Por Elder Luan*
Publicado pelo portal Dois Terços, em 27 de novembro de 2017
Em 2014, em um texto publicado em sua coluna no Jornal A Tarde, o arcebispo de Salvador, Dom Murilo Krieger, definia “Gênero” como um programa e uma política de atuação que se arquitetava tanto para impor um novo modelo de família, quanto destruir o que ele define como “família legítima”. Já naquela época, o arcebispo reforçava alguns dos que hoje aparecem entre os principais argumentos nos quais se baseiam aqueles que criticam a chamada “Ideologia de Gênero”: que sexo e gênero são biológicos, que a família só pode ser constituída por pai e mãe, e que Deus – o cristão – fez a mulher para o homem e vice-versa.
Esse discurso ganhava eco em 2014 nos debates em torno do Plano Nacional de Educação, que entrou em votação no congresso, e teve suas principais disputas em torno dos termos “igualdade de gênero” e “orientação sexual”. Uma ofensiva elaborada pela bancada cristã combatia que qualquer expressão relacionada a gênero, orientação sexual e sexualidade entrasse no Plano Nacional de Educação, o que acabou reverberando nos debates municipais e estaduais realizados para a elaboração de seus respectivos planos. De lá pra cá, as tensões em torno da chamada “Ideologia de Gênero” têm aumentado, chegando ao ponto de professoras e professores, grupos de pesquisa e estudiosas do campo de gênero e sexualidade serem ameaçadas de morte.
Os setores conservadores, com apoio das igrejas evangélicas e católica, têm incitado um pânico moral, sob a alegação de que os estudos de gênero e a inserção desse debate nas escolas objetiva a destruição da família, a imposição de uma nova ordem sexual, a eliminação da heterossexualidade, o abuso de crianças, entre outras inverdades, que não são produzidas dentro dos estudos de gênero e que, assim como o termo “Ideologia de Gênero”, foram criadas por essas pessoas que não respeitam as liberdades individuais, a democracia, e que querem impor aos nossos corpos uma lógica de funcionamento que tem como modelo central a heterossexualidade.
Esses discursos, que são veiculados através da noção de Ideologia de Gênero, em nada se relacionam com aquilo que vem se produzindo no campo dos estudos de gênero e sexualidade, além de fomentarem uma série de inverdades sobre as teorias feministas. A exemplo disso, temos o principal argumento de que haveria, nos estudos de gênero, a pretensão de destruir a família e a biologia. Ao contrário, o que os estudos de gênero e sexualidade têm apontado é que a noção de família, assim como as noções de homem e mulher, precisam ser ampliadas e não podem ser reduzidas às genitálias, ao casal heterossexual do comercial de margarina.
O que sinalizam os estudos de gênero é que existem múltiplas formas de experimentar e vivenciar a própria sexualidade, ou seja, o exercício da sexualidade não se restringe a fins exclusivamente reprodutivos. Existem também diferentes arranjos familiares, desde famílias extensas, recompostas, monoparentais femininas ou masculinas etc., assim como existem outras possibilidades de ser homem e mulher que vão além da exigência de possuir um pênis e uma vagina, e que todas essas possibilidades, precisam – e devem – ser respeitadas. Todas nós temos o direito de expressar o nosso gênero e vivenciar a nossa sexualidade da forma como nos identificamos. Se você se identifica como homem, tendo nascido em um corpo lido como masculino e escolhe manter relações com o sexo oposto, ótimo! Todavia, isso não lhe confere poder para condenar aquela/aquele que escolhe manter relações com pessoas do mesmo sexo, quem define uma identidade de gênero diferente da biológica ou mesmo quem não se define, nem delimita o sexo e o gênero de seus parceiros e parceiras.
Não somos nós, que estudamos gênero e sexualidade, que estamos propondo ou impondo uma nova norma sexual e de gênero, são os setores conservadores, através de ações desenvolvidas em igrejas cristãs, que estão lutando pela manutenção de uma norma que não permite que as pessoas vivenciem suas sexualidades e gêneros conforme escolherem e são responsáveis pelas recorrentes agressões físicas, verbais e assassinatos de pessoas LGBT e de mulheres.
A caça ao gênero, disfarçada de defesa da família, é uma caça às liberdades individuais, uma caça as pessoas LGBT, às mulheres, que já vem acontecendo e que tem aumentado drasticamente. Em setembro de 2017, o Brasil já havia ultrapassado o número total de mortes de LGBTs de 2016. É a caça ao gênero, que quer retirar do código penal o crime de feminicídio, obrigar mulheres que foram estupradas a não abortarem caso engravidem, e que passa a ameaçar de morte professores e estudiosas do campo de gênero e sexualidade, a exemplo do que vem acontecendo na UFBA e no NEIM. A caça ao gênero quer impedir que nós continuemos existindo.
Como um bom “viado”, enquanto as balas da caça não me atingem, sigo, assim como outros tantos LGBTs, resistindo e redescobrindo formas de re(existir).
*Elder Luan – Graduado em História e doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismo.