Essa luta se desenrolará em todos os espaços públicos: dos corredores do Congresso Nacional ao Plenário da Câmara dos Vereadores de Paranaguá.
Guilherme France, advogado e internacionalista
Rafael Mansur, advogado e pesquisador
Publicado pelo portal HuffPost Brasil, em 21 de junho 2017
Na melhor das coincidências, foi no dia seguinte às comemorações da 21ª Parada de Orgulho LGBT de São Paulo que o Ministro Luís Roberto Barroso desferiu um importante golpe contra o preconceito e a discriminação de gênero e de orientação sexual.
Em decisão liminar, o Ministro Barroso, no bojo da ADPF 461, decidiu suspender os efeitos de parte da lei municipal de Paranaguá (PR) que vedava o ensino sobre gênero e orientação sexual nas escolas, além da aplicação da chamada ‘ideologia de gênero’. Caberá ao Plenário do Supremo a apreciação final da liminar.
Foi a primeira vitória de uma iniciativa lançada pelo Procurador-Geral da República Rodrigo Janot contra legislações municipais como a de Paranaguá. Compõem essa iniciativa Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental contra leis dos municípios de Nova Gama/GO (ADPF 457), Cascavel/PR (ADPF 460), Blumenau/SC (ADPF 462), Palmas/TO (ADPF 465), Tubarão/SC (ADPF 466) e Ipatinga/MG (ADPF 467). Como essas ADPFs foram distribuídas para ministros diferentes, a decisão do Plenário sobre a liminar concedida por Barroso na ADPF 461 deverá indicar os rumos dessa iniciativa.
Em um cenário em que se multiplicam as proposições legislativas no Congresso Nacional semelhantes àquelas leis municipais questionadas, tem menor impacto prospectivo o argumento apresentado (e acolhido) de que seria competência privativa da União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional.
No que concerne ao aspecto mais substancial da decisão, o ministro aponta que a Constituição teria acolhido um direito à educação de viés emancipatório, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa” (art. 205) e baseado na “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e no “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (art. 206, II e III).
Aduz que a não discussão dessas questões nas escolas não as excluiria da experiência humana, servindo apenas para perpetuar a desinformação e o preconceito. Afirma, ainda, que é justamente na idade escolar que naturalmente afloram os pensamentos ligados à sexualidade e à identidade de gênero, sendo a sua abordagem no processo educativo essencial para a autocompreensão dessas pessoas em desenvolvimento.
Caso referendada pelo plenário do STF, a decisão reforçará o protagonismo do Poder Judiciário na defesa dos direitos da população LGBT, coroado pelo reconhecimento, em 2011, da união estável homoafetiva como uma entidade familiar merecedora de proteção estatal (ADI 4277/DF e ADPF 132/RJ).
Atualmente, duas outras questões de grande relevância envolvendo os direitos de pessoas trans aguardam uma decisão definitiva do STF: o reconhecimento de sua identidade de gênero (RE 845.779/SC) e a possibilidade de alteração do nome e sexo no assento de registro civil independentemente da realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo (ADI 4275/DF e RE 670.422/RS).
A expectativa é de que as considerações trazidas pelo Ministro Luís Roberto Barroso na ADPF 461 iluminem também as discussões atualmente em trânsito no Congresso sobre a chamada ‘Escola sem Partido’. Afinal, ressaltam o fundamental papel da educação para a transformação cultural, a promoção da igualdade e a proteção integral de crianças e jovens. São exatamente as crianças e jovens LGBTs que mais sofrem pela estigmatização de suas realidades, as quais eles próprios sequer compreendem plenamente.
Esses estigmas são produto do obscurantismo que ainda prevalece em nosso país em torno dessas questões, e que infelizmente encontra eco nas diversas esferas do Poder Legislativo. Sua superação exige uma educação inclusiva e igualitária, merecendo repúdio toda e qualquer tentativa de censura.
Poucos exemplos deste obscurantismo são mais trágicos do que as insidiosas referências à ‘ideologia de gênero’. Incompreensível, esta expressão, cada vez mais frequente em programas eleitorais, foi alvo de críticas pela PGR, que afirmou se tratar de “conceito profundamente discutível, que contém impropriedades e irrazoabilidades inaceitáveis para pautar a ação de um ente federativo, interferir nos processos educativos e obstaculizar a abordagem da diversidade sexual“.
Na prática, compreende-se que a pretensão é transpor o estigma social do comunismo e do socialismo à discussão sobre gênero e orientação sexual, colocando todos no mesmo balaio. Pretende-se insinuar que a diversidade sexual é uma coisa a ser ensinada, ou melhor, ‘doutrinada’ por professores, levando crianças e jovens a caminhos desviantes, frequentemente associados à pedofilia e ao incesto.
Na realidade, entretanto, caminhos desviantes na sociedade plural e heterogênea da qual felizmente fazemos parte são aqueles que ignoram a diversidade e pregam a intolerância. A pretensão de excluir o tema de gênero e orientação sexual da educação de jovens brasileiros representa nada mais que a condenação de milhares de mulheres, homossexuais, transexuais, travestis e outras minorias à morte, ao abuso físico e psicológico e à marginalização social e econômica.
Imprescindível, portanto, a atuação do Supremo Tribunal Federal para garantir a devida proteção aos direitos fundamentais dessas minorias e de todas as crianças e adolescentes alijados de uma educação que permita seu pleno desenvolvimento. Essa tarefa, porém, não pode ser exclusiva do Pode Judiciário. E se o presente caso evidencia algo é que essa luta se desenrolará em todos os espaços públicos: dos corredores do Congresso Nacional ao Plenário da Câmara dos Vereadores de Paranaguá.