Na ânsia de perseguir os homossexuais, legislação ameaça os direitos de outros milhões de brasileiros
Por Rodrigo Martins
Publicado pela revista Carta Capital, em 23 de outubro de 2015
Um casal apaixona-se, inicia o namoro, engata no casamento e pouco depois decide ter filhos. O enredo é corriqueiro, trivial demais até para as telenovelas. Mas dezenas de milhares de brasileiros estão fadados a vivenciar a experiência de constituir uma família ao longo de uma desgastante epopeia. O caso a seguir é emblemático. Após dois anos de relacionamento, as atrizes Priscila Harder e Juliana Offenbecker convidaram familiares e amigos para celebrar seu casamento. Bolo de noiva, brinde de champanhe, tudo como manda o protocolo, exceto pela impossibilidade de assinar um documento para formalizar a união.
Aos olhos do Estado, o casal não existia, por não ser contemplado pela legislação vigente. O tempo passa e as jovens decidem dar um novo passo. Recorrem a uma clínica de inseminação artificial de São Paulo para realizar o sonho da maternidade. Priscila dá à luz a duas meninas, gêmeas. A companheira procura um cartório para registrar as filhas, mas se depara com a negativa do funcionário. Apenas a genitora poderia figurar como mãe de Luna e Maia. Uma vez mais aquela família seria ignorada pelo Estado.
Apenas quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em maio de 2011, a união estável homoafetiva, Priscila e Juliana puderam oficializar o matrimônio. Naquele mesmo mês, nasceram as filhas e iniciou-se outra longa batalha, até a Justiça atestar que Luna e Maia, hoje com 4 anos, tinham duas mães e nenhum pai.
“Coincidentemente, a sentença saiu em 12 de junho de 2013, no Dia dos Namorados. Somente então pudemos corrigir a Certidão de Nascimento delas, além de tirar RG e Passaporte com os dados corretos”, conta Priscila. “Para muita gente, é só um pedaço de papel. Mas, sem documentação, minha esposa nem sequer podia viajar com nossas filhas na minha ausência. Até para levá-las ao hospital era um constrangimento. Perguntavam pela mãe, e ela estava lá. Mas o papel dizia outra coisa.”
Agora, o Estado não pode mais ignorar a existência desta e de outras 60 mil famílias homoafetivas, segundo o Censo do IBGE de 2010. A bancada fundamentalista da Câmara dos Deputados esforça-se, porém, para condenar à invisibilidade Priscila, Juliana e suas duas filhas. No fim de setembro, após uma sessão de mais de cinco horas marcada por protestos e intensos bate-bocas, uma comissão especial da Casa aprovou o PL 6.583/2013, conhecido como Estatuto da Família, que restringe a definição de entidade familiar à “união entre um homem e uma mulher”, ou ainda pela “comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”.
Proposto pelo deputado Anderson Ferreira, do PR, o projeto é uma reação às recentes conquistas obtidas no Judiciário pela comunidade LGBT, avalia o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Além de o STF reconhecer a união entre pessoas do mesmo sexo há quatro anos, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução, em 2013, que obriga os cartórios a celebrar o casamento civil ou converter a união estável homoafetiva em casamento. As decisões ampliaram o acesso a quase uma centena de direitos até então negados, como a adoção de crianças, a inclusão do cônjuge em benefícios previdenciários ou planos de saúde, o direito à herança e a possibilidade de somar rendimentos na análise de financiamentos.
“Na tentativa de excluir os homossexuais no texto da lei, os parlamentares acabaram por ameaçar direitos de milhões de outros brasileiros que não possuem famílias no formato tradicional, homem e mulher. Falamos de cerca de 25% da população, segundo dados do IBGE”, afirma Pereira. “Ficaram excluídas, por exemplo, as famílias de arranjos anaparentais, quando não há relação direta de descendência. É o caso de tios que cuidam de sobrinhos ou de irmãos que vivem no mesmo lar.”
Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça gaúcho e presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB, Maria Berenice Dias alerta que o não reconhecimento da entidade familiar pode trazer sérias implicações. “Os bens de família, como o imóvel onde ela vive, não podem ser penhorados em razão de dívidas, por exemplo. Agora pense na situação de uma família que não se encaixa nessa definição proposta. Uma pessoa que cuida do irmão inválido e se endividou com o tratamento dele. Percebe? Se não constituem uma família, podem perder o teto”, diz a advogada, empenhada na articulação de um projeto de iniciativa popular para a criação do Estatuto da Diversidade Sexual. “O Congresso jamais assegurou direitos aos casais homoafetivos. Todas as conquistas deram-se no âmbito do Judiciário. Daí a importância da mobilização da sociedade.”
As aberrações do PL 6583/2013 não param por aí. O projeto, patrocinado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, fiel da Igreja Sara Nossa Terra, também prevê a inclusão de uma disciplina de “Educação para a Família” no currículo das escolas. Mas qual família? “Não é difícil imaginar o conteúdo moral e discriminatório dessa nova matéria, a julgar pela excludente definição proposta no texto”, critica Paulo Iotti, do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero.
Além disso, a bancada fundamentalista pretende criar conselhos com o poder de expedir notificações e “encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da família”. Para militantes dos direitos LGBT, a iniciativa tem caráter persecutório. “Dá arrepio imaginar que um desses conselheiros possa algum dia bater à porta da minha casa e questionar a guarda dos meus filhos, porque a minha família não se encaixa no padrão definido por eles”, comenta o ativista Toni Reis, do Grupo Dignidade, de Curitiba.
Casado com o tradutor David Harrad e pai de três filhos adotivos, Reis sabe bem como é ser tratado como cidadão de segunda classe em seu próprio país. Teve de aguardar 20 anos para formar uma família, direito em tese assegurado a qualquer brasileiro, rico ou pobre. “Vivia com meu marido há muito tempo, mas sem nenhuma garantia. Em 2011, fiz questão de acompanhar o julgamento do STF. Quando saiu a decisão pela união estável, liguei para o David na hora. Perguntei se ele queria se casar comigo, e ele aceitou. Imagina, foram duas décadas de espera.”
Mesmo sem reconhecimento oficial, o casal já havia ingressado, em 2005, com um pedido para adotar uma criança. Após três anos de espera, recebeu a autorização, mas o juiz restringiu a idade e o sexo da criança: precisava ter mais de 10 anos e ser uma menina. “Recorremos da decisão, porque ela era claramente discriminatória. Fariam isso com héteros?” Na segunda instância, Reis e Harrad ganharam o direito de uma adoção conjunta sem qualquer restrição. Mas um promotor do Ministério Público decidiu levar o caso ao STF e ao Superior Tribunal de Justiça, sob a alegação de que casais do mesmo sexo não formam uma entidade familiar. As idas e vindas no Judiciário persistiram até março de 2015, quando a ministra Cármen Lúcia, do STF, validou o processo de adoção.
Na realidade, desde 2011 eles já abrigavam o filho Alysson, hoje com 14 anos, graças à decisão de uma juíza sensibilizada com a angústia do casal. Separado da família biológica em razão de maus- -tratos e com passagem por sete abrigos, o adolescente não poupa elogios aos novos pais.
“No início, achava estranho, tinha preconceito mesmo. Mas quando os conheci de verdade, vi que eram pessoas maravilhosas. São pais amorosos, carinhosos e pacientes”, diz Alysson, que ganhou a companhia de mais dois irmãos: Jéssica, de 12 anos, e Filipe, de 10. Fluente em inglês e autor de um livro infantojuvenil, Jamily, a Holandesa Negra (editora Appris), o garoto confirma ser alvo de comentários maliciosos na escola por viver em um lar homoafetivo. “Mas quem nunca sofreu bullying? Um porque é gordinho, outro porque é alto demais… Nem dou bola.”
Relator do Estatuto da Família, o deputado Diego Garcia, do PHS, garante que o texto não se volta contra famílias com relações de parentesco, como avós que criam netos, nem contra os casos de guarda ou tutela, uma vez que eles “já gozam da proteção específica”. Mas, durante a votação da proposta na comissão especial dedicada ao tema, o deputado Hidekazu Takayama, do PSC, deixou às claras o real intuito da turma: “Não se pode aceitar que homem com homem faz família”.
Por ter caráter terminativo, o projeto pode ser remetido diretamente ao Senado. A deputada petista Érica Kokay assegura, porém, não ter dificuldades para coletar as assinaturas necessárias para um recurso, que obrigaria o plenário da Câmara a avaliar o texto. “Esse desastre só aconteceu porque os fundamentalistas agem em bando e ocupam todos os espaços possíveis, em particular as comissões, para impor suas convicções morais e religiosas, em flagrante desrespeito com o Estado laico e a nossa Constituição.” O colega Glauber Braga, do PSOL fluminense, concorda. “No plenário da Câmara ou no Senado, essa aberração não passa. Nem mesmo o mais conservador Congresso desde o fim da ditadura aprovaria uma proposta tão discriminatória.”
Uma recente pesquisa parece corroborar a tese de Braga. Dos 289 deputados e 51 senadores consultados pelo Instituto Datafolha até a sexta-feira 9, pelo menos 53% avaliam que a lei também deve reconhecer famílias compostas de casais do mesmo sexo, enquanto 37% entendiam somente valer uniões entre um homem e uma mulher. Não emitiram opinião 10%, o restante não foi consultado, é o que preocupa a comunidade LGBT. “Não aceitaremos nenhum retrocesso em direitos”, protesta Reis. Emenda Priscila Harder: “Se não somos uma família, somos o quê? Alienígenas?”
*Reportagem publicada originalmente na edição 872 de CartaCapital, com o título “Vítimas das trevas”
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