9 de outubro de 2024
https://nacoesunidas.org/campanha-da-onu-lanca-apelo-as-familias-de-pessoas-lgbti/

Publicado pelas Nações Unidas no Brasil, em 23 de dezembro de 2016

https://nacoesunidas.org/campanha-da-onu-lanca-apelo-as-familias-de-pessoas-lgbti/A Livres & Iguais no Brasil, campanha das Nações Unidas pela igualdade de direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, pessoas trans e intersex (LGBTI) lança neste fim de ano o vídeo “Nosso presente é o amor”. O material faz uma apelo a todas as famílias para que aceitem, respeitem e acolham seus filhos e filhas LGBTI: a discriminação não pode começar em casa.

Os depoimentos de “Nosso presente é o amor” foram gravados em uma manhã de inverno em Brasília. Com o apoio da coletiva Corpolítica e do grupo Mães Pela Diversidade, a campanha promoveu um encontro de pessoas LGBTI, seus pais e mães para discutir a importância do apoio familiar. Com histórias de superação e empoderamento, o vídeo mostra que, em se tratando das famílias, o amor e o afeto são capazes de superar todos os obstáculos.

Rebecca Religare tem 30 anos, vive em Brasília (DF) e é ativista dos movimentos negro e LGBT. Como mulher negra e lésbica, já sofreu diversas discriminações e quebrou muitos tetos de vidro para chegar onde está. No mundo acadêmico e profissional, acumulou inúmeras conquistas: é funcionária pública concursada, formada em Letras e está concluindo um mestrado em Sociologia e uma graduação em Direito na Universidade de Brasília. Mas uma das primeiras barreiras que ela precisou vencer foi dentro da própria casa.

Não foi nada fácil quando Rebecca se abriu com a família em relação à sua orientação sexual. Em setembro de 2009, foi expulsa de casa após uma discussão. “Eu lembro até hoje. Estava de vestido, com uma mochila com os livros. Tinha voltado da UnB e ido a um show com minha namorada na época”.

Rebecca sobreviveu com determinação e resiliência. Morou na casa de vários amigos e deu aulas particulares para se sustentar enquanto não passava em um concurso público. A aprovação veio dois meses depois. Disso tudo, sua maior conquista foi a liberdade para viver sua vida e ser feliz do jeito que queria e precisava.

A reconciliação com a família demorou um pouco mais. Foram cinco anos para que Rebecca e a mãe reatassem os laços. “Hoje eu e minha família estamos bem melhor. Minha mãe já trata minha companheira, Mariana, como sua nora. Ela frequenta a minha casa e eu frequento a casa dela, com a família.”

Rebecca tem propriedade para afirmar o quão difícil pode ser o processo de “sair do armário”. “Quando a gente sai do armário, a nossa família também sai. Ou, pior, ela se vê na necessidade de sair. E não é fácil para nenhuma das partes.”

Muitas vezes, é a consciência da homofobia e da transfobia, da violência e discriminação que aguardam os filhos e filhas na rua que torna a saída do armário mais difícil para os familiares. Priscila Morégola, presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/DF, diz que a situação é muito difícil para a família. “Todos sofrem, mas todo mundo vai entendendo como ajudar. Às vezes a família sofre mais não é pela saída do armário em si, mas pelo medo de o que o filho irá sofrer fora de casa.”

Avelino Mendes Fortuna, 60 anos, viúvo e agrimensor aposentado, conhece com profundidade as dores da LGBTI-fobia: seu filho foi assassinado em 2012, em um crime com sinais claros de fundo homofóbico. Lucas Fortuna era jornalista, ativista LGBTI e árbitro esportivo. Ele tinha apenas 28 anos – e apesar de ter sido mais um jovem a entrar para as estatísticas da LGBTI-fobia no Brasil, Avelino se recusou a deixar a memória do filho desaparecer. Desde então, é também ativista pelos direitos humanos das pessoas LGBTI.

Rebecca sabe que sua história de superação pessoal – e mesmo o final redentor com a família – pode ser exceção e não é a realidade de muitas outras pessoas LGBTI. “Cada um tem um jeito, e eu não digo que quando eu saí de casa foi a coisa mais maravilhosa do mundo. Mas em face de algo com o que eu não conseguia mais lidar, eu consegui reagir a várias coisas. E sei que isso também afetou a minha família.”

A discriminação e a violência sofridas no ambiente familiar, ou mesmo  o corte de relações, impõe um sofrimento emocional e psicológico que muitas vezes impele as pessoas LGBTI  a uma situação de vulnerabilidade e marginalização, inserindo-as em um ciclo de exclusão social e de pobreza.

Especialista independente

A ONU reconhece que a orientação sexual e a identidade de gênero, reais ou percebidas, são fatores importantes que estruturam, informam e reforçam desigualdades e impactam negativamente a fruição plena dos direitos humanos da população LGBTI.

Em 1994  o primeiro órgão das Nações Unidas pronunciou-se oficialmente, reconhecendo que a orientação sexual poderia ser considerada base para discriminação, vedada pelo direito internacional dos direitos humanos. Tratava-se do caso Toonen vs. Austrália, no qual o Comitê de Direitos Humanos recomendou a revogação de legislação que criminalizava relações consensuais entre adultos do mesmo sexo na Tasmânia.

Desde então muitos avanços já foram feitos. Em 2016, a ONU criou um cargo de especialista independente voltado para a proteção contra a violência e a discriminação motivadas por questões de orientação sexual e identidade de gênero.

Vitit Muntarbhorn foi apontado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU para o cargo, cujo mandato é de três anos, para monitorar a situação de pessoas LGBTI no mundo inteiro, investigando  violações de direitos humanos e avaliando a implementação de mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos já existentes. Apesar de ainda não dispor de uma legislação específica que tipifique e preveja uma punição a crimes de ódio de fundo LGBTI-fóbico, o Brasil foi um dos signatários da proposta.

Em discurso proferido no Conselho da Europa, em Estrasburgo, em novembro deste ano, o especialista independente definiu os cinco temas prioritários do  mandato: descriminalização; despatologização; reconhecimento de status; liberalização cultural e incentivo à empatia por meio de processo educacional; e socialização sensível aos direitos humanos, da infância em diante.

“O turbilhão de violência e discriminação, em suas múltiplas formas, frequentemente inicia-se em casa, na escola, na comunidade e no ambiente ao redor, com violações reproduzindo violações”, disse Vitit Muntarbhorn. Ele é professor de direito internacional em Bangkok e já trabalhou em diversas Comissões da ONU.

Saindo do armário

Mães Pela Diversidade é um grupo de mães e pais de pessoas LGBTI que perceberam que se aliar ao enfrentamento à discriminação com base em orientação sexual ou identidade de gênero era a melhor forma de garantir os direitos e a segurança dos seus filhos e filhas. Avelino Mendes, também integrante do grupo, carrega consigo uma mensagem poderosa e direcionada especialmente aos pais: “O pai que não sai do armário é co-responsável pela assinatura do atestado de óbito do filho”.

O grupo acolhe mães e pais que têm dificuldade para aceitar filhos e filhas LGBTI, além de também atender lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas trans e intersex que se veem em uma situação difícil em casa. “O mais importante no nosso trabalho é a construção de redes de atenção e acolhimento, pois nem sempre as famílias estão tão presentes e as pessoas muitas vezes têm necessidades imediatas, como nos casos de violência grave em que é preciso intervir”, diz Mônica, integrante do grupo.

Produtora e professora de música em Brasília, Mônica é mãe de quatro mulheres e as gêmeas Guaia e Marina são lésbicas. “A acolhida familiar é fundamental para a estrutura da pessoa. Se você tem uma família que não te aceita, é muito pouco provável que você tenha força e energia para se colocar para a sociedade como um todo. O núcleo familiar, seja ele qual for, é essencial para dar essa força. E isso não só para as pessoas LGBTI, mas para qualquer outra pessoa”, afirma Mônica. Segundo Guaia, o apoio da mãe foi essencial quando teve o primeiro relacionamento com outra mulher, cuja família era conservadora. “A acolhida que eu tinha em casa me fortaleceu diante dessa situação e dizer que eu não iria aceitar ser escondida”, ela diz.

Ângela, mãe de Thaís e também parte do Mães Pela Diversidade, destaca o papel fundamental que as famílias de pessoas LGBTI devem ter no combate à discriminação com base em orientação sexual ou identidade de gênero. Para ela,  rejeição e violência não podem começar em casa. “A família deve amar, acolher, respeitar. E lutar para que seus filhos e filhas tenham direitos iguais, tenham segurança, possam ser quem são e amar quem desejam. Pais e mães precisam rever seus preconceitos e entender a necessidade urgente do apoio para seus filhos e filhas LGBT”, afirma.

Ana Carolina tem 33 anos, é formada em Serviço Social e atua como gestora pública, coordenando um Centro de Referência Especializado da Diversidade Sexual, Étnico-Racial e Religiosa. Ela se identifica como lésbica não-binária e é filha de Ana Maria. “O respeito sempre esteve na nossa casa. É muito emocionante ter uma mãe como a minha, um pai como o meu e uma irmã, e formarmos essa família”. Ana Carolina diz que se emociona ainda mais quando a mãe se refere a Cíntia, sua companheira, como mais uma filha.

Patrícia, jornalista e pesquisadora em Brasília, é também mãe de Bruno, gay e estudante, que se abriu para ela em 2015, quando tinha apenas 15 anos. A partir daí, ambos se engajaram na promoção dos direitos das pessoas LGBTI. Bruno, que está no ensino médio, começou um movimento para discutir gênero e orientação sexual na escola. “Minha militância vem do fato de eu ser homossexual. Não é que o meu grito seja maior que o dos outros. É uma questão de respeito por quem morreu para eu poder estar aqui hoje e andar na rua de mãos dadas com meu namorado”, ele diz. E Patrícia, que hoje também é uma Mãe Pela Diversidade, diz que o filho nunca teve problemas em saber quem era e sempre esteve confortável na própria pele. “Todo mundo tem suas idiossincrasias e seus tabus, mas nós tentamos viver com o mínimo de hipocrisia possível”, diz. “Ele está virando a pessoa que achávamos que ele ia virar. Uma pessoa atenta ao mundo e às coisas que podem ser melhoradas. Tenho orgulho dele”, afirma Patrícia.

Livres & Iguais é a campanha da Organização das Nações Unidas pela promoção da igualdade de direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas trans e intersex. Iniciativa inédita e global da ONU, reconhece que orientação sexual e identidade de gênero atuam como fatores que estruturam desigualdades sociais e impactam negativamente a fruição plena dos direitos humanos das pessoas LGBTI. Implementada no Brasil desde 2014, a campanha possui parcerias com a Prefeitura de São Paulo e com o estado de Minas Gerais, e conta com Daniela e Malu Mercury como suas Campeãs da Igualdade. Saiba mais aqui.

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