2017, foram 731.