25 de abril de 2024
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Por Dimitri Sales
Publicado pelo site Direitos iGuais, em 1º de dezembro de 2014

http://ig-wp-colunistas.s3.amazonaws.com/dimitri-sales/wp-content/uploads/2014/12/aids.jpgEm 1º de dezembro de todos os anos, o mundo celebra o combate à Aids. Trata-se da luta contra uma epidemia que devastou certezas cientificas, atingiu pessoas de todas as classes sociais e diferentes culturas, devolveu o medo da morte para a sociedade ocidental, tão orgulhosa dos avanços médicos experimentados ao longo do Século XX. Desde a descoberta do HIV e dos riscos para a saúde humana, milhares de pessoas morreram, diversas políticas públicas foram implementadas para seu efetivo enfrentamento, descobertas científicas intensificaram o combate aos seus males. No entanto, no começo do Século XXI, a epidemia assume novos contornos, impondo novas e igualmente enérgicas batalhas: a Aids tonou-se uma doença moral.

Desde o seu aparecimento, a presença do HIV nas pessoas foi traduzida de maneiras diferentes. Por um lado, supunha-se tratar do resultado de uma vida “desregrada”, marcada por “promiscuidades”, “violências”, “uso de drogas” e outras “mazelas” típicas da vida das pessoas que desobedeciam aos padrões socialmente impostos, ousando vivenciar seus próprios desejos e experimentar suas convenientes escolhas. Por outro, afirmavam representava a manifestação da “cólera divina” contra homossexuais e prostitutas, por violarem Seus mandamentos, especificamente os atinentes à sexualidade. Entre céu e terra, no centro encontram-se valores morais completamente estranhos às ciências.

O surgimento da epidemia impôs três derrotas à sociedade ocidental. A primeira, por devolver ao centro das pesquisas médico-científicas a responsabilidade por enfrentar e derrotar uma doença eminentemente infecciosa. Ao longo do último século, medicamentos para doenças como tuberculose, malária e poliomielite já haviam sido descobertos. Os tratamentos poderiam assegurar a cura a estas enfermidades, autorizando o avanço nas pesquisas a fim de garantir a longevidade das pessoas. Se os séculos anteriores foram marcados pelo terror das epidemias infectológicas, os desafios agora deveriam ser outros. O que se verificou, ao final Século XX, foi o retorno do horror da morte, feroz e cruel, vestida pelo HIV.

Impondo a segunda derrota, a Aids desacralizou o sangue, elemento tido como divino para as religiões judaico-cristãs, cuja crença é professada pela maioria das populações ocidentais. Ainda que o discurso moral que buscava justificar a epidemia centrasse nas mãos do Ser Sagrado a responsabilidade pelo seu aparecimento, o HIV passou a ser um dilema por residir e se expandir em meio ao “líquido vivo consagrado”. Na origem da epidemia, ante as desinformações acerca do novo problema, transfusões de sangue, por exemplo, poderiam resultar na transmissão do vírus, infectando pessoas que, sem os devidos cuidados, eram submetidas a estes tratamentos. Independente de seus comportamentos sociais, mesmo os bons cristãos estavam sujeitos aos “desígnios” que, simbolicamente, representava a presença do HIV no corpo. O sangue passou a não ser tão sagrado assim!

Por fim, tratando-se da terceira derrota, distintamente da sociedade ocidental, dividida por classes sociais e por critérios como cor da pele, sexo e outras diferentes formas de “categorizar” as pessoas e assegurar-lhes direitos, o HIV não atua a partir de elementos socioeconômicos. Brancos ou negros, pobres ou ricos, homens ou mulheres, jovens ou idosos, quaisquer pessoas passaram a ser vulneráveis ante a existência da epidemia. Mesmo a condição financeira da pessoa não implica mais chances de vencer as doenças advindas pela presença do vírus no organismo, uma vez que os tratamentos mais exitosos são disponibilizados pelo Estado, muito embora possa assegurar melhores condições de vida para quem vive com HIV/Aids. Destarte, é possível dizer que a epidemia não respeita cor, credo ou classe social: ante a Aids, todos são igualmente vulneráveis!

Após quase 35 anos de epidemia, a Aids ceifou a vida de milhões de pessoas, impondo aos Governos e às sociedades mudanças de postura frente ao enfrentamento de um mal real, concreto, bastante vivo e letal. A partir desta condição, o Brasil promoveu importantes campanhas públicas e o mundo obteve consideráveis avanços científicos que modificaram a face da epidemia. Mesmo que os avanços não tenham sido globalizados, é importante destacar o quanto a luta avançou, permitindo que pessoas que vivem com HIV/Aids gozem de melhores condições de vida e plena saúde. Ainda assim, persiste um mal odioso a ser enfrentado e combatido: o estigma moral.

A sociedade ainda enxerga a pessoa que vive com HIV/Aids como um doente, cuja existência acarreta um risco para si e para seus valores. Dialogam diferentes formas de preconceitos para perpetrar discriminações e negar o pleno exercício de direitos. A homofobia, por exemplo, ainda associa a Aids à população de gays e travestis, aumentando a sua vulnerabilidade social.

Se muito se avançou no enfrentamento das doenças decorrentes da presença do vírus HIV no organismo, muito deixou de evoluir na luta contra os preconceitos. Não foi pouco o esforço empregado para combater os estigmas, mas sua eficácia restou limitada.

Apenas em 2 de junho de 2014 o Estado brasileiro assumiu um efetivo compromisso contra a discriminação, ao publicar a Lei Federal nº 12.984, tornando crime algumas formas de preconceito contra as pessoas que vivem com HIV/Aids. No entanto, mesmo que esta legislação seja omissa quanto às formas de apuração das denúncias de atos discriminatórios, diversos órgãos públicos ainda adotam medidas violadoras de direitos, ferindo preceitos constitucionais que asseguram tratamento igualitário a todas as pessoas, bem como normas internacionais que garantem pleno respeito, por exemplo, no ambiente de trabalho.

Tome-se como exemplo a ICA 160-6 Instrução Técnica das Inspeções de Saúde na Aeronáutica(instituída pelaPortaria DIRSA n° 19/SECSDTEC, de 26 de março de 2014), que estabelece procedimentos em caso da constatação do HIV/Aids nas pessoas que pretendem ingressar nas carreiras militares. Por este instrumento normativo, tem-se classificações quanto à condição de saúde da pessoa que vive com HIV/Aids, bem como procedimentos a serem adotados pelas Juntas de Saúde. Caso os candidatos, após aprovação em concurso público, único critério exigido por lei para adentrar nas carreiras do Estado, forem diagnosticados como HIV, estes serão julgados como “incapazes para o fim a que se destina”, devendo ser automaticamente impedidos de assumir qualquer função!

O trabalho é o meio que a pessoa se utiliza para, por um lado, assegurar a subsistência própria e de sua família, por outro, para projetar-se no ambiente social, interagindo, produzindo-o, transformando-o. Importa assegurar que, por intermédio das atividades laborais, o sujeito torna-se parte da sociedade. Realiza-se pessoalmente na medida em que, por suas obras, se torna indispensável à coletividade. A mera presença do HIV no organismo não implica a incapacidade para desempenhar quaisquer funções, bem como não pode servir para impedir o livre exercício de direitos, assegurados igualmente a todos os cidadãos brasileiros.

Não há na Constituição Federal ou em legislação alguma qualquer autorização de discriminação às pessoas que vivem com HIV/Aids. Pelo contrário: os princípios constitucionais da igualdade e da legalidade impõem limites à atuação do Estado e da sociedade com o fim de assegurar a integridade da dignidade humana de qualquer pessoa. Não sendo cabível afirmar que as Forças Armadas desconheçam as leis e sua melhor interpretação, a discriminação presente em seus regulamentos internos só se justifica pela marca dos preconceitos e estigmas que ainda pairam na sociedade brasileira, amparados por uma moral legitimadora das constantes violações dos direitos humanos.

Neste 1º de dezembro, a luta deve ganhar novos contornos: para além do enfrentamento da epidemia do HIV, é indispensável adentrar em espaços tão pouco receptivos ao diálogo democrático, sociais ou institucionais, pulverizando-os com a defesa dos direitos das pessoas que vivem com HIV/Aids. Importa chamar o Estado brasileiro para uma efetiva e necessária guerra contra o mal maior que corrompe os direitos humanos – o preconceito.

O debate e as ações em torno da luta contra a Aids devem considerar o conteúdo moral que ainda hoje permeia a epidemia, sem que se tenha conseguido enxergá-lo com a mesma nitidez que o seus postulados destroem direitos.

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